Rússia e China se aliam por nova ordem mundial, diz Financial Times

Posição comum sobre o caso Ucrânia mostra como Putin e Xi buscam reduzir o poderio global dos EUA e criar áreas de influência próprias

A Casa Branca ameaça o Kremlin com sanções “avassaladoras”, “sem precedentes”, se a Rússia atacar a Ucrânia. Mas, num momento em que a crise entra no ponto de ebulição, os esforços imperialistas ocidentais tendem a ser minados pelo apoio da China – a descomunal vizinha da Rússia. A opinião é do jornal britânico Financial Times.

Quando Vladimir Putin viajar para Pequim, para a abertura da Olimpíada de Inverno, na sexta-feira (4), o presidente russo se reunirá com o líder que se tornou seu aliado mais importante: Xi Jinping, da China. Em telefonema entre Putin e Xi em dezembro, o líder chinês apoiou a exigência da Rússia de que a Ucrânia jamais se torne membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental).

Dez anos atrás, tal relacionamento parecia improvável: China e Rússia eram tanto concorrentes como parceiras. Após um período de persistentes disputas de ambos com os EUA, o respaldo de Xi a Putin reflete uma crescente identificação entre os interesses e visões de mundo de Moscou e Pequim. Segundo a mídia chinesa, Xi disse a Putin que “determinadas forças internacionais estão interferindo arbitrariamente nos assuntos internos de China e Rússia”, sob o falacioso pretexto de “defender a democracia e os direitos humanos”.

A crer no Financial Times, os líderes russo e chinês nutrem a convicção de que os EUA estão empenhados em levar a cabo um complô para solapar e derrubar seus governos. Recentemente, quando irrompeu a agitação no Cazaquistão, Putin acusou os EUA de tentarem patrocinar uma “revolução colorida” – movimentos de protesto que pretendem mudar o governo – em um país que tem fronteiras com Rússia e China. Altos ministros chineses corroboraram essas observações.

Aos olhos de Rússia e China, a revolta no Cazaquistão seguiu um padrão. O Kremlin argumenta há muito que os EUA são a mão oculta por trás da revolta da praça Maidan, na Ucrânia, de 2013-14, na qual o presidente pró-Rússia foi alijado do poder. A China também insiste que forças estrangeiras (leia-se, os EUA) estavam por trás dos grandes protestos insuflados em Hong Kong em 2019.

Putin e Xi deixaram claro: o objetivo final dos EUA é derrubar os governos russo e chinês – e as “forças locais pró-democracia” são o cavalo de Troia estadunidense. Na opinião deles, as “revoluções coloridas” advêm de falhas fundamentais na atual ordem mundial: a combinação de instituições, ideias e estruturas de poder que determina o desenrolar da política global. Em decorrência disso, compartilham a determinação de criar uma ordem mundial que acomode melhor os interesses de Rússia e China.

A “unipolaridade” e a “universalidade” são duas características da atual ordem mundial às quais os russos e os chineses se opõem. A atual configuração dá excessivo poder aos EUA. A “unipolaridade” significa que, após o colapso da União Soviética, o mundo ficou com apenas uma superpotência: os EUA.

Para o russo Fyodor Lukyanov, pensador de política externa próximo a Putin, a unipolaridade “deu aos EUA a capacidade e a possibilidade de fazer o que bem quisessem no cenário mundial”. A nova era da hegemonia americana, diz ele, foi introduzida pela Guerra do Golfo de 1991 – na qual os EUA reuniram uma coalizão mundial para expulsar as forças de Saddam Hussein do Kuait.

A Guerra do Golfo foi seguida por uma sucessão de intervenções militares lideradas pelos EUA em todo o mundo – inclusive na Bósnia e em Kosovo na década de 1990. O bombardeio de Belgrado, a capital da Sérvia, pela Otan, em 1999, é parte do argumento da Rússia de que a Otan não é uma aliança puramente defensiva. O fato de as bombas da Otan terem atingido a embaixada chinesa em Belgrado não foi esquecido por Pequim.

