“Até agora não sei o motivo da minha exoneração”, diz diretor do Ipen

Wilson Calvo foi removido da diretoria do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares no dia 25 de fevereiro, por meio de uma portaria do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. A SBPC, a SBBN e a SBF, divulgaram notas em defesa de Calvo, classificando a atitude do ministério como “intempestiva”, “antidemocrática”, “unilateral” e “contrária ao interesse público”.

Vista aérea do Instituto Nacional de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) - Foto: Roberto Fraga

Wilson Aparecido Parejo Calvo estava descansando em casa na segunda-feira de carnaval, 28 de fevereiro, quando foi surpreendido pela ligação de um colega, perguntando sobre sua saída da diretoria do Instituto Nacional de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). Calvo não sabia, mas havia três dias não era mais diretor do Instituto, referência nacional e internacional na produção de radiofármacos e outros usos pacíficos da energia nuclear.

A exoneração foi publicada, sem aviso prévio, em edição extra do Diário Oficial da União do dia 25, por meio de uma portaria do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), assinada pelo ministro Marcos Pontes. A portaria é datada de 8 de fevereiro (ou seja, 18 dias antes); mesmo assim, Calvo não foi informado da decisão. Nem ele nem o presidente do Conselho Superior do Ipen, professor José Roberto Castilho Piqueira, da Escola Politécnica da USP, nem a Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo (SDE), à qual o Ipen é vinculado como autarquia estadual.

“Não recebi nenhuma comunicação, nenhum telefonema”, disse Calvo, concedida na manhã de quarta-feira, 9 de março ao Jornal da USP. “Até agora não conheço o motivo da minha exoneração.” 

Jornal da USP solicitou formalmente uma justificativa ao MCTI, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem. Várias entidades científicas, incluindo a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Sociedade Brasileira de Biociências Nucleares (SBBN) e a Sociedade Brasileira de Física (SBF), divulgaram notas em defesa de Calvo, classificando a atitude do ministério como “intempestiva”, “antidemocrática”, “unilateral” e “contrária ao interesse público”.

Wilson Aparecido Parejo Calvo, superintendente do Ipen – Foto: Katia Itioka

A notícia não só surpreendeu como causou indignação entre servidores do Ipen, gestores públicos e a comunidade científica em geral. Sujeito tranquilo, muito competente e respeitado pelos colegas, Calvo é servidor do Ipen desde janeiro de 1988 e já atuou em diversas funções dentro do instituto, vinculadas a atividades de pesquisa, inovação, ensino e administração. Formado em engenharia de materiais, com mestrado e doutorado em tecnologia nuclear, ele estava como diretor do Ipen desde março de 2017. Foi nomeado pelo então ministro de Ciência e Tecnologia, Gilberto Kassab, após ser indicado como superintendente pelo Conselho Superior do instituto, que inclui dois representantes da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), dois representantes da USP, um da SDE e um da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

Fundado em 1956, junto ao campus da USP, o Ipen é uma instituição de governança híbrida, simultaneamente estadual e federal. Sua gestão é regida desde 1982 por um convênio firmado com o governo do Estado de São Paulo e a CNEN, por intermédio da USP e do MCTI, que divide a direção do instituto em dois cargos: o de diretor, nomeado pelo ministro de Ciência e Tecnologia, e o de superintendente, nomeado pelo governador do Estado, com base numa lista tríplice de candidatos, elaborada pelo Conselho Superior do Ipen, por meio de um processo seletivo aberto à toda a comunidade, em consonância com a presidência da CNEN e da Reitoria da USP.

Calvo ficou em primeiro lugar na lista tríplice de 2016 e foi novamente escolhido em 2020, para um segundo mandato de quatro anos. Ele permanece como superintendente do Ipen, responsável pelas atividades de ensino e pesquisa, e pelas questões de segurança e zeladoria das instalações do instituto (que incluem dois reatores nucleares). O diretor, por sua vez, é quem controla o orçamento, administra os recursos humanos e financeiros, tem autoridade para abrir sindicâncias, fazer pagamentos e assinar convênios com empresas e outras instituições. Desde o dia 25, esse cargo é ocupado interinamente pela sua substituta imediata, a diretora de pesquisa, desenvolvimento e ensino do instituto, Isolda Costa. 

Produção de geradores de tecnécio-99m para medicina nuclear – Foto: Emerson Bernardes

Jornal da USP perguntou ao MCTI se a pasta planeja manter Costa na diretoria ou indicar um novo nome para o cargo, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. Em todos os 40 anos de vigência do convênio, esses dois cargos — diretor e superintendente — sempre foram ocupados pela mesma pessoa. Algo que, segundo especialistas, é primordial para a boa governança do instituto. 

Calvo disse que vai buscar explicações sobre sua exoneração da diretoria, e que não contempla deixar o posto de superintendente. “Enquanto eu estiver aqui, sendo útil para a instituição, me comprometo a continuar trabalhando até o fim do meu mandato (dezembro de 2024)”, disse. “Esse é um compromisso meu com a sociedade.” A data retroativa da portaria que o exonerou (8 de fevereiro) coincide com a véspera de um período de 15 dias de férias (9 a 23 de fevereiro) que Calvo tirou para se recuperar de uma cirurgia. “Poderia ter pedido licença médica, mas preferi tirar férias para não me afastar muito tempo do Ipen”, disse.

