Guerra cultural inverte o sentido original da política ao suprimir o diálogo

O modo como a retórica do ódio se expressa em forma de disputas de narrativas nas plataformas de redes sociais precisa ser superada pelo debate ideológico e crítico para resgatar o diálogo e a democracia, é o que dizem os especialistas em debate promovido pela ADJC, no contexto do Fórum Social das Resistências.

O tema da Guerra Cultural e da Luta ideológica foi objetivo de debate, promovido pela Associação dos Advogados pela Democracia, Justiça e Cidadania – ADJC, com a participação do advogado e diretor da ADJC, Aldo Arantes, do professor João Cezar de Castro Rocha, da doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, Renata Mielli, do advogado Lúcio Flávio de Castro Dias e do diretor da Abong, Mauri Cruz.

A atividade virtual é a primeira a ocorrer no contexto do Fórum Social das Resistências, que estaria realizando sua Marcha de abertura nesta quarta-feira, em Porto Alegre, não fosse o contexto de agravamento da pandemia. A programação completa consta do site www.forumsocialdasresistências.org.br.

Aldo Arantes falou da importância de dar um basta aos ataques do governo Bolsonaro às instituições democráticas, aos movimentos sociais, com desinformação e negacionismo científico. Para isso, ele lembrou do lançamento do livro Reconstruir a democracia: União de amplasforças políticase sociais para a luta ideológica, que reuniu especialistas de diversas área para analisar este processo de guerra cultural e ideológica que a extrema direita promove.

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Para ele, a guerra cultural visando eliminar o inimigo, precisa ser substituída pelo debate ideológico que apela ao pensamento crítico. Ele observa que o mesmo eleitor que votou em Lula, votou depois em Bolsonaro, em função da guerra cultural que hegemonizou o debate político. 

Por isso, Aldo acredita que o resgate do debate crítico que rompa com a disputa de narrativas raivosas do bolsonarismo é a única forma de resgatar a democracia no Brasil. Ele complementou su raciocínio com as inúmeras contradições do governo Bolsonaro que se impõem apesar da disputa de narrativas e da guerra cultural, conforme se tornam verdades factuais que afetam diretamente a vida concreta dos brasileiros.

Assista o debate na íntegra e leia trechos abaixo:

A frente ampla contra o trumpismo

Lúcio Dias fala no livro sobre como essa guerra cultural se expressou no Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia) e no governo Trump.

O estrategista político Steve Bannon, da Cambridge Analytica, disseminou sua informação de forma dirigida e personalizada pelo Facebook aos britânicos para atacar a parceria entre o Reino Unido e a União Europeia. Mensagens indetectáveis e irrespondíveis em suas mentiras que levaram à falência da democracia liberal britânica. 

Bannon era dono de ideias tradicionalistas parecidas com a de Olavo de Carvalho, no Brasil, falecido ontem (25), com origem em René Guénon, que busca a nova era de ouro por meio da destruição da cultura intelectual atual. A partir de seu sucesso no Brexit, Bannon foi à campanha de Trump, com uma base de informações de bigdata do Facebook ainda maior nos EUA.

Assim como o Reino Unido foi surpreendido pelo Brexit, a vitória da campanha de Donald Trump surpreendeu todo o stablishment americano. No Brasil, Bannon utilizou toda sua tecnologia de desinformação na campanha de Jair Bolsonaro. 

A derrota de Trump, por margem pequena, só foi possível por uma frente ampla de união de movimentos sociais que buscaram apoio na direita moderada dos EUA e na desistência de seu candidato de esquerda para garantir a vitória de Joe Biden.

Para Lúcio, há um falso debate entre frentes de esquerda e frente ampla para o enfrentamento do bolsonarismo. Para ele , as federações partidárias são uma conquista importante mas insuficiente para isso. As frentes amplas precisam agir por setores, em defesa da saúde, da universidade, do estado de direito, agregando estes segmentos sociais interessados. 

Em sua opinião, a esquerda perdeu os contatos com os setores populares, por meio do desmonte dos sindicatos e comunidades eclesiais de base. Esses segmentos foram substituídos pelos setores religiosos, que também funcionam como redes de solidariedade, mas são manipuladas a favor da extrema-direita.

Para ele, é preciso buscar uma linguagem comum com esses setores populares, que é a realidade econômica que afeta essas populações. É possível neutralizar essa manipulação da extrema-direita e reconstruir uma hegemonia progressista do debate político.

