Morre aos 91 anos Elza Soares, a “voz do milênio”

Reconhecida por interpretações singulares e pela grande versatilidade, Elza transitou do samba e da MPB para a bossa nova e o jazz. Na parte final da carreira, rendeu-se também ao hip-hop

Elza Soares I Foto: Reprodução

A Música Popular Brasileira perdeu nesta quinta-feira (20) um de seus talentos mais queridos e extraordinários. Morreu no Rio de Janeiro, aos 91 anos, a cantora e compositora carioca Elza Soares, eleita em 1999 a “voz brasileira do milênio” pela Rádio BBC de Londres. Conforme as redes sociais de Elza, ela faleceu em seu apartamento na Avenida Atlântica, de causas naturais, após uma carreira de mais de 70 anos.

“Ícone da música brasileira, considerada uma das maiores artistas do mundo, a cantora eleita como a Voz do Milênio teve uma vida apoteótica, intensa, que emocionou o mundo com sua voz, sua força e sua determinação. A amada e eterna Elza descansou, mas estará para sempre na história da música e em nossos corações e dos milhares fãs por todo mundo”, informaram, em comunicado, Pedro Loureiro, Vanessa Soares, familiares e Equipe Elza. “Feita a vontade de Elza Soares, ela cantou até o fim.”

Reconhecida por interpretações singulares e pela grande versatilidade, Elza transitou do samba e da MPB para a bossa nova e o jazz. Na parte final da carreira, rendeu-se também ao hip-hop. Vencedora do Troféu APCA, do Grammy Latino e do WME Awards, Elza foi chamada de “filha” pelo jazzista Louis Armstrong e reverenciada na Europa como “a Tina Tuner brasileira”.

Elza Gomes da Conceição nasceu no Morro da Moça Bonita (hoje Vila Vintém), em Padre Miguel, no Rio de Janeiro. Aos 13 anos, inscreveu-se para participar do programa de calouros de Ary Barroso, na Rádio Tupi. Sua estreia não deixou dúvida: além de uma cantora de voz inconfundível, surgia também uma artista esclarecida, de opinião. A jornalista Adriana Lisboa descreveu assim aquele momento histórico:

(Elza) Arrancou gargalhadas da plateia quando subiu ao palco com duas tranças feitas em um cabelo mal arrumado e usando um deselegante vestido emprestado da mãe, cheio de alfinetes para se ajustar melhor aos seus poucos 33 quilos. Não era para ser levada a sério, aquela Elza. O deboche era incentivado pelo apresentador do programa, o compositor Ary Barroso, notório pela crueldade com que tratava os calouros.

Mas Elza Soares não era apenas uma caloura prestes a ser mandada embora do palco com suas esperanças destroçadas ao soar de um gongo. “O que foi que você veio fazer aqui?”, perguntou Barroso, ao que Elza respondeu: “Cantar.” “E de que planeta você vem mesmo?”, continuou o apresentador. E foi então que a menina sem graça obrigou a plateia a se calar ao responder: “Venho do mesmo planeta do senhor. O Planeta Fome”.

Ary, de pronto, anunciou: “Acaba de nascer uma estrela!”. Mas a vida de Elza não tinha nada de glamourosa. Seu pai a obrigou a se casar aos 12 anos com um jovem de 22 que a agredia e a estuprava. Aos 13, ela teve o primeiro filho. O segundo morreu de pneumonia e desnutrição antes de completar 1 ano de idade. Com 20 anos, Elza já tin há dado à luz sete filhos – cinco sobreviveram. Ela contou que, nos períodos de pobreza extrema, chegava a “espantar os urubus para pegar o resto de comida que estava no lixo”.

As adversidades, porém, não impediram Elza de construir uma trajetória artística sólida e marcante. Seu primeiro disco, Se Acaso Você Chegasse, foi lançado pela Odeon em 1960. Ao longo da carreira, gravaria mais de 80 títulos, não se restringindo ao samba e tendo interpretado praticamente todos os grandes compositores brasileiros de sua época.

Vencedora do Troféu APCA, do Grammy Latino e do WME Awards, Elza foi chamada de “filha” pelo jazzista Louis Armstrong e reverenciada na Europa como “a Tina Tuner” brasileira. Sua projeção cresceu ainda mais no exterior após ser consagrada pela BBC como a melhor cantora do milênio.

Elza cantou à capela o Hino Nacional Brasileiro na abertura dos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Maracanã. Foi aplaudida efusivamente por um público de mais de 70 mil pessoas – provavelmente sua maior plateia. Oito anos depois, a cantora caiu de um palco, lesionou gravemente a coluna e teve a mobilidade reduzida. Ao fim da vida, tinha 17 pinos na coluna.

Em 2019, o jornalista Zeca Camargo lançou a biografia da cantora, Elza. No mesmo ano, por iniciativa do então vereador Gilson Reis, do PCdoB, a Câmara Municipal de Belo Horizonte lhe concedeu o título de “cidadã honorária” do município. “Elza Soares é uma mulher que representa a história e a luta das mulheres brasileiras”, afirmou Gilson, ao justificar a homenagem. Segundo o parlamentar, a cantor, filha de pais mineiros, “emprestou a sua voz para muitas mulheres, para o movimento negro e para a arte brasileira. O seu ritmo emociona milhões de pessoas, inclusive em Minas Gerais”.

Elza se emocionou ao tomar a primeira dose da vacina contra a Covid-19, em fevereiro de 2021. “V.A.C.I.N.A.D.A. Com o coração cheio de esperanças, o braço pronto para receber a vacina em prevenção ao coronavírus, a bandeira do meu Brasil nas mãos, o pensamento em cada brasileiro que ainda aguarda sua vez chegar e sem furar a fila da vacinação”, declarou Elza, em suas redes, mandando um recado para o presidente negacionista Jair Bolsonaro: “A ciência venceu o medo, o negacionismo e a desinformação”.

A cantora parte no mesmo dia e mês da morte de Garrincha, com quem foi casada por 16 anos – ele morreu há 39 anos, em 20 de janeiro de 1983, meses após a separação do casal.

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