Após os atentados terroristas de 11 de setembro, a Otan invocou o Artigo 5 (sua cláusula de defesa mútua) e invadiu o Afeganistão. Mais uma vez, de acordo com Lukyanov, os EUA demonstraram sua disposição e capacidade de “transformar o mundo pela força”. Mas a derrota dos EUA no Afeganistão, simbolizada por sua caótica retirada de Cabul em agosto, acalentou a esperança dos russos de que a ordem mundial encabeçada pelos EUA esteja se esfacelando. De acordo com Lukyanov, a queda de Cabul nas mãos do Talibã não foi “menos histórica e simbólica do que a queda do Muro de Berlim”.

O pensamento de acadêmicos chineses influentes segue linhas semelhantes. É o caso de Yan Xuetong, diretor da faculdade de relações internacionais da Universidade Tsinghua de Pequim (a “alma mater” de Xi). “A China crê que sua ascensão ao status de grande potência lhe dá o direito de desempenhar um novo papel nos assuntos mundiais – um papel impossível de ser conciliado com um domínio incontestável dos EUA”, escreve Yan.

A exemplo de Lukyanov, ele acha que “a ordem mundial encabeçada pelos EUA está desaparecendo. Em seu lugar entrará uma ordem multipolar”. O próprio presidente Xi Jinping pôs a questão de forma ainda mais sucinta ao afirmar, reiteradamente, que “o Oriente está em ascensão e o Ocidente, em declínio”.

Para a Rússia e a China, a instauração de uma nova ordem mundial não é simplesmente uma pura questão de poder. É também uma luta entre ideias. Enquanto a tradição liberal ocidental quer impor a ideia dos direitos humanos universais (desde que “chancelados” pelos EUA), os pensadores russos e chineses argumentam que se deve permitir que diferentes tradições e “civilizações” culturais se desenvolvam de maneiras diferentes.

Vladislav Surkov, no passado um influente assessor de Putin, criticou os “esforços repetidamente inúteis da Rússia de se tornar uma parte da civilização ocidental”. Em vez disso, segundo Surkov, a Rússia deveria abraçar a ideia de que “absorveu tanto o Oriente quanto o Ocidente” e que tem uma “mentalidade híbrida”. Na mesma linha, os pensadores pró-governo de Pequim dizem que uma fusão de confucionismo e comunismo permite concluir que a China sempre será um país que enfatiza o direito coletivo, e não o individual. O sucesso da China em deter a Covid-19 reflete a superioridade do enfoque chinês na ação coletiva e nos direitos do grupo.

A atual ordem mundial é caracterizada pela tentativa americana de impor ideias ocidentais sobre democracia e direitos humanos a outros países, se necessário por meio da intervenção militar. Em vez disso, a nova ordem mundial proposta por Rússia e China se baseia em esferas de influência diferentes – e os EUA abandonariam seu apoio às revoluções coloridas.

A Rússia e a China têm, sem dúvida, queixas semelhantes sobre a ordem mundial atual. Há também algumas diferenças relevantes entre os enfoques de Moscou e de Pequim. A Rússia está mais disposta a correr riscos militares do que a China. Mas, enquanto a Rússia aspira a ser uma das grandes potências mundiais, a China parece contemplar a ideia de substituir os EUA como a principal potência do mundo.

A diferença na escala das ambições da China e da Rússia reflete a diferença de seus potenciais econômicos. Hoje o tamanho da economia da Rússia corresponde aproximadamente ao da Itália. Moscou simplesmente não tem riqueza suficiente para sustentar uma tentativa de disputar a supremacia mundial. Mas a China, segundo algumas estimativas, é a maior economia do mundo, a maior potência industrial e a maior exportadora. Sua população de 1,4 bilhão de pessoas é cerca de dez vezes a da Rússia.

Os chineses têm, portanto, muitos instrumentos econômicos para expandir sua influência, algo que simplesmente não está disponível para os russos. Um projeto característico dos anos Xi é a Iniciativa do Cinturão e da Rota, um vasto programa internacional de obras de infraestrutura financiadas pela China que se estende para Ásia Central, África, Europa e América.

Como os EUA se tornaram mais protecionistas, a China também vem usando seu poder no comércio para ampliar sua influência global. Em janeiro, foi lançada a Parceria Econômica Regional Abrangente, nova e vasta área de livre comércio na região Ásia-Pacífico que inclui a China e vários aliados estratégicos americanos, como Japão e Austrália – e da qual os EUA não participam. Permitir ou negar acesso ao mercado chinês dá a Pequim uma ferramenta para exercer sua influência mais do que Moscou.

Com informações do Valor Econômico