Mont’Alverne: STF e Congresso devem agir antes que ocorra tragédia maior com a democracia

“Condutas com esse nível de possibilidade de envenenamento da democracia brasileira, nós ainda não tínhamos visto desde a promulgação da Constituição de 1988”, diz jurista Martonio Mont’Alverne Barreto Lima sobre indulto ao deputado Daniel Silveria, condenado por ameaças ao STF.

Martonio Mont'Alverne Barreto Lima, procurador público de Fortaleza

Juristas têm se manifestado frontalmente contra o indulto concedido pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) ao deputado Daniel Silveira, condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 8 anos e 9 meses de prisão por ataques à democracia. Todos consideram que a democracia volta a ser gravemente atacada como esse decreto do presidente. 

“Condutas com esse nível de possibilidade de envenenamento da democracia brasileira, nós ainda não tínhamos visto desde a promulgação da Constituição de 1988. Eu creio que a decisão do STF foi acertada”, afirmou o jurista Martonio Mont’Alverne Barreto Lima ao portal Vermelho. Mont’Alverne é professor titular da Universidade de Fortaleza e procurador do município de Fortaleza.

Na opinião dele, são muitos os motivos preocupantes para todos os brasileiros, quando o presidente anula a condenação ao deputado. “O STF e o Poder Legislativo deveriam agir antes que seja tarde demais; antes que se configure uma atentado mais grave contra a democracia. Teremos eleições e sabemos a tensão política que se avizinha. O STF pode e deve agir”, defendeu.

Embora o STF não possa controlar o mérito do indulto, o jurista explicou que o STF tem direito de analisar a constitucionalidade da concessão do instituto. Ele relatou que, recentemente, em 2018, na Ação de Inconstitucionalidade 5874, o STF analisou um indulto concedido pelo então presidente, Michel Temer, e decidiu o que pode fazer a respeito.

Na interpretação do jurista, quando Bolsonaro considera que esse tipo de comportamento criminoso é passível de ter a extinção da punibilidade, configura-se um perigo muito grande para a democracia. “O presidente sinaliza para outros que podem fazer o mesmo, que poderão ser beneficiados com a extinção da punibilidade imposta a eles”, alertou. 

O deputado Daniel Silveira foi condenado pelo STF, na opinião de Mont’Álverne, corretamente, por crimes gravíssimos. “Não tem qualificativo para dizer o quão grave é atentar contra a democracia, como ele fez. Quando se concede uma graça a uma pessoa que atentou contra a democracia, contra todos os brasileiros, a magnitude extrapola o caráter pessoal”, afirmou.

Impessoalidade

Como o STF pode analisar a constitucionalidade do decreto, muitos juristas defendem que o princípio da impessoalidade previsto pelo instituto do indulto será um problema a ser enfrentado. Bolsonaro não concedeu o perdão a um desconhecido, baseado numa condenação que tenha causado comoção pública, como seria o caso.

“Concretamente, temos um agraciado que é partidário do presidente da República, que cometeu um crime gravíssimo de ameaça, inclusive ameaça física a integrantes de uma instituição e de ameaça contra o funcionamento de uma instituição, além de abertamente conclamar a população contra a democracia na medida em que defendeu o Ato Institucional nº 5”, pontuou o jurista. O AI5 foi o decreto da ditadura militar que avançou mais violentamente sobre as liberdades democráticas.

Somados esses elementos aos fatos de que o atual presidente da República já tem atentado contra a democracia e estimulado atos contra o livre funcionamento dos três poderes, Mont’Alverne alerta que “antes que acontece uma tragédia maior, este tipo de comportamento necessariamente precisa ser contido”.

Ele crê que o STF, na arguição de descumprimento de preceitos fundamentais protocolada pela Rede Sustentabilidade, se manifestará sobre este caso, devido ao precedente de 2018. Mas ele considera que o Congresso também deve agir e não se omitir sobre o assunto, como tem declarado que vai fazer o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) ao apoiar o decreto. 

“Deixa de haver impessoalidade no caso, sem dúvida, quando observamos todos esses elementos de comportamento e vinculo do presidente com o agraciado”. 

O procurador não viu comoção social alguma com este primeiro caso de um parlamentar no exercício regular de seu mandato cometendo crime contra a democracia e sendo condenado. O caso de uma mãe presa por furtar alimentos em supermercado para alimentar os filhos, em meio a uma crise de insegurança alimentar que atinge milhões, foi mencionado por várias pessoas como um dos que causou comoção social e não teve o perdão do presidente.

O crime contra a democracia

A liberdade de manifestação do pensamento não é absoluta, enfatiza o professor. Além do mais, a legislação penal prevê o crime de ameaça. “Ele ameaçou a integridade física de integrantes do STF e da própria instituição”, observou. 

Ele lembra que o STF, como os outros poderes, é guardião da Constituição. É obrigação dessas instituições agirem quando são atacadas e não contemporizar a respeito, defende ele. “O STF não pode assistir a um ataque como esse e fingir que nada aconteceu, que isso fica por isso mesmo. Achar que as palavras não se materializam. As palavras levam à ação. Por isso que eu não posso sair, no meio da rua, ofendendo alguém com palavras racistas, que desqualifiquem a condição pessoal de ninguém”, exemplificou. 

O professor disse que uma sociedade não constrói nada útil na perspectiva de que o cidadão tem liberdade e direito de proferir palavras de ódio contra alguém, assim como outros podem proferir palavras de ódio contra ele. “A democracia quer a convivência com o pluralismo, com a crítica, porém uma convivência nos marcos civilizatórios”. 

O deputado poderia criticar o Tribunal e suas decisões, explica o jurista. “Eu mesmo já critiquei e critico decisões de seus integrantes. Mas não posso desconsiderar e atacar a instituição dizendo que tem que fechar, e me dirigir com a possibilidade de agressão física ou ameaça contra a integridade física de um ministro”. 

Mont’Alverne também comentou que não vê contradição no fato do ministro que foi atingido pelos ataques estar julgando o réu. “Esses são os desafios colocados pela democracia. Onde são julgados os ministros do Supremo por crimes comuns? Pelo próprio Supremo. Onde são julgados os deputados por condutas incompatíveis com o decoro parlamentar? Pelos próprios deputados e pela própria instância, porque não há outra instância superior”, disse. 

O ineditismo desse episódio fortalece a questionável constitucionalidade do indulto concedido  por uma preferência meramente pessoal do presidente da República, de acordo com a análise do jurista. “Vamos ter que analisar isso. Não temos esse precedente de 1988 para cá. Porque isso aconteceu agora? Temos fortes indícios de elementos não republicanos, de que isso foi utilizado com a mera finalidade de favorecer o presidente”, concluiu. 

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