Animals do Pink Floyd e a crítica à política neoliberal inglesa

O clássico disco da banda inglesa, lançado há exatos 45 anos, continua atual em sua discussão, levantando as mazelas do sistema capitalista e a exploração de uma classe sob a outra, mostrando como a arte pode servir como instrumento de formação política e de consciência de classe

Capa do álbum Animals da banda inglesa Pink Floyd. A imagem faz referência a usina de Battersea e acima dela sobrevoa um porco inflável, simbologia presente nas músicas.

Inglaterra, década de 60, a neblina cega os olhos dos trabalhadores da Manchester cinzenta. As mãos calejadas com cortes profundos são meros reflexos das horas exaustivas de trabalho alienado, que providenciava o pão de cada dia dos jovens sem qualquer perspectiva de vida além de cumprir o mesmo oficio fabril que seus pais. Ao sair das fábricas, a melodia se faz presente nas ruas e clubes: as guitarras distorcidas anunciam o fio de vida e a juventude que ainda resta no meio de tanta fuligem e exploração. As calçadas anunciam apresentações psicodélicas, com integrantes completamente alucinados em meio a tanta ociosidade, o Sgt. Peppers Lonely Hearts Club dos Beatles tocam nas lojas de discos, sua estranheza desde a capa ou as letras e melodias peculiares fazem seus ouvintes pensarem para além de sua materialidade. O cotidiano é duro, os dias são os mesmos, o tempo se esvai quando ele se torna matéria-prima para as fábricas e o som daqueles que tiveram a oportunidade de sair desse círculo vicioso talvez seja a última válvula de escape que resta.

A música é uma forma de aliviar as inquietações que nos são postas no meio social. O modo que as letras são proferidas em meio a melodia, conta, histórias de concepções de mundo, leva a imaginação a construir um cenário diferente daquele posto pela realidade. Os sujeitos que produzem as letras por vezes abordam o meio ao qual estão inseridos, formulam utopias e acima de tudo tentam quebrar o status quo. Assim, a música é também um ato político, uma forma de protesto em tempos autoritários, com o poder de alcançar grandes públicos e promover a reflexão daqueles que estão à margem. É o reflexo da realidade na qual são feitas, o grito e a inquietação por mudanças dos que cantam e escutam.

A juventude inglesa a partir da década de 60/70 pode ser estudada a partir da música de seu tempo e a política imposta no período que vai influenciar diretamente a construção das letras e sonoridade. A consolidação do rock nas décadas posteriores irá proporcionar a formação de novas vertentes, como o Heavy Metal, que em sua essência é formado por músicos que eram operários e cujas letras faziam refletir essa realidade, marcada pelo forte conservadorismo social e religioso britânico. Ozzy Osbourne, grande representante do gênero, em entrevista, resumiu as perspectivas do operariado naquele período: “Eu nasci e vivi, durante muitos anos, num lugar em que a vida era trabalhar, trabalhar e trabalhar, do berço à sepultura, em fábricas de de chapa de aço”. Temos como marco desse gênero o primeiro álbum do Black Sabbath, que traz o próprio nome da banda, e é marcado por riffs sombrios e forte teor ocultista, suas letras traziam temáticas que foram taxadas como satânicas naquele contexto conservador de 1970, ano de lançamento do disco. Assim, a música é influenciada pelos fatores políticos de seu tempo, e isso perpassa pelo lugar social e de classe do sujeito que compõe as canções.

Capa do álbum Black Sabbath, lançado em 1970. Considerado o percussor do Heavy Metal.

Cinco anos após o lançamento do Black Sabbath, as ruas eram tomadas pelos dizeres “Good Save The Queen”, faixa da música do grupo britânico Sex Pistols. A composição trazia duras críticas a coroa inglesa e a ociosidade da população que era conformista e pouco se importava com a transformação da realidade. O álbum foi censurado, mas mesmo assim chegou primeiro nas paradas e se tornou um hino para a transgressão política promovida através da música. A musicalidade da Sex Pistols marcou o imaginário britânico por ser uma banda que representa o ápice da música Punk, que vinha sendo difundida pelo The Clash e os Stooges, detentoras de um forte ideário de constatação política por meio do visual transgressor e as fortes críticas ao governo através das letras que discursavam ideias socialistas e anarquistas. Dentro do movimento também se destaca os grupos formados inteiramente por mulheres, e que traziam a discussão de gênero naquele espaço dominado por homens, como por exemplo as bandas The Runaways, The Slits e X-Ray Spex.

