Lendo e interpretando os sinais

É da lógica da situação que, caso vingue o golpe, seu desdobramento natural será a institucionalização do fascismo sempre latente entre nós

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Os antigos acreditavam que as vísceras de animais sacrificados em rituais podiam decifrar acontecimentos futuros, já os navegadores, observando em alto mar o voo dos pássaros, podiam antever de que logo teriam a terra à vista. Predições fazem parte do engenho humano para encontrar confiança nas iniciativas a que se dedicam. Nas circunstâncias brasileiras atuais poucas vezes foi tão fácil prever. Os véus da incerteza foram descerrados e a transparência impera: um golpe militar se prepara à vista de todos, faltando a data se antes ou se no decurso do processo eleitoral.

Diante desse cenário aziago a sociedade prende a respiração e especula sobre qual forma conheceria esse infausto evento. Será a do modelo de 1964, com tanques na rua, prisões em massa de lideranças políticas, de movimentos sociais e personalidades selecionadas, com cassações de mandatos políticos; os grandes jornais serão submetidos à censura prévia nas suas edições, o STF será posto sob intervenção por um cabo e dois soldados?

Nesse ponto, o futuro escapa à previsão do observador, limitado ao campo de visão das ações dotadas de racionalidade. Fora delas, como na Alemanha dos anos 1930, reina o imprevisível em que uma vontade tirânica se impõe sem outro propósito que não a acumulação de poder político no exercício do seu poder coercitivo. É da lógica da situação que, caso vingue o golpe, seu desdobramento natural será a institucionalização do fascismo sempre latente entre nós desde o Estado Novo de 1937 a 1945.

No caso, é preciso descortinar o panorama visto da perspectiva dos golpistas que, embora contem com trunfos importantes para atingir seus desígnios imediatos, é de alto risco não só para sua execução como sobretudo após seu eventual êxito, uma vez que não dispõe de um projeto de governo e tem entre seus suportes forças de sustentação pouco afeitas a soluções tecnocráticas refratárias à política e aos partidos como o Centrão.

De alto risco também porque a inscrição do país na cena internacional, particularmente nas Américas, onde reina inconteste a hegemonia dos EUA, que manifesta, nas condições atuais, forte rejeição a regimes políticos autocráticos, como prevalece na Rússia que assim poderia estabelecer uma segura cabeça de ponte num vizinho próximo ao seu maior rival no mundo de hoje. Sanções econômicas que viessem a incidir sobre o nosso país impostas pelo governo Biden teriam efeitos devastadores numa situação já crítica do nosso sistema produtivo com óbvias repercussões no campo de política.

No que se refere ao tema ambiental, hoje objeto preferencial das políticas públicas no mundo ocidental, a confirmação por parte de um governo Bolsonaro, revigorado pelo golpe, de suas práticas predatórias quanto ao meio ambiente, em particular na questão altamente sensível da Amazônia, tem o condão de produzir uma reação que institua um cordão sanitário em torno do país, asfixiando sua economia, inclusive a do agronegócio.

Dado que a política não resulta apenas dos fatos imediatamente contingentes, na aparência favoráveis a uma solução golpista, mas também do que se manifesta nos processos latentes que atuam sobre a sociedade, que podem aflorar por imperícia dos eventuais operadores no terreno da política, o cenário pode ser revertido no sentido de barrar os seus caminhos em razão dos altíssimos riscos que tem pela frente. Face à complexidade da atual conjuntura, nacional e internacional, todo e qualquer passo deve ser sopesado sobre suas possíveis consequências. Do ângulo das oposições democráticas, impedir as soluções golpistas reclama uma ação desassombrada na ampliação de suas alianças sem ignorar os apenas descontentes com o regime atual. Os fatos falam, é preciso interpretar sua linguagem que, se bem-feita, pode bafejar a sorte dos que forem capazes disso.

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