A Reforma Trabalhista na Espanha: reação ao neoliberalismo?

As promessas de progresso material universal por meio de reformas pró-mercado jamais se concretizaram.

A nova legislação trabalhista espanhola, aprovada no final de 2021, se projeta globalmente como uma reação aos excessos liberalizantes das últimas quatro décadas. Sua construção se deu a partir de uma negociação ampla entre os distintos segmentos sociais, particularmente os sindicatos de trabalhadores e as representações empresariais. O acordo estabelecido permitiu com que a Espanha siga tendo acesso aos recursos da União Europeia no montante de €70 bilhões para o programa de combate aos efeitos da pandemia da Covid-19. Ele se enquadra no esforço de alinhamento com as diretrizes comunitárias para tornar o mercado de trabalho mais “dinâmico, resiliente e inclusivo.” 

A combinação entre taxas elevadas de desemprego, especialmente entre os jovens, e precarização crescente dos contratos de trabalho marcou a realidade espanhola das últimas décadas, particularmente do período que se seguiu à crise financeira global de 2007-2009. Em 2010, com os socialistas (PSOE) e, em 2012, com os conservadores do Partido Popular (PP), as reformas aprofundaram a flexibilidade no mercado de trabalho, reduziram a força dos sindicatos de trabalhadores e, também, os custos para demissões. Com isso, deu-se a inflexão normativa que consolidou as iniciativas prévias de liberalização, implantadas durante governos de centro-direita e de centro-esquerda em 1980, 1984 e 1994. 

Ao longo de seu processo de redemocratização e de adesão ao projeto integracionista europeu, a Espanha seguiu de forma estrita as reformas liberalizantes: privatizou estatais, promoveu a liberalização comercial e financeira e desregulamentou vários setores da sua economia. A renda per capita espanhola dobrou entre 1978 (US$ 14 mil) e 2007 (USD 27 mil) em valores constantes, com uma variação média anual de 2,1%, padrão médio equivalente àquele observado na União Europeia e nos países da OCDE. Porém, com a crise econômica e a pandemia, os espanhóis recuaram seus padrões de rendimento em 2020 para os níveis de 2001: US$ 24 mil dólares. Depois de 2008, a taxa média de variação do PIB per capita foi de -0,6% a.a., abaixo da média da U.E. (+0,3%) e da OCDE (+0,4%). Com avanços inequívocos, a prosperidade não se enraizou em toda a sociedade. Enquanto seus vizinhos europeus conviveram com taxas médias de desemprego de 9% nos dois subperíodos antes mencionados, a Espanha apresentou indicadores significativamente maiores: 15% e 19%. O avanço na liberalização não recuperou o dinamismo econômico e o emprego. 

É nestes marcos que o atual governo decidiu revitalizar dois pilares fundamentais da regulação do mundo do trabalho, quais sejam: a negociação coletiva; e a segurança dos indivíduos, por meio da limitação dos contratos em tempo parcial. A Ministra do Trabalho e da Economia Social, Yolanda Díaz, celebrou o acordo e manifestou a expectativa de que se tenha “virado a página da precariedade”. Da mesma forma, o Ministro da Inclusão, Mobilidade Social e Imigração, José Luis Escrivá, considerou que o país “tem que deixar para trás a ideia de competir através da desvalorização dos salários.”. 

Financial Times destacou que a nova reforma preservou parte da flexibilidade introduzida no começo dos anos 2010: “…  as empresas mantiveram o direito de flexibilizar as horas trabalhadas, ainda que os salários sejam determinados por acordos setoriais … restaurando-se o poder de barganha dos sindicatos”. As organizações patronais perceberam que foi possível manter uma gestão flexível da produção de acordo com as condições de mercado. O comunicado conjunto da Confederación Española de Organizaciones Empresarial e da Confederación Española de la Pequeña y Mediana Empresa (CEPYME) afirmou que a reforma “consolida a legislação atual e possibilita às empresas aumentar sua produtividade e competitividade”. 

