Mudança climática começa a afetar toda a estrutura da floresta, diz novo IPCC

Ecóloga que atuou como revisora do estudo, divulgado esta semana, explica que aquecimento global está mudando ritmos da natureza e afetando interações entre espécies. No Brasil, explosão do desmatamento torna quadro na floresta amazônica ainda mais grave.

(Foto: Mayke Toscano/Gcom-MT)

O Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) divulgou na última segunda-feira a sexta edição de seu relatório que avalia os impactos que as mudanças climáticas estão exercendo sobre os ecossistemas e na vida humana, bem como aponta estratégias para se adaptar a ela.

O material é um complemento ao relatório publicado pela mesma organização em agosto de 2021, que na ocasião teve como foco as bases físicas da mudança climática. Assim como no relatório do ano passado, as conclusões apresentadas no documento se basearam em uma extensa revisão de artigos científicos publicados nos últimos anos sobre o tema (34 mil) organizados por um grupo de trabalho de 270 autores e submetidos à aprovação de representantes de 195 governos.

Ecóloga e professora da Unesp no câmpus de Rio Claro, Patrícia Morellato vem há anos colaborando com os relatórios do IPCC que analisam impactos e estratégias de mitigação das mudanças climáticas. Nesta última edição, atuou na revisão de alguns dos seus capítulos, mas também já colaborou como autora contribuinte na quarta edição deste relatório, publicada em 2007.

Especialista em fenologia, pode-se dizer que Patrícia investiga as alterações que espécies e suas comunidades sofrem ao longo do seu tempo evolutivo, uma área de pesquisa que tem muito a contribuir com os estudos sobre os efeitos da mudança climática. Patrícia aponta temas de destaque no relatório, critica o uso de certos termos e nos ajuda a aproximar as mais de três mil páginas do relatório à realidade brasileira.

Quais foram as suas colaborações neste e nos relatórios anteriores do IPCC?

Patrícia Morellato: No relatório de 2007, eu atuei como contributing author, fazendo o levantamento científico de artigos relacionados aos trópicos. Posteriormente, publicamos alguns artigos que foram citados no relatório, por exemplo, uma revisão que tratou das mudanças do clima no Hemisfério Sul. Isso é importante porque todo o Hemisférios Sul ainda é pouco acessado e, dentro dessa região, as questões tropicais em especial são ainda menos abordadas.

Para se ter uma ideia, o relatório produzido em 2007 foi o primeiro a atribuir, com absoluta certeza, que as plantas estavam florescendo e começando a crescer mais cedo devido ao aquecimento global. Isso foi possível porque, no Hemisfério Norte, as estações são mais bem definidas, mas também porque há séculos cientistas na Europa, antes chamados naturalistas, observam e registram a natureza, anotando datas de floração de uma espécie, por exemplo.

Esse volume de dados de diferentes espécies, e por um longo período de tempo, permitiu fazer essa atribuição, estabelecendo uma relação causal e não apenas correlacional. Nos trópicos é mais difícil fazer esse apontamento porque as estações não são tão delimitadas, e porque temos um período mais curto de produção deste campo da ciência.

Neste relatório trabalhei como revisora de alguns capítulos como Capítulo 12 (Central and South America), um capítulo sobre Montanhas e um sobre Florestas Tropicais. Na minha visão, é uma forma de ajudar os colegas que estão escrevendo o relatório a aprimorarem esse trabalho.

Existe algo que esse relatório traz de novidade em relação aos anteriores?

Patrícia: Em termos dos riscos apontados no relatório, eles já eram conhecidos. Mas o que eu acho que ele traz de mais importante é o aumento no grau de confiabilidade das conclusões que são apresentadas. Isso tem relação com o aumento do grau de certeza das previsões presentes no relatório sobre os fenômenos físicos das mudanças climáticas, publicado em agosto de 2021, mas também porque nós estamos produzindo mais dados sobre a relação do clima com os ecossistemas, com a agricultura, etc.

Nós temos cada vez mais capacidade de fazer as predições e isso significa que as medidas que estão sendo sugeridas de mitigação e adaptação se tornam mais assertivas e certeiras. Não há mais desculpa por parte dos governantes para não tomarem medidas de adaptação e mitigação das mudanças climáticas.

Dentro da sua área de pesquisa, quais os principais pontos de destaque nesse relatório?

Patrícia: Um tema que já havia sido apontado anteriormente, mas que ganhou força nesse relatório é algo que eles chamaram de mismatching, uma assincronia nas relações entre as espécies. Por exemplo, se você tem uma espécie que floresce antes do tempo, pode ser que o inseto ainda não esteja preparado para polinizá-la e, portanto, esse processo deixa de ocorrer. Isso pode ter consequências muito graves, inclusive na agricultura para a produção de alimentos.

Hoje há ciência em volume suficiente mostrando que isso já está acontecendo. Para se ter uma ideia, o tema é tão importante que o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) publica anualmente um material chamado Frontiers em que destaca alguns temas emergentes no meio ambiente. Na edição de 2022 publicada na última semana, um dos três capítulos foi sobre essa assincronia, sob o título Fenologia: A mudança climática está mudando o ritmo da natureza.

