Meu amigo Elifas Andreato, por Carlos Azevedo

O jornalista Carlos Azevedo fala sobre seu convívio com Elifas Andreato e o trabalho do artista falecido recentemente.

Nunca saberei porque muitas vezes a gente declara nosso amor e admiração por uma pessoa apenas depois de sua morte. Contudo, digo que vi com alegria as manifestações dos amigos e admiradores de Elifas Andreato após sua partida. Da minha parte, quero lembrar o Elifas pondo sua arte a serviço das lutas populares, da sua oposição ferrenha contra a ditadura militar. Quero falar do artista engajado, do militante político corajoso que foi perseguido e discriminado, quero lembrar seu papel como difusor e defensor da cultura popular, mas principalmente vou agradecer ao amigo generoso, meu amigo e amigo da minha família, que chamava minha companheira Maria Lúcia de “comadre”.

Conheci Elifas no burburinho do ano de 1968, quando a resistência democrática se levantava após quatro anos de ditadura. Estava encarregado de editar o jornal Libertação para a organização política clandestina Ação Popular. Fizera o número 1, mil exemplares, que pusemos para circular na manifestação de 1º. de Maio, na Praça da Sé, em São Paulo. Foi muito trabalhoso fazer quase tudo, desenhar no stencil (matriz) o nome do jornal, os títulos, e datilografar os textos, imprimir por noites afora no mimeógrafo a tinta, grampear as quatro páginas, enfiar tudo num fusca e levar para distribuição. O jornal ficou muito feio porque sou péssimo desenhista.

Precisava de alguém para ajudar. Não lembro quem me falou que um jovem editor de arte de alguma revista da Editora Abril era um cara legal. Fui falar com ele. Foi uma conversa rápida.  Parece que o rapaz estava só esperando alguém convidar. Animado, Elifas se pôs inteiramente à disposição e ofereceu o apartamento onde morava na rua Pio XI, Lapa, com sua ainda mais jovem companheira, Iolanda, para ele paginar o jornal e desenhar os títulos nos stencils. Não demorou para que Iolanda passasse a colaborar também, datilografando os textos.

Começava ali uma colaboração que iria se estender por anos, melhor dizendo, pela vida afora, com total confiança entre nós   mal sabendo o que poderia nos custar se a repressão nos apanhasse. Em 1968 ele tinha 22 anos. Ela, no máximo uns 20.

O casal se mudou do apartamento para uma casa na rua Cerro Corá, nos altos da Pompeia. Ali tínhamos mais espaço para trabalhar. Ao mesmo tempo, Elifas ia fazendo um grande sucesso como artista gráfico, cada vez mais requisitado na Editora Abril.

Naquele sobradinho que ainda está lá, fizemos muitos Libertação, fizemos folhetos, panfletos de denúncia dos crimes da ditadura militar. Elifas se superou quando fez a capa do Livro Negro que, sob a direção de Duarte Pereira, Bernardo Jofilly, Jô Moraes e eu investigamos, apuramos, redigimos.  O Livro Negro foi impresso em uma off-set Multilit clandestinapelo casal de companheiros Divo e Raquel Guizoni.

A capa, que ficou famosa, era impactante: aquela caveira com quepe de general.

E por aí fomos. Se tinha que transportar algum militante clandestino para uma reunião, Elifas emprestava o carro, um Ford vermelho que ele nunca lavava nem trocava o óleo; se precisava fazer um contato com alguém que não podia visitar, ele intermediava.

Ia muito à sua casa, e conversávamos sobre tudo. Ele já estava trabalhando nos fascículos sobre música popular, que amava e ia conhecendo em profundidade.  Uma tarde de 1970, em sua casa, me apresentou o samba-enredo da Portela, “Foi um rio que passou em minha vida”, de Paulinho da Viola. Eu fiquei mesmerizado. Nunca uma música me causou tanto impacto quanto aquela ao ouvi-la pela primeira vez. Elifas e Iolanda acharam graça e compartilharam de minha emoção.

Iolanda já começava a sua vitoriosa carreira de fotógrafa. Montou um laboratório com quarto escuro num quarto da casa. Mais adiante iria dar sua contribuição profissional aos jornais Opinião e Movimento, inclusive seu nome apareceu muito tempo no expediente deste último.

Ela, que também já faleceu, é a mãe dos dois filhos do casal, Bento e Laura. Desenvolveu sua carreira de fotógrafa com um acurado ponto de vista social, produziu diversos livros com fotografias impactantes como, por exemplo, “Crianças de Fibra”, que mostra as duras condições do trabalho infantil.  (Se você digitar Iolanda Huzak no Google vai ter uma idéia de sua bela obra). Andou pela América Central, não sei se El Salvador ou Nicarágua,  em tempos de guerrilha. Eu comprei dela a reprodução de uma foto maravilhosa de uma lavadeira de roupa, que  fez num desses países, e que se encontra há anos na nossa sala de jantar causando admiração a todos que a veem.

Mais adiante o casal se separou, mas tanto um quanto o outro, cuidou muito bem da infância e da adolescência dos filhos.

