Inflação e desemprego devem agravar fome no Brasil em 2022, diz economista

Nilson de Paula investigou que mais da metade dos lares brasileiros enfrenta insegurança alimentar e alerta, em entrevista à Agência Pública, que país vive combinação explosiva de inflação e crise econômica

(Foto: Reprodução)

Coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan) e economista formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), o pesquisador Nilson Maciel de Paula é pessimista em relação à situação da fome e da insegurança alimentar no Brasil em 2022. “O cenário é complicado porque a cada dia a gente vai tendo notícias não muito animadoras. Nada indica que o quadro que veio à tona no ano passado, em 2021, relacionado à fome, vá melhorar”, disse em entrevista à Agência Pública. Dois fatores são cruciais para a afirmação do economista: a inflação e o desemprego que, segundo a maior parte dos prognósticos econômicos, devem permanecer em situação preocupante nesse ano. 

Há uma tendência de alta no preço dos alimentos que se observa há pelo menos três anos. Dados da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) apontam que entre 2018 e 2021 os alimentos ficaram, em média, 43% mais caros para o consumidor final. A pandemia agravou esse cenário. O mesmo ocorreu em relação ao desemprego. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil só deve retornar ao nível pré-pandemia em 2024.

A Rede Penssan foi responsável pelo “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”, uma pesquisa de alcance nacional que analisou o impacto da pandemia no aspecto da segurança alimentar da população brasileira e foi publicada no ano passado. A partir de uma amostra de 2.180 domicílios, a pesquisa concluiu que: 116 milhões de pessoas — mais da metade dos lares brasileiros —  estavam em situação de insegurança alimentar e 19 milhões passavam fome. De Paula alerta para a inflação de alimentos observada no Brasil e a combinação de pouca atividade econômica com o cenário de aumento de preços, que classifica como uma “combinação explosiva”.


Temos previsões pouco animadoras para a inflação e o desemprego em 2022. Diante desse cenário, para onde vai essa situação de insegurança alimentar no Brasil em 2022?

É muito difícil fazer uma projeção muito precisa, os economistas gostam muito de aplicar modelos de previsão, e depois todos eles furam. O cenário é complicado porque a cada dia a gente tem notícias não muito animadoras. Nada indica que o quadro que veio à tona no ano passado, em 2021, relacionado à fome, vá melhorar. A cada dia que passa a gente tem algo que vai agravando esse quadro… Então as perspectivas que temos são de agravamento da fome e da insegurança alimentar porque tem uma combinação terrível, nefasta, que é um quadro de inflação com a pressão dos preços da alimentação. Estamos falando de uma inflação em cima do que é essencial. Quando você vê a inflação pegando esse setor, vai atingir os segmentos mais vulneráveis. E aí você tem uma combinação que é explosiva, que é a inflação combinada com ausência de demanda. 

É uma coisa meio estranha, né? Porque geralmente é muito comum associar inflação com a pressão de demanda. E aí os economistas em geral, o governo, já aumentam a taxa de juros. Os economistas do mercado financeiro gostam dessa ideia, fazer uma restrição monetária achando que vão segurar a inflação. Só que isso não resolve o problema que estamos olhando:  a pobreza, a fome, a falta de renda, o desemprego… 

Não temos uma economia aquecida, ao contrário, temos uma economia estagnada que não cresce, e nada indica que vá ser diferente em 2022. E você tem a inflação. Esse é o indicador de que o quadro relacionado à insegurança alimentar pode se agravar. Junto com isso tem o problema da pobreza, do desemprego — não só o desemprego em si, a falta de oportunidades de trabalho, mas o emprego informal, que corrói a qualidade do mercado de trabalho. Também há uma perda da qualidade do trabalho em função do deslocamento do eixo da economia rumo a uma reprimarização.

Por exemplo, quando você tem um setor como o agronegócio, setores de commodities, puxando a economia, isso indica uma precarização do mercado de trabalho. Você tem uma empresa montadora que fecha as portas, mas isso é compensado no agregado macroeconômico, no PIB, pelas exportações do agronegócio. Quando você olha no geral, você pensa que a economia está crescendo, mas a qualidade do trabalho se alterou dramaticamente porque você empregava antes um engenheiro elétrico, mecânico, com um trabalho de melhor qualidade, e agora você emprega o quê? Então você tem o deslocamento da qualidade do mercado de trabalho em função do deslocamento do eixo da economia. 


O quanto dessa insegurança alimentar observada por vocês no inquérito foi fruto da pandemia e o quanto veio de condições mais estruturais da economia brasileira? 