Logo após o feriado de carnaval, no dia 3 de março, o presidente da CNEN, Paulo Roberto Pertusi, pediu uma reunião com o Conselho Superior do Ipen, presidido pelo professor Piqueira, da USP. “Durante 50 minutos, o presidente fez uma apresentação de pontos da Constituição e dos regulamentos que corroboram a autoridade do ministro (Marcos Pontes) e demonstram que a atitude da exoneração é legal”, relatou Piqueira ao Jornal da USP. “Também declarou que não havia nenhuma restrição ao Calvo nos aspectos científicos e de gestão; porém, houve a interpretação de que o cargo é de confiança do ministério e da CNEN.”

Piqueira disse que notificou o reitor da USP, Carlos Carlotti Junior, e a secretária de desenvolvimento econômico do Estado, Patricia Ellen, assim que soube da exoneração, e que aguarda uma análise jurídica do caso por parte dessas instituições. “Apenas quando houver essa definição o Conselho Superior do Ipen poderá ser chamado para tomar posição sobre o assunto”, concluiu. 

José Roberto Piqueira – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Muitos analistas entendem que a decisão do ministro atropela a autoridade do Conselho Superior do Ipen e desrespeita o convênio firmado entre as partes para a gestão do instituto (mais informações abaixo). A SDE afirmou em nota que “repudia a tentativa unilateral de intervenção do governo federal, por meio do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, no IPEN, burlando as regras administrativas do instituto”. A pasta aguarda um posicionamento da Procuradoria Geral do Estado para encaminhar o assunto.

Luis Antônio Gênova, secretário-geral da Associação dos Funcionários do Ipen (Assipen), faz um relato semelhante da situação. Segundo ele, a entidade foi surpreendida pela exoneração de Calvo. “Queremos saber os motivos, porque a medida contraria o convênio firmado em 1982, entre os governos estadual e federal, para a gestão do Ipen”, disse. Também segundo ele, o presidente da CNEN teria dito ao Conselho Superior do Ipen que a exoneração tinha base legal, sem fornecer nenhum motivo específico para a decisão.

Pertusi foi nomeado presidente da CNEN ao mesmo tempo que Calvo se tornou diretor do Ipen — em março de 2017, pelo então ministro Kassab. Assim como Pontes (que está de saída do ministério, para se candidatar a deputado federal por São Paulo), ele é oficial militar, da reserva da Força Aérea Brasileira.

Em duas assembleias virtuais, realizadas no início de março, a Assipen se posicionou a favor da revogação do decreto de exoneração, bem como pela abertura de diálogo entre o MCTI, o Conselho Superior e toda a comunidade do Ipen. Além de um pedido à consultoria jurídica da Assipen para analisar a medida, segundo Gênova, foi lançado um abaixo-assinado “contra a intervenção do governo federal no Ipen”, que até esta sexta-feira (11) tinha cerca de quatro mil assinaturas.

Conflito de opiniões

O caso de Calvo lembra o do físico Ricardo Galvão, professor da USP, exonerado por Pontes da diretoria do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em agosto de 2019. Diferentemente de Galvão, que bateu de frente com o presidente Jair Bolsonaro (após o presidente acusar o Inpe de produzir “dados mentirosos” sobre o desmatamento na Amazônia), Calvo nunca entrou em confronto direto com o governo, mas também não se esquivou de defender publicamente o instituto contra os cortes orçamentários impostos a ele nos últimos anos.

Dados levantados a pedido do Jornal da USP mostram que o orçamento do Ipen encolheu 28% entre 2017 e 2021. Em números absolutos, o valor aprovado na Lei Orçamentária Anual federal para o Ipen em 2021 foi de R$ 108 milhões, praticamente idêntico ao de 2014. Tudo isso, sem levar em conta a inflação nem a variação cambial do dólar, que pesa fortemente sobre a produção de radiofármacos do instituto — o Ipen importa anualmente US$ 20 milhões em radioisótopos, a matéria-prima básica necessária para produção dos fármacos.

A situação se agravou ao nível máximo em setembro de 2021, quando o Ipen, pressionado pela alta do dólar e pelos cortes orçamentários, anunciou que precisaria suspender a produção de radiofármacos, por falta de recursos para a importação dos radioisótopos necessários (normalmente comprados da Rússia, Holanda e África do Sul). O risco iminente de desabastecimento foi notificado oficialmente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), como manda a regra, assim como às instituições e empresas de saúde que dependem desses produtos para atender seus pacientes. A produção parou, de fato, em 20 de setembro, e teve grande repercussão na mídia, colocando pressão sobre o MCTI para a obtenção de mais recursos.

O Ipen é o maior produtor de radiofármacos do Brasil, responsável por 85% da demanda dos cerca de 450 hospitais e clínicas que trabalham com medicina nuclear no País. São 24 produtos, utilizados principalmente no diagnóstico e tratamento do câncer, entre outras doenças.