O Vice-Secretário-Geral da UGT (Unión General de Trabajadores), Mariano Hoya, enfatizou que esta foi “a primeira reforma feita na Espanha na era democrática onde direitos trabalhistas são restaurados”. Os sindicatos de trabalhadores saíram fortalecidos, com a barganha coletiva (setorial ou regional) sendo reimposta sobre os acordos individuais entre empresas e empregados. Ademais, os contratos permanentes foram considerados como as modalidades estruturantes das relações laborais. A manifestação conjunta das principais centrais sindicais pontuou que o novo acordo foi: “pactuado, ambicioso e [trouxe] melhorias evidentes nos direitos trabalhistas…”.

Na engenharia política espanhola, todas as partes envolvidas saíram da mesa de negociações com a sensação de “vitória”. Todavia, para que tal realidade se materialize, o grande desafio será o de garantir um período longo de expansão econômica capaz de gerar novos postos de trabalho e salários compatíveis com as expectativas de uma sociedade que atingiu níveis elevados de capacitação de seus recursos humanos. Reformas trabalhistas, liberalizantes ou inclusivas, não garantem, per se, o crescimento sustentável da renda. A nova “concertação” espanhola é bem-vinda, quando se toma a perspectiva de construção de alternativas ao processo de fragilização da coesão social engendrado pelo neoliberalismo. Todavia, não parece ser uma revolução. Trata-se da correção de alguns dos excessos mais regressivos das reformas trabalhistas liberalizantes. Neste sentido, as elites econômicas, espanholas e globais, podem seguir dormindo em paz.  

A contrarreforma trabalhista espanhola está longe de ser um “ponto fora da curva”. A ampliação do salário mínimo e o fortalecimento dos sindicatos estão no centro da agenda política da administração Biden. A mesma preocupação se expressa na União Europeia. Em uma perspectiva mais ampla, há que se perceber que a realidade dos países emergentes e em desenvolvimento é marcadamente distinta. Para a maioria dos trabalhadores do mundo não houve uma “idade de ouro” do capitalismo. Por conta disto, mais da metade da humanidade não conta com mecanismos de proteção social, conforme reporta a Organização Internacional do Trabalho (World Social Protection Report 2020-22). A desregulamentação das relações de trabalho e a precarização social não aconteceram, pois não houve um período prévio de estruturação de políticas públicas voltadas para o fortalecimento da coesão social.A Resiliência das Elites e o Trabalho de Sísifo

Fotomontagem: PT

São robustas as evidências empíricas de que a redução da filiação a sindicatosa perda de força das negociações coletivas e a precarização das relações de trabalho contribuíram para a estagnação no crescimento dos salários reais e a ampliação na desigualdade, particularmente nos países de alta renda, os quais experimentaram períodos longos de inclusão social. Assim, mesmo que a relação entre reformas trabalhistas e geração de emprego e de renda seja passível de discussão, há indícios de que aquelas pioram a qualidade das relações capital-trabalho, fortalecendo a posição do primeiro em detrimento do segundo. Assim, por exemplo, Henry S. Farber (Princeton University) e seus coautores (“Unions and Inequality over the Twentieth Century: New Evidence from Survey Data”, The Quarterly Journal of Economics, August 2021) desenvolveram uma base de dados com 980 mil inputs de informações, que remontam ao ano de 1936. Os dados permitiram estabelecer uma relação robusta de longo prazo entre “filiação sindical” e desigualdade. Os resultados reforçaram indícios percebidos em pesquisas realizadas anteriormente por vários economistas de que há uma relação inversa entre sindicalização e desigualdade. O desmonte dos sindicatos na era neoliberal foi uma força decisiva para a piora na distribuição de renda nos EUA e em outros países de alta renda, emergentes e em desenvolvimento

A despeito das controvérsias teóricas, empíricas e normativas, não é possível descartar-se a priori a assertiva de que a desigualdade prejudica o crescimento econômico e a estabilidade social. Isto vai de encontro à perspectiva libertária de que as desigualdades são positivas, posto que refletem as distintas competências e méritos dos indivíduos. Tentar reduzi-las por meio de políticas redistributivas, particularmente pela tributação dos ricos (os “vencedores”) e a criação de direitos sociais universais a serem providos gratuitamente pelo Estado (educação, saúde, previdência, segurança no trabalho etc.) só produziriam ineficiência. 