A eliminação da mediação 

O professor João Cézar procura identificar o funcionamento da guerra cultural no Brasil, em particular. Através de notícias falsas e teorias conspiratórias, a guerra cultural visa gerar narrativas polarizadoras com a finalidade de inventar inimigos em série para manter a base engajada. 

A redução da política entre amigos e inimigos a torna uma questão de afetos, em que as relações se dão pelo ódio, raiva, ressentimento ou adoração irracional, que inverte o sentido da política que é a capacidade de dialogar. Essa retórica do ódio gera o caos cognitivo em que vivemos.

Há uma dificuldade de definir discurso de ódio (hate speech) por não haver um limite claro entre liberdade de expressão, expressão de desacordo e discurso de ódio. Por isso, o professor prefere falar em “retórica” do ódio, como uma arte da linguagem, em que se adapta o discurso a um público determinado para atingir um fim específico.

Essa retórica foi desenvolvida por Olavo de Carvalho no Brasil, e assimilada de forma a sobreviver a ele por inspirar think tanks (institutos de pensamento político) que atuam intensamente atualmente. 

O primeiro recurso é a desqualificação e nulificação do outro, que precisa ser eliminado ou segregado, como ocorreu durante o nazismo com os judeus. “Não é possível conversar com um bolsonarista e olavista sem começar pela desqualificação do xingamento. É preciso identificar o inimigo interno e eliminá-lo como previa a Lei de Segurança Nacional de 1969”, exemplifica ele.

As hipérboles desqualificadoras do pensamento pela argumentação extremista, fala em doutrinação marxista e conspiracionismo sem precedentes, maior escândalo de corrupção. São qualificações exacerbadas difundidas pela extrema direita que suprimem as mediações. Se não há mediação, não há pensamento e compreensão crítica da realidade.

Assim, o objetivo da extrema-direita em todo o mundo é suprimir as mediações da política entre a massa e o líder carismático, como os ataques ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal, por exemplo.

Para ele, é fundamental fugir da disputa de narrativas ao repetí-la, pois perderemos sempre nesta lógica da linguagem digital em que só se compreende raciocínios simples e diretos, rejeitando as complexidades do pensamento.

João Cézar parafraseia Hanna Arendt quando diz que, sem uma verdade minimamente consensual, não é possível haver política. Assim, precisamos evitar a disputa de narrativas e abrir um diálogo sem adjetivações, dialogando a partir da verdade factual do “supermercado que vende osso de primeira, com tutano, e osso de segunda que só faz um caldo ralo”.

As trocas simbólicas nas plataformas tecnológicas

Renata Mielli fala da centralidade de conteúdos que despertam o ódio, a raiva e o medo, expressos pela retórica do ódio, como elemento impulsionador dos processo de troca simbólica mediada pelas grandes plataformas de redes sociais. Essas emoções sempre foram utilizados no debate político, observa a jornalista.

Os meios tecnológicos também não são novidade nessa manipulação, como já se observava no uso do rádio e do cinema no nazismo. O desequilíbrio enorme para a esfera pública do debate se deu pelas novas tecnologias de informação, que superam a influência dos meios tradicionais de comunicação. 

Essa plataformas têm a vantagem de que seu design prevê que os conteúdos sejam produzidos pelos milhões de usuários, e não mais por corporações de comunicação. A captura de atenção para esses conteúdos se dá em função dos interesses das plataformas, que giram em torno da emoção e da moralidade, que “viralizam” pelo contágio social da baixa necessidade de reflexão e alta capacidade de reatividade.

A capacidade de perfilar os usuários por meio dos algoritmos é a vantagem que as plataformas têm para garantir o engajamento pela nossa reação emocional a conteúdos. Esses perfis definidos criam bolhas de usuários estratificados e polarizados em posições incapazes de diálogo. É a partir dessa tecnologia que a extrema-direita se aproveita para se desenvolver. 

Como desenvolver vacinas para enfrentar essa guerra cultural imposta pela extrema direita? “Precisamos admitir que é preciso haver uma regulação sobre o debate no interior dessas plataformas tecnológicas privadas, que nos tornam reféns da mediação dos algoritmos elaborados sem qualquer escrutínio público”, defende Renata. São mecanismos criados por seres humanos com vieses de gênero e raça, assim como políticos e ideológicos, que beneficiam empresas com mais poder e recursos que muitos governos e países. 