O relatório menciona com alto grau de confiabilidade a previsão de que o aumento de 1,5 grau no planeta levaria à perda irreversível de diversos ecossistemas, sendo que alguns deles já estão próximos desse limite, entre eles a Amazônia. O que significa exatamente essa irreversibilidade?

Patrícia: A irreversibilidade vem de algumas pesquisas que apontam que a floresta não vem sofrendo apenas devido à mudança climática, mas tem ainda um fator sinérgico que potencializa essa perda, que é a devastação florestal. A floresta fica mais sensível às mudanças do clima à medida que ela fica mais degradada. Cabe destacar que nunca houve tanta perda de floresta como nestes últimos três anos do governo Bolsonaro. No meu ponto de vista, esse relatório do IPCC ainda não traz o melhor nível de avaliação da Amazônia porque não incorporou os últimos dados de devastação e queimadas.

De qualquer forma, alguns estudos já apontam que existe um aumento de temperatura que está afetando as árvores, indicando uma diferença de mortalidade das espécies. Em especial as árvores muito grandes, que os cientistas chamam de nucleadoras porque permitem que outras espécies também colonizem a sua área. Isso pode mudar toda a estrutura da floresta. Nesta mesma linha, trabalhos que fazem a modelagem de resposta da floresta parecem apontar que ela não conseguirá mais se recompor, chegando a um ponto limite, o que está sendo chamado de tipping point, o ponto de não retorno.

Eu não gosto e sempre reforço que ainda em 2021 o relatório do IPCC use o termo savanização para falar da perda da floresta. Primeiro porque na verdade o que vamos ter é uma floresta degradada, que é um outro tipo de vegetação, mais próxima de uma floresta secundária. Um outro ponto é que o uso do termo savanização pode passar o entendimento de que a savana, no caso o Cerrado, vai passar a ocupar a floresta e não é isso que vai acontecer. É muito pior que isso. Além disso, o termo também pode passar a ideia de que a savana é algo ruim, degradado e que portanto não haveria motivo para preservá-la. Melhor derrubar, fazer pasto e transformar numa fronteira agrícola. De toda maneira que você olhe, é um termo infeliz usado anteriormente e usado novamente neste relatório. Até porque precisamos conservar outras vegetações que não sejam florestas e os seus benefícios.              

Você acha que o relatório não contempla adequadamente outras vegetações que não sejam florestas?

Patrícia: O foco do relatório se concentra muito na Amazônia, até porque ela tem muita influência no clima local, regional e global. Mas nós temos uma diversidade muito grande no continente, como o Cerrado, a Caatinga ou os Campos Rupestres, por exemplo..

O Cerrado é muito importante porque é altamente diverso. Embora não pareça, é onde se localiza a maior parte das nascentes de água do país e onde fica nossa fronteira agrícola. Logo, é também a vegetação dessa região que está sendo mais devastada. Nesse sentido, sua importância é crucial para entendermos como conseguir nos adaptar a essa mudança do clima, ou mitigá-la. A Caatinga, por sua vez, é uma floresta seca, muito sazonal, mas que também tem uma importância grande como repositório de biodiversidade e que está no limite. Ela já é adaptada ao extremo, mas não sabemos o que pode acontecer se esse limite for ultrapassado.

A cadeia do espinhaço, de montanhas e campos rupestres, guarda um endemismo incrível e importantes cabeceiras de água. Mas é uma das regiões mais afetadas pela mineração no país. É só a gente ver o quão devastado está Minas Gerais. Fala-se muito em agricultura, mas a mineração, no Brasil e no mundo, também tem sido uma ameaça enorme.

Esse relatório dá uma ênfase grande à questão da adaptação às mudanças climáticas. O que no tema abordado se aplica ao Brasil?

Patrícia: Acho quase tudo. Pensando nos biomas, existe uma medida muito simples que é a efetivação das nossas redes de proteção. O que acontece hoje é que muito da devastação que acontece na Amazônia, por exemplo, não ocorre em áreas privadas, mas em terras do governo, e estimuladas pelo próprio governo. A política de proteção dessas áreas foi desmantelada. Nós até temos muitas reservas de floresta, mas elas estao abandonadas. Uma política pública razoável resolveria essa questão, mas isso não existe no quadro político atual. Outra medida seria aumentar as áreas de reserva para outros biomas que mencionamos, como a Caatinga, o Cerrado, os Campos Rupestres. Especialmente se essas áreas abrigarem elementos importantes, como mananciais. 

E existe uma parte da adaptação que diz respeito às cidades que está muito relacionada, por exemplo, à tragédia provocada pelas chuvas que atingiram Petrópolis. Aquele é um claro exemplo da ausência de medidas de adaptação. Havia recursos, o alerta foi feito e, mesmo assim, pessoas morreram. Este relatório menciona detalhadamente diversos riscos para pessoas: riscos socioecológicos, impacto na produção de alimentos, impacto nos sistemas costeiros. E o que é mais importante de tudo é que o relatório mostra que os mais afetados pela falta de previsão, de adaptação e de ações de mitigação, são as populações que já são as mais vulneráveis.

Do Jornal da Unesp