Privatizar, desregular e liberalizar: na era neoliberal as políticas públicas passaram a responder somente aos anseios dos donos do dinheiro: “menos impostos”, “menos controles e regulações”, “mais liberdade”.  A força dos Estados se impôs sobre os “mais fracos”. Os sindicatos foram fragilizados, o poder de barganha dos trabalhadores e das empresas de menor porte diminuíram diante das pressões competitivas da economia globalizada. Já os grandes conglomerados foram beneficiados pela redistribuição internacional da sua produção, sempre em busca de menores custos, e pela redução da tributação sobre lucros operacionais e ganhos financeiros. Os ricos puderam ampliar suas carteiras de investimentos, apropriando-se do patrimônio social por meio das privatizações, realocando sua riqueza para paraísos fiscais e pagando cada vez menos impostos em seus países de origem. Com isso, os Estados Nacionais se enfraqueceram e perderam a capacidade de investir em infraestrutura e coesão social. 

Em artigo anterior, trouxemos evidências de que as promessas de progresso material universal por meio de reformas pró-mercado jamais se concretizaram. O crescimento econômico global e os ganhos de produtividade se revelaram modestos sempre em comparação com os anos “desenvolvimentistas”. Entre 1951 e 1980, a renda per capita global cresceu, em média, 3,1% a.a.; já depois de 1981, a variação média anual recuou para 1,9% a.a. Os países de alta renda (G7) e as economias latino-americanas, que adotaram as reformas neoliberais com maior amplitude, colheram uma redução relativa no crescimento econômico ainda maior do que a média global. Já os países asiáticos, mais pragmáticos, não aderiram de forma irrestrita ao desmonte de políticas públicas. Eles foram os países com maior crescimento econômico nas últimas quatro décadas.

Os resultados da era neoliberal também estão ilustrados no último World Inequality Report. Em 2021, os 1% mais ricos concentraram entre 44% e 46% do estoque de riqueza na Rússia e Ásia Central, na América Latina e no Oriente Médio e Norte da África, não à toa regiões ricas em recursos naturais e com instituições políticas e sociais que facilitam a acúmulo do poder nas mãos de poucos. Aquela participação era de 25% na Europa, 30% e 34% na Ásia, 35% na América do Norte e 38% na África Subsaariana. Já o quociente entre a participação na riqueza dos 10% mais ricos com respeito aos 50% mais pobres revela um quadro desanimador, particularmente na América Latina, onde os mais ricos têm 630 vezes mais riqueza em relação aos mais pobres. Na Europa e na Ásia este indicador oscila entre 66 e 73; com 127 na Rússia e Ásia Central, 197 na América do Norte, 306 no Oriente Médio e Norte da África e 351 na África Subsaariana.

A concentração da renda e da riqueza é um fenômeno estrutural e persistente no capitalismo, ganhando maior intensidade em períodos de “liberalização” e de ampliação no poder econômico e político das elites. O WDR 2022 revela que a riqueza pública involuiu frente à riqueza privada, particularmente por efeito das privatizações (transferência de patrimônio da sociedade para indivíduos), da redução nos investimentos públicos e do aumento do endividamento. No começo dos anos 1980, a riqueza pública líquida (diferença entre ativos e passivos) em países de alta renda oscilava entre 15% e 30% do total da riqueza nacional. Atualmente, este mesmo indicador está entre -10% e 20% nos EUA e no Reino Unido, e próximo de zero nos demais países deste grupo. Nos países emergentes e em desenvolvimento, o quadro é mais heterogêneo. Nos antigos países do bloco soviético e na China, por exemplo, a riqueza pública excedia aos 70% antes das reformas pró-mercado, atingindo atualmente um valor médio de 30%.  

