Fronteiras e barbárie

Moïse exige que o Brasil repense seu rumo, reorganize as mensagens que leva até sua população, decida ir em direção ao direito como forma de solução dos conflitos.

Protestos pela morte do imigrante congolês Moise Kabagambe

As cenas do espancamento covarde que levaram à morte de Moïse Mugenyi Kabagambe são impactantes. Retratam a barbárie de uma forma crua na sua versão mais cruel, se é que se pode colocar gradação em barbárie. A história poderia ter um outro desfecho. O esperado é que alguém, que vai até o seu patrão para receber valores referentes a trabalhos prestados, receba o dinheiro e possa continuar o seu dia. Pode-se até aventar que não receba e tenha que se valer do Judiciário. O pano de fundo da barbárie cometida contra Moïse é a fragilidade do direito e da política.

Moïse foi morto aqui, em 2022, de forma cruel, aos 24 anos. Crueldade da qual sua família imaginou estar se livrando quando saiu do Congo em direção ao Brasil, há mais de 10 anos, após familiares terem morrido na guerra civil do país. Ele entrou em terras brasileiras como refugiado, o que lhe garantiria proteção de acordo com as normas internacionais.

Todavia, as regras do direito não são respeitadas quando a barbárie está instalada. E o Brasil tem dado mostras de que essa fronteira já foi suplantada, o que se vê no racismo e no machismo, com as tristes marcas em corpos encontrados pelas ruas mortos ou carregando as chagas da violência pelo que resta de suas vidas, tanto de pretos quanto de mulheres, crianças e tantas outras pessoas que convivem com a banalização do mal em um país que se acostumou com autoridades, de todos os níveis hierárquicos, incentivando a violência e defendendo que ela é a única saída para solução das questões que vivenciam hoje em dia. Esse discurso pró violência é a prova cabal da incompetência de quem o profere. Dois caminhos são essenciais para a superação de problemas sociais, quais sejam, o direito e a política.

A circulação de pessoas pelo mundo, atualmente, é motivo de tensão. Muitos discursos de ódio são feitos contra as pessoas que se movem pelo planeta. A violência é encontrada em muitas das fronteiras entre os países. Pessoas colocadas em jaulas, pais separados de seus filhos ao tentarem entrar nos Estados Unidos; discursos contra migrantes em campanhas eleitorais em vários países do mundo; cadáveres no Mediterrâneo e no Canal da Mancha; pessoas impedidas de entrar no Brasil por via terrestre durante a pandemia; solicitantes de refúgio deixados em filas intermináveis na tentativa de ingresso na Austrália. Todos esses casos mostram que a circulação de pessoas virou pauta política, o que torna a transposição de fronteiras algo cada vez mais difícil e com aumento vertiginoso de situações de violência.

A proteção do direito do “outro” (migrante, pessoa em situação de refúgio ou por outro tipo deslocada de forma forçada, conforme Seyla Benhabib), é um desafio que se coloca à humanidade na atualidade. Pode-se dizer, nesse sentido, que a garantia de direitos a não nacionais é demonstração de que as soluções do país são pautadas no direito.

Na maioria dos países do mundo, o “outro” é o não nacional. No Brasil, os “outros” são os excluídos, os pretos, as mulheres, os indígenas, os trabalhadores braçais, enfim, qualquer pessoa que lute por seus direitos. Nesse contexto, o homicídio covarde de Moïse é a indicação clara de que nosso país ultrapassou a fronteira da barbárie. Se o Brasil mantiver a insistência do discurso violento que tem sido feito nos últimos tempos não vai conseguir sair dessas fronteiras, fazendo a crueldade se perpetuar. E o 6 de janeiro de 2021, nos Estados Unidos (quando ocorreu a invasão do Capitólio dos Estados Unidos), está aí para se ter certeza que a barbárie pode atrair conjuntos enormes de pessoas.

Nota-se a dimensão política como substrato de debates em torno dos direitos humanos. É preciso conviver com posicionamentos distintos na consideração de que o dissenso é a base da democracia, no entanto, em relação à dignidade da pessoa humana, não parece haver espaço divergente que não seja de sua intransigente defesa. É preciso, pois, convencer aqueles que se alimentam de discursos de ódio nos termos de que são também vítimas da violência e da barbárie. A civilização supõe posicionamento, corte, negação de absurdos, então, a morte de Moïse e de tantos outros é a evidência da barbárie inaceitável que deve ser enfrentada e superada pelo diálogo da política e pelo direito.

Moïse exige que o Brasil repense seu rumo, reorganize as mensagens que leva até sua população, decida ir em direção ao direito como forma de solução dos conflitos. Mas não apenas um direito formal, um direito que tenha o ser humano e o meio ambiente como centro decisórios, que tenha os direitos fundamentais como norte e a garantia da proteção das minorias de todas as raças, gêneros e religiões.

Se a decisão for continuar a barbárie, o caso Moïse não será o último e poderá se repetir na porta da casa de qualquer pessoa. A questão é saber o quanto “outro” essa pessoa será considerada, o quanto ela será entendida como pretensiosa por lutar por seus direitos, o quanto esses direitos serão tidos como razoáveis e o quanto ela vai resistir a pauladas, chutes, mata-leões e outros golpes mortais.

O Brasil mostrou sua cara mais cruel e parece não mais querer escondê-la. É preciso reafirmar o direito e a política como antídotos contra a barbárie que se alojou em setores da sociedade brasileira!


Luís Renato Vedovato é Membro do Observatório das Migrações em São Paulo, Professor de Direito Internacional da Unicamp e da PUC de Campinas.

Samuel Mendonça é o Presidente da Sociedade Brasileira de Filosofia da Educação, Professor de Filosofia da Educação da PUC-Campinas.