Eu acho que a pandemia fez com que a questão da fome e da insegurança alimentar se tornasse mais visível. A sociedade parou à medida que a pandemia foi se agravando, e aí entrou em discussão a questão do auxílio emergencial em 2020. E aí você vai vendo as pessoas, a mídia, a sociedade de uma maneira geral, colocando a cabeça para fora para ver o que tava acontecendo. Além disso, você tem de fato uma perda de dinamismo. A economia parou na pandemia, e não tem como negar isso: você tem fechamento de empresas, negócios, ou seja, você tem uma crise econômica que veio na esteira da pandemia.  E aí vai se formando essa combinação de várias crises, e o problema da insegurança alimentar aparece. Vem a pandemia e depois vem a perda de renda, de emprego etc. A insegurança alimentar é um fenômeno socialmente identificado, assim como é a pandemia: a pandemia não é democrática, como muita gente dizia, ela atingiu muito mais os segmentos que não tinham como fazer distanciamento, como deixar de trabalhar.

O Brasil é um país que evoluiu historicamente assentado numa desigualdade social e econômica estrutural. É uma marca do nosso processo de desenvolvimento. É uma sociedade que se tornou moderna e complexa, mas manteve esse traço enraizado. Isso já é algo que você tem há muito tempo. Você tem junto com isso o que foi feito no Brasil a partir de 2016, um desmonte das políticas sociais e uma iniciativa de dobrar a aposta na agenda liberal, no sentido de reduzir o Estado. Aí vieram as reformas para se redinamizar a economia… Com isso, várias políticas foram precarizadas ou desmontadas. Isso afetou o setor da alimentação frontalmente, em cheio. Você pega, por exemplo, o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar], que tem um enraizamento no meio urbano para atender populações vulneráveis, escolas, que teve o aporte orçamentário cortado violentamente. E junto com ele várias outras políticas.

Houve um desmonte da estrutura de política pública que acabou contribuindo e se somou à nossa condição histórica. Se você pegar no nosso relatório, de 2004 a 2013, nós tivemos um interregno que a insegurança alimentar diminuiu, o Brasil saiu do Mapa da Fome, toda aquela coisa. De lá pra cá, a coisa desandou de novo. O contexto da pandemia veio simplesmente engrossar esse caldo e trazer tudo isso à tona.

Pensando no cenário eleitoral, o que poderia ser feito para aplacar esse cenário de fome e insegurança alimentar? 

O Brasil não vai resolver essa situação com uma eleição, com um governo. Eu acho que o caminho para se chegar à solução envolve uma mudança do modelo econômico, e essa mudança do modelo econômico implica recolocar a indústria e os processos de inovação tecnológica e competitividade na agenda da política econômica. Ou seja, desprender a política econômica da mera disciplina monetária. Não adianta falar livre mercado, equilíbrio social, se o terreno social está sendo todo corroído.

É preciso reconduzir a economia para ela se afastar dessa economia primária exportadora que é pra onde esse governo nos levou até agora, com todas as implicações deletérias: destruição do meio ambiente, dos  seus organismos e fiscalizadores. É preciso reconduzir a economia para valorizar o núcleo dinâmico da economia. O núcleo urbano, industrial.

E na esteira disso você vai ter uma recuperação da qualidade do emprego. Ao invés de você ter um engenheiro civil dirigindo um Uber, você vai ter um engenheiro civil trabalhando numa indústria, na construção. Esse é o grande desafio que nós temos. Outra coisa é recolocar o Estado como protagonista de políticas públicas que sejam políticas de Estado.

Tem que ter uma recuperação do Estado como agente de política pública, porque o mercado não faz política pública. Nós precisamos de políticas públicas no campo da alimentação, tem gente passando fome e o mercado não atende isso. Você pode ter a filantropia, que é um esparadrapo que vai segurar por enquanto, mas o mercado tem falhas sérias do ponto de vista social. Então o Estado precisa fazer políticas de Estado. Por isso tem que ter políticas como o Bolsa Família.

Quando o governo vem com esse Auxílio Brasil por um ano, ele está dizendo que o Estado vai dar [um auxílio por um tempo], mas não sabe se vai continuar dando. Então isso já deixa de ser política de Estado. 

No ano eleitoral, a gente entende que todo mundo vai falar a mesma coisa, que vai formular políticas públicas, mas aí é que está o nosso nó de que a sociedade vai conseguir decifrar os reais propósitos de quem está se candidatando.

Colaboraram: Beatriz Saraiva, Bianca Muniz, Bruno Fonseca, Rafael Oliveira

Fonte: Agência Pública (https://apublica.org/)

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