O problema só foi resolvido um mês depois, em 15 de outubro, com a publicação da Lei 14.222, que liberou R$ 63 milhões em créditos suplementares para a produção de radiofármacos. Com isso, as importações dos insumos foram retomadas e o abastecimento regularizado, gradativamente.

Ao mesmo tempo que a produção do Ipen parava for falta de orçamento, avançava na Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 517), de 2010, que retira restrições à produção de radiofármacos por empresas privadas no País — em outras palavras, quebrando o “monopólio” que o Ipen tem sobre esse serviço atualmente. Três dias após a paralisação no instituto, em 23 de setembro, foi criada uma comissão especial para analisar a proposta na Câmara.

Em 17 de novembro, após várias audiências e consultas, foi apresentado o parecer do relator na comissão, deputado General Peternelli (PSL/SP). O relatório é favorável à aprovação da PEC e traz uma tabela com o posicionamento de 23 autoridades, incluindo parlamentares, pesquisadores (entre eles, um professor da USP), médicos e representantes do Ipen, da Anvisa, do Ministério da Saúde, da CNEN e do MCTI, entre outros. Segundo essa lista, Calvo e Gênova, da Assipen, foram os únicos que se posicionaram contrários ao teor da PEC — divergindo, portanto, da posição do ministério e da CNEN.

“Me manifestei de forma técnica, não política”, disse Calvo ao Jornal da USP. “Minha motivação nunca foi política, no sentido de agradar ou desagradar ninguém, mas alertar para o risco institucional que o Ipen está correndo”, completou ele, referindo-se tanto ao teor da PEC quanto aos cortes orçamentários. “Como gestor, me sinto na obrigação de alertar as autoridades e a sociedade sobre a importância de se investir nas instituições públicas e de preservar a ciência e a tecnologia no País.”

Radiofármacos produzidos no Ipen – Foto: E. R. Paiva

Defensores da PEC argumentam que ela é necessária para ampliar, baratear e dar mais segurança à oferta de radiofármacos no Brasil. Calvo, porém, acredita que ela terá o efeito contrário.

Dos 24 radiofármacos distribuídos pelo Ipen atualmente, segundo ele, apenas quatro são alvo de interesse comercial pelo setor privado: iodo-131, lutécio-177, gálio-67, e os chamados geradores de molibdênio (99Mo/99mTc). O monopólio da União em vigor, segundo ele, aplica-se somente à importação de molibdênio-99 para a produção desses geradores, que são responsáveis por 85% dos diagnósticos de doenças por medicina nuclear e representam 73% do faturamento anual do Ipen (de R$ 120 milhões, em 2019). Os outros radiofármacos já podem ser fabricados e comercializados por empresas privadas, desde que aprovados pela Anvisa.

Os recursos obtidos pelo Ipen com a venda desses radiofármacos e outros serviços prestados à indústria são revertidos ao Tesouro Federal e não ficam com o instituto — se ficassem, o Ipen seria quase que autossustentável, financeiramente. De um total de quase dois milhões de procedimentos de medicina nuclear realizados por ano no país, apenas 25% são feitos na rede pública do SUS.

Abrir a produção de radiofármacos para a iniciativa privada, em vez de fortalecer a produção do Ipen, na avaliação de Calvo, pode levar a um encarecimento desses produtos, tornando-os ainda menos acessíveis ao atendimento na rede pública. O preço de um gerador de molibdênio produzido pelo Ipen hoje é R$ 6,8 mil, enquanto, na iniciativa privada, ele sai por R$ 17,2 mil.

O projeto mais importante para garantir a produção e o fornecimento de radioisótopos e radiofármacos no Brasil, sem necessidade de importações, segundo especialistas do setor, é a construção do Reator Brasileiro Multipropósito (RMB), que há anos sofre também com a falta de recursos para sua conclusão.

“A principal razão [para a exoneração] é que Calvo estaria sendo pressionado por defender a radiofarmácia pública hoje instalada no Ipen”, escreveu a SBPC, em sua nota de apoio ao superintendente. “Ele se posicionou contrariamente à PEC 217/2010 da forma que ela está proposta, referente à quebra do monopólio da União no que diz respeito à produção de radioisótopos e radiofármacos de meia-vida longa, alertando para a necessidade de se manter a radiofarmácia pública para garantir atendimento a pacientes do sistema público. Calvo é defensor da democratização da medicina nuclear e da sua expansão no SUS.”

Calvo reconhece que o ministro de Ciência e Tecnologia tem a prerrogativa de pedir sua exoneração, pois trata-se de um cargo de confiança do ministério — “desde que siga o rito estabelecido no convênio de gestão do Ipen”, pelo qual essa decisão deveria ser levada à apreciação do Conselho Superior, e não tomada de forma unilateral, segundo ele. Foi o que já aconteceu em duas ocasiões, com diretores anteriores a ele, segundo Calvo — no primeiro caso, o conselho acatou o pedido de exoneração; no segundo, optou por manter o diretor no cargo. “Se há um descontentamento com a atual gestão e quiserem levar isso ao conselho, não há problema nenhum”, disse.

Do Jornal da USP