Privatização prejudicou a qualidade dos serviços públicos e concentrou ainda mais a riqueza no mundo

Outra dimensão de frustração quanto às promessas das reformas neoliberais está na privatização de serviços públicos essenciais, particularmente nos setores de abastecimento de água, saneamento, energia elétrica, infraestrutura urbana, educação e saúde. De acordo com a base de dados da Public Futures, projeto interinstitucional sediado na Universidade de Glasgow, nos anos 2000, particularmente depois da crise financeira global (2007-2009), há um intenso processo de desprivatização, vale dizer, de retorno de controle social e público por serviços que haviam sido privatizados. São mais de 1,5 mil casos de retomada do controle estatal em 58 países, em sua maioria no nível municipal. Esta base de dados detalha qual o processo legal envolvido (término de contratos de concessão, renovação destes, compra de participação acionária privada, abandono dos controladores privados, dentre outros), a composição das estruturas proprietárias das novas empresas e os resultados já percebidos com a retomada do controle público. Há, também, levantamentos sobre as motivações para as “desprivatizações”, dentre as quais se destacam, por ordem de importância, a baixa qualidade e os altos preços dos serviços privados. Este aspecto é essencial, na medida em que a justificativa prévia para as privatizações se centrava na promessa de melhores serviços e preços mais acessíveis. 

Neste contexto, não parece ser uma excentricidade espanhola a contestação da liberalização plena do seu mercado de trabalho, tampouco é uma idiossincrasia latino-americana a emergência de governos de centro-esquerda que revertem privatizações e tentam moderar os efeitos socialmente destrutivos do capitalismo contemporâneo. A World Politics Review fez eco recente àquilo que o Washington Post registrava, ainda em 2019: a emergência de uma nova onda antineoliberal na América Latina. A derrota de Maurício Macri para Alberto Fernandez, os protestos populares no Chile, as tentativas frustradas de golpe de Estado na Bolívia, a instabilidade política no Peru e em outros países da região, sinalizariam para as dificuldades de preservação da coesão social e da democracia em contexto de predomínio das políticas neoliberais. Este quadro já estava claro no começo dos anos 2000, quando da “Pink Tide” latina se deu pela emergência concentrada no tempo de vários governos que priorizaram as políticas de inclusão social. Tal qual o mito de Sísifo, os setores progressistas na América Latina estão em constante labor para desfazer os estragos criados por suas elites predatórias. 

Tais elites não cogitam se unir às parcelas mais racionais dos seus pares nos países de alta renda, cuja ação política se dá a partir de um mínimo de autointeresse esclarecido. No Fórum Econômico Mundial de 2022, um grupo de super ricos (Patriotic Millionaires) renovou as pressões para que os governos nacionais de seus países de origem ampliem a tributação da riqueza, de modo a reverter os desequilíbrios sociais produzidos por quatro décadas de neoliberalismo. Eles sabem que é tecnicamente possível avançar nesta direção sem comprometer a capacidades dos ricos seguirem nesta condição, conforme sugere o estudo conduzido pela Oxfam, realizado com o apoio do Patriotic Millionaires. O estabelecimento de tributação progressiva sobre a riqueza, com taxas oscilando entre 2% (patrimônios superiores a US$ 5 milhões) e 5% (para os bilionários) seria capaz de arrecadar US$ 2,5 trilhões, recursos suficientes para aliviar a pobreza de 1/3 da humanidade e garantir acesso à proteção social para as pessoas que vivem em países em baixa renda.

carta aberta dos milionários patriotas lembra que a “… história revela um quadro bastante sombrio sobre o que pode ocorrer em sociedades extremamente desiguais. Para [garantir] o bem-estar de todos, ricos e pobres, é hora de enfrentar a desigualdade e optar por tributar os ricos.”. Os milionários patriotas sabem que reformar as reformas neoliberais é mais do que uma mera opção, é uma necessidade urgente.

Fonte: Sul21

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