Simbologia da banda punk Sex Pistols, trazendo uma dura crítica a monarquia inglesa.

Diante desse cenário de forte contestação do status quo promovido culturalmente através da música, é necessário reconstituir o quadro político que serviu como plano de fundo para o surgimento destas vertentes do rock. A Inglaterra da década de 70 é marcada pela renovação do modelo liberal, implementado no contexto europeu e norte-americano até 1929, com a quebra da bolsa de valores. Em síntese, a filosofia política liberal como teoria apresentava características no sentido econômico de livre-mercado, sem intervenção estatal e no campo social a liberdade de pensamento e a defesa dos direitos humanos. Essa doutrina não se concretiza no sentido prático, principalmente a luz da teoria que surge de sua decorrência, o neoliberalismo, teorizado principalmente pela Escola de Chicago e que prega a supressão de políticas de cunho social, privatização de empresas do estado e consequentemente o estado mínimo.

O estado de Bem-estar social, característica marcante do neoliberalismo empregado na Inglaterra, que se diz favorável às noções de liberdade, foi responsável pela censura das bandas que o criticavam, pela perseguição ao movimento sindical e ao Partido Trabalhista inglês. O neoliberalismo atuou na Inglaterra por meio do partido conservador, que como maior representante a líder do partido em 1975, conhecida Dama-de-Ferro, Margareth Thatcher. Nesse cenário, a Inglaterra thatcheriana fica conhecida pela ascensão da desigualdade socio-econômica, no qual a renda do trabalhador ficou estagnada, enquanto as classes burguesas ficaram 41% mais rica, sem contar a forte perseguição aos sindicatos operários e trabalhistas, implementando uma política totalmente anti-sindical. Com esta última medida fica óbvio o quanto o estado com características neoliberais tem receio dos trabalhadores de forma organizada, vendo-os como uma ameaça a sua manutenção e soberania.

As políticas neoliberais proporcionaram altas taxas de desemprego na Inglaterra, chegando a marca de 1 milhão em 1976, sem contar a grande precariedade das relações trabalhistas fabris que irão desembocar durante toda a década, inúmeras greves e paralisações chegando a mais de 2.412. Sendo assim, fica explícito que a liberdade que o neoliberalismo defende é acessível apenas a classe burguesa, aos trabalhadores resta opressão e miséria, numa lógica de que as demandas do mercado são mais importantes que suprir a necessidade de condições básicas da população. Diante desse cenário conturbado, marcado pela dicotomia política entre partido Trabalhista e Conservador, neoliberalismo, desemprego, fome e miséria, a música nasce como grito de resistência e crítica ao status quo, segundo o historiador social Marcos Napolitano:

A experiência musical é o espaço de um exercício de “liberdade” criativa e de comportamento, ao mesmo tempo em que se busca a “autenticidade” das formas culturais e musicais, categorias importantes para entender a rebelião de setores jovens, sobretudo oriundos das classes trabalhadoras inglesas ou da baixa classe média americana. (NAPOLITANO, Marcos. História & Música, p.9)

Nesse sentido, a banda inglesa Pink Floyd fundada em 1965, na caótica Londres, fez duras críticas ao sistema capitalista e o estado neoliberal inglês. O grupo, desde seu início, trouxe fortes marcas do progressivo, psicodélico e o rock espacial, tratando de temáticas relativas ao espaço no contexto da guerra fria. Com isso, percebe-se o quanto a banda recebe as influências políticas em nível internacional para a construção de suas letras e estética musical. O ano de 1967 é palco de grandes conflitos, um deles é o combate popular que ocorreu no Carnaval de Notting Hill, em que uma grande parcela das pessoas se voltaram contra a polícia com pedradas e garrafadas pela constante prática do stop and search, na qual a comunidade negra era constantemente parada e revistada sem qualquer motivo, um ato explicitamente racista.

Conflito no Carnaval de Notting Hill no ano de 1967.