A repressão da ditadura militar se tornava cada vez mais ameaçadora e fomos obrigados a nos afastar. Era o tempo em que Elifas trabalhava cinco dias na Editora Abril e viajava no fim de semana para o Rio de Janeiro para fazer a capa e a paginação de Opinião, dirigido por Raimundo Pereira. Descansar, dormir? Nem pensar.

A anistia foi promulgada em agosto de 1979. De imediato, o PCdoB, onde eu militava então, deu a tarefa ao querido companheiro Rogério Lustosa de dirigir a criação de um jornal de circulação legal, em bancas e tudo, para, entre outras coisas, reorganizar o partido. Rogério convocou Bernardo Jofilly, Olivia Rangel e a mim para fazermos o jornal. Tinhamos que nos virar, pois não havia dinheiro para isso. Demos um jeito. E em novembro saía a primeira edição. E quem fez a logomarca da Tribuna da Luta Operária e a capa com aqueles três operários, que fez tanto sucesso? Elifas Andreato em pronta resposta a um pedido nosso.

Capa Tribuna Operaria – Reprodução

Voltamos a nos ver com alguma frequência depois da anistia. Minha companheira e eu, Elifas e Iolanda, íamos almoçar num pequeno restaurante onde ele gostava de comer, numa travessinha da rua Clélia, no bairro da Água Branca, pertinho do Sesc Pompéia. Elifas sempre animado, toda vez falava de um projeto novo que estava fazendo ou por fazer. No carnaval se metia em escola de samba, acho que era na Camisa Verde e Branco, fazendo alegorias e vibrando muito. Outra vez preparava algo  para as crianças, e assim ia.

Às vezes seus projetos pareciam de difícil realização. Mas ele fazia e ficavam muito bons. Não fosse ele o Elifas, que juntava à sua condição de intelectual autodidata as raízes camponesas de sua infância no Norte do Paraná, as mãos que também produziram riquezas enquanto operário da fábrica de fósforos, Fiat Lux.   Este, por sinal, um nome premonitório de sua carreira e de sua vida.

Um formidável exemplo do que  acabo de dizer foi  a realização do seu Almanaque Brasil, aquela revista rica de brasilidade que era distribuída nos aviões da Tam e que dava vontade de viajar por aquela companhia só para ganhar um exemplar.

Na década de 1990 minha filha Ana se tornara advogada especializada em direitos autorais e Elifas foi um dos clientes do escritório dela, numa tentativa de organizar seus contratos de trabalho, algo que sempre foi difícil para ele. Tornaram-se amigos. Quando ela faleceu, aos 35 anos, em 2004, ele escreveu o editorial do  Almanaque Brasil em homenagem a ela. Lembro que ele, que escrevia muito bem, foi muito carinhoso, disse algo como “ela foi antes do combinado”, o que me emociona e enche de gratidão até hoje.

Em 2007,  resolvi publicar o livro Cicatriz de Reportagem, em que rememoro algumas reportagens. O livro foi  produzido pelos queridos amigos Sérgio Pinto de Almeida e Denise Natale por sua Editora Papagaio. Elifas se prontificou em fazer a programação visual e a diagramação, o que foi feito nas instalações da redação do seu Almanaque.

Estava procurando alguém para fazer a capa. Serginho se espantou comigo: “está procurando quem, tendo o grande Elifas aí por perto?”   Fiquei sem jeito, ele já estava ajudando muito. 

Matriz da capa do livro Cicatriz de Reportagem

Conversamos. Ele topou. Mas como sempre, não fez uma simples capa. Aproveitou para fazer um registro histórico de um sistema antigo de impressão. Convocou seus amigos gráficos aposentados para fazer uma matriz , como ele relata na última página do livro, “com tipos móveis esculpidos em madeira e outros fundidos em metal, que outrora imprimiam livros e cartazes. Os tamanhos variavam. Os tipos menores eram usados para a impressão de livros, e aqueles com letras até 50 centímetros de altura, para a impressão de cartazes lambe-lambe, muito empregados na divulgação de shows e peças de teatro até o final dos anos 80”.

“Esse tipos eram montados em ‘ramas’ e tinham a leitura invertida  como os carimbos. Segundo o Dicionário  Aurélio, rama é um ‘caixilho retangular de metal onde se engrada a fôrma tipográfica para deitá-la na prensa’. Assim a rama com a palavra LIVRO, por exemplo, era montada assim: ORVIL”.

 Olha só o cara! Aproveitou a oportunidade de fazer a capa para criar um registro histórico de um  sistema de impressão gráfica que ele usara muito, mas que então já entrara em desuso. E assim acrescentou um elemento gráfico importante ao livro.  Estampado no lugar mais nobre, a capa! Dá para avaliar o tamanho do presente?

Trabalhou muito. Calejou as mãos desde a roça de café, nas peças de torneiro na fábrica, nas telas e nas tintas. Doou-se generosamente na projeção que dava aos artistas da música popular quando os exaltava nas capas de discos e nos cenários de shows inesquecíveis,  nas históricas capas de jornal da imprensa alternativa, nos projetos criativos muitas vezes bem sucedidos.

Ele agora descansa, mas a obra continua entre nós, com sua contribuição imortal, retrato mágico do nosso povo e da nossa cultura (e que seja a última palavra) de brasilidade.

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