A perda do diálogo social

Mauri Cruz relata sua origem na cultura política dos movimentos sociais de massas, posterior à geração que lutou contra a ditadura, em que o diálogo democrático é a base da construção das relações. Esta cultura política se confronta com toda a lógica de guerra cultural bolsonarista que é nova para a esquerda e impõe desafios ao seu modus operandi.

Para além dos desafios impostos pela disputa de narrativas das redes sociais, ele observa que o bolsonarismo promoveu o comércio de trezentas mil armas na sociedade brasileira, que é algo que não faz parte da dinâmica da disputa política da esquerda. Ele alerta para o fato de que Lula e Bolsonaro eram colocados na disputa eleitoral de 2018 como as alternativas, pela “autenticidade” que representavam no imaginário popular, e não pela disputa ideológica.

Cruz aponta a necessidade da esquerda estar aberta ao diálogo com a sociedade, em meio a esse clima de polarização, disposta a ouvir aquilo que lhe é desagradável. Ele observa que essa cultura de diálogo e consciência crítica é fundamental, como foi durante os debates entre os movimentos sociais e os governos Lula e Dilma, que também precisaram ser disputados. Uma disputa, por outro lado, que levou a uma perda de consciência crítica da esquerda no poder, e se reflete agora.

Ser governo é estar no centro da contradição, conforme precisa mexer em privilégios e fazer as transformações sociais, diz ele. é preciso colocar a contradição à vista do povo, em sua opinião, como ocorria com o Orçamento Participativo, em Porto Alegre, que explicitava as contradições entre os interesses da sociedade e os interesses do capital.

Nos governos democráticos, por outro lado, isso não ocorria. “Pelo contrário, naturalizava as contradições entre os interesses do povo e do capital”, defendeu Cruz. Neste sentido, de acordo com ele, o agronegócio ganhou projeção principalmente nos governos de Lula e Dilma. “Essa postura nos desarmou para enfrentar o momento atual”.

Manifesto: “Guerra Cultural: Alerta ao Povo Brasileiro”

O debate ainda aproveitou para fazer o lançamento do manifesto da ADJC sobre a guerra cultural em andamento. O manifesto faz um diálogo com a sociedade ao expressar algumas ideias centrais desse debate e os desafios e prática política necessários para enfrentá-la.

Leia a íntegra do Manifesto aqui

Sobre o Fórum Social das Resistências 2022

O FSR estava previsto para acontecer no formato híbrido (online e presencial) entre os dias 26 e 28 de janeiro, mas foi adiado para os dias 27 a 30 de abril devido ao aumento do número de casos confirmados de Covid-19 em todo o país. 

Esta série de debates continua nesta quinta (27), 19 horas, sobre O cerco dos EUA e OTAN à China e à Rússia contará com a participação da cientista política Ana Prestes e do doutor em geografia Elias Jabbour, ambos YouTubers da TV Grabois, e também de Bruno Jubran, doutor em Estudos Estratégicos Internacionais, Andrey Kochetov, Presidente da Federação Sindical de Lugansk e do cientista político Diego Pautasso.

No dia 28 de janeiro, 9h30 outro debate sobre a situação internacional vai discutir As agressões imperialistas e a resistência dos povos. Promovido pela Cebrapaz e FMG, entre outras entidades, terá a presença de Socorro Gomes, presidenta do Conselho Mundial da Paz, de Atílio Boron, doutor em Ciência Política pela Universidade de Harvard, Ahmad Alzoubi, diretor do Monitor do Oriente Médio no Brasil; Jones Manoel da Silva, historiador da Fundação Dinarco Reis e Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe Palestina no Brasil.

Fechando a programação, na sexta-feira dis 28/01, às 19 horas, acontecerá o debate de lançamento do livro de Elias Jabbour e Alberto Gabriele China: O Socialismo do século XXI, com as participação de Elias Jabbour e Tarso Genro.

O Fórum Social das Resistências é um evento inserido dentro dos processos do Fórum Social Mundial (FSM). A ideia é criar um espaço de articulação, divulgação e ampliação de todas as formas de resistências criadas pelos movimentos culturais, ambientais, políticos e sociais no Brasil e na América Latina.

Um dos principais objetivos do FSR é identificar pontos de consensos, prioridades coletivas e a construção de uma Agenda Comum de Lutas para o próximo período. As propostas construídas serão apresentadas no FSM 2022, que será realizado no mês de maio na Cidade do México.

Da Fundação Maurício Grabois