Essa série de revoltas populares contra o estado inglês marca o período do ano de 1977, em que o Pink Floyd lança seu décimo álbum de estúdio, intitulado Animals. O título faz referência ao livro Revolução dos Bichos de George Orwell, publicado em 1945 e que usa uma metáfora com animais para retratar a gênese e decorrências do governo soviético, mostrando como se deu a ascensão do partido por Lênin, os conflitos entre Trotsky e Stálin e como o povo corroborou para a experiência socialista. O livro é considerado um clássico e exemplifica o porquê revoluções não devem acontecer sem consciência política e de classe em sua totalidade. Usando essa temática como ponto de partida, o álbum é constituído por cinco faixas e contém 3 personagens principais, Dogs, Pigs e Sheep.

Começando com a base, a faixa Sheep alude à classe trabalhadora que vive em processo pleno de alienação, acreditando nos discursos daqueles que precisam mantê-la sob dominação. Na letra fica claro os instrumentos usados para viabilizar isso, um deles é a educação reprodutivista e alienante. Paulo Freire discute que a educação reflete muito a realidade e a postura do estado da qual esta inserida, e quando esta se mostra em defesa do capitalismo e do trabalho tecnicista impacta diretamente os níveis educacionais. Isso leva um ensino que valoriza a obediência e submissão as ideologias dominantes, com isso os indivíduos tornam-se agentes passivos e ingênuos, sem qualquer consciência de classe e expectativa de mudar a realidade. Isso se relaciona com os discursos punks de conformidade da população inglesa, que permanecem sentadas em frente a televisão, passivas aos discursos de seus governantes que os exploram cotidianamente.

A faixa Dogs, tem 17 minutos de duração e aborda pessoas envolvidas na política institucional e usam este poder para exercer força coercitiva sob o outro, em forma de dominação, principalmente as ovelhas. Na letra, fica claro a relação de classes que é estabelecida, os cachorros são os responsáveis por manter uma classe dita como inferior sob controle. Para mantê-los em sua posição privilegiada em contraposição ao outro, precisam manter o status quo de classe, contribuindo e mantendo o processo de alienação. Isso está presente de forma latente na sociedade capitalista, onde a classe média se identifica mais com a classe burguesa, e quer ascender para esta, do que a classe trabalhadora, da qual é mais próxima em sentido prático. Podemos encontrar essa relação no Manifesto Comunista, de Marx & Engels:

As classes médias — o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês –, todos combatem a burguesia para preservar do desaparecimento sua existência como classes médias. Portanto, não são revolucionárias, mas conservadoras. Mais ainda, são reacionárias, pois procuram girar a contrapelo a roda da História. (MARX & ENGELS, Manifesto do partido comunista)

Dessa maneira, Roger Waters expõe a lógica presente no sistema capitalista inglês, a adesão das classes médias ao partido conservador, e como sua manutenção nessa posição perpassa um discurso demagogo e quando este não obtém êxito, se transfigura em violência física, por meio da repressão e censura daqueles que estão “abaixo”.

Por últimos os Pigs, dividido entre três partes, a música faz analogia a classe burguesa, que domina os cachorros e as ovelhas, isso se configura na própria personificação e a atuação da propaganda e o uso da ideologia por parte das pessoas que estão no poder. A música faz referência a personalidade da Mary Whitehouse, uma influente personalidade política na Inglaterra da década de 70, tendo caráter conservador, usa diversos pontos para colocar sua verdade de forma universal, utilizando propaganda para atingir as massas, entre esses os cachorros e ovelhas. Com esta afirmação fica claro a associação das ideias do álbum com aquele contexto histórico inglês de remodelação do neoliberalismo em ascensão. O próprio uso do porco em cima de uma fábrica no encarte do álbum denota a ascensão da ideologia burguesa que está no ápice de seu poder. Os porcos seriam o símbolo de dominação de uma classe sob todas as outras, por meio da coerção de ideias e da propaganda sistematizada.

Nesse sentido, percebemos o quanto a música está intrinsecamente relacionada com seu contexto político, e esta por vezes assume um caráter de denúncia, como uma forma de trazer debates para aqueles que estão alheios. O álbum Animals continua atual em sua discussão, levantando as mazelas do sistema capitalista e a exploração de uma classe sob a outra, mostrando como a arte pode servir como instrumento de formação política e de consciência de classe. No momento que um artista levanta sua voz contra a exploração a resistência ecoa por meio de sua sonoridade, e será ouvida por aqueles dispostos a mudar a realidade em que vivem.

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Fonte: Currais/Medium

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