1º de Maio: os trabalhadores “uberizados” em disputa

Sejam motoristas, sejam ciclistas, sejam motociclistas, todos eles são expressões de um Brasil que, desde 2015, ostenta taxas de desemprego superiores a dois dígitos.

Não sabemos quantos eles são. Devido à falta de uma regulamentação mínima no País, é praticamente inviável saber com precisão quantos trabalhadores estão vinculados a aplicativos de transporte de passageiros ou mercadorias, como Uber e iFood. Porém, em meio a um ambiente político-ideológico tão polarizado quanto o do Brasil, convém não termos dúvidas: já existe uma disputa pela mente e pelo coração desses trabalhadores “uberizados” – ou “plataformizados”.

Nesse “admirável mundo novo”, conforme o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), cerca de 1,4 milhão de brasileiros trabalhavam para essas plataformas em 2021. Eram aproximadamente 840 mil em 2016, 1 milhão em 2018 e 1,3 milhão em 2019. Embora tais números sejam apenas estimativas, uma primeira conclusão se impõe: “A quantidade de pessoas com empregos não tradicionais (como autônomos e trabalhadores temporários) teve um crescimento exponencial nos últimos anos”, diz o Ipea.

Assim como as fábricas sempre tiveram mão de obra predominantemente masculina, os trabalhadores de aplicativo também são majoritariamente homens. Mas, de acordo com o cientista social Felipe Moda – que pesquisa os impactos das plataformas digitais nas condições de trabalho –, não se trata de uma massa uniforme de trabalhadores.

Os motoristas de aplicativos como Uber e 99 formam “uma categoria bastante masculinizada, na faixa etária entre os 20 e 50 anos, com a maioria tendo o emprego de motorista como sua ocupação principal”, diz Felipe. Ao longo da vida, é comum que esses trabalhadores tenham experimentado “emprego e desemprego, formalidade e informalidade”. Agora, “buscam nos aplicativos uma maneira de garantirem a sua sobrevivência”.

O perfil de quem trabalha para iFood, Rappi e outros apps de entrega não é o mesmo. Mais jovens, esses entregadores “estão se inserindo pela primeira vez no mercado de trabalho ou possuem uma menor experiência profissional. Segundo pesquisa realizada em 2019, a tipologia do entregador ciclista por aplicativo na cidade de São Paulo é de um homem, negro, jovem, morador da periferia, com ensino médio completo, que trabalha de 9 a 10 horas todos os dias da semana e tem remuneração de R$ 992 mensais. Conforme algumas pesquisas, existe também uma diferença entre os entregadores ciclistas e motociclistas, que são um pouco mais velhos e recebem remunerações maiores”.

Ainda assim, sejam motoristas, sejam ciclistas, sejam motociclistas, todos eles são expressões de um Brasil que, desde 2015, ostenta taxas de desemprego superiores a dois dígitos. Em comum, na relação entre esses trabalhadores e as empresas-aplicativo, não há vínculo empregatício, nem renda fixa, tampouco estabilidade. A “uberização” agravou ainda mais a precarização. 

O sindicalismo brasileiro – forjado, em boa medida, nas lutas operárias – conquistou convenções e acordos coletivos para inúmeras categorias, mas, historicamente, ignorou os trabalhadores desempregados e informais. É nesse limbo que se encontram os “uberizados”.

“Toda a literatura de plataformização e política está mais alinhada em entender o fenômeno de resistência, as possibilidades de sindicalização. Só que é uma possibilidade muito pequena da política das plataformas”, sugere a antropóloga e cientista política Rosana Pinheiro-Machado. A partir do segundo semestre, ela trabalhará numa pesquisa para o European Research Council que deve durar cinco anos e mostrar por que os uberizados estão mais próximos à extrema-direita do que ao sindicalismo.

O fenômeno, segundo Rosana, é evidente no Brasil. “Grande parte desses trabalhadores não necessariamente são bolsonaristas, mas estão muito vinculados a um grau individualista e conservador, mais alinhado ao campo da direita e à despolitização do que à resistência. Tão importante quanto olhar para a mobilização é entender o que nas próprias plataformas está desmobilizando”, afirma.

Sua hipótese parte do pressuposto de que o trabalho sem patrão claro, de forma isolada, “favorece a vinculação com ideias neoliberais, amparadas pela crença somente no mérito próprio”. No imaginário desses trabalhadores, “não há uma discussão de classe, da precarização do trabalho”. Segundo Rosana, eles “estão acima da linha da pobreza, mas são precarizados, odeiam a identidade de classe trabalhadora e cultivam uma base moral religiosa”.

Além disso, esses trabalhadores “passam muitas horas sozinhas, constantemente postando e lendo, porque o trabalho é no ambiente digital, dominado por populistas”. Assim, “conforme a pessoa vai se ‘plataformizando’, crescendo e empreendendo, mais ela segue políticos de extrema-direita”.

“Esse trabalhador precarizado, aspirante a camada média, se alinha com o autoritário”, conclui Rosana. Para piorar, as plataformas talvez estejam “exacerbando esse processo pela própria estrutura, altamente individualizada, focada no mérito, hiperliberal por essência”.

No Livro dos Abraços, Eduardo Galeano escreveu que o 1º de Maio é “o único dia verdadeiramente universal da humanidade inteira, o único dia no qual coincidem todas as histórias e todas as geografias, todas as línguas e as religiões e as culturas do mundo”. Às vésperas do 1º de Maio de 2022, a sorte está lançada nesta guerra por um segmento cada vez maior dos trabalhadores – os “uberizados” ou “plataformizados”. Até aqui, o movimento sindical está em desvantagem.

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