O que podem os municípios para combater a crise climática no Brasil

Políticas eficientes de mobilidade urbana, planejamento urbano e gestão ambiental são algumas formas das prefeituras atuarem no combate às mudanças climáticas, afirmam pesquisadores que analisaram iniciativas das nove capitais nordestinas e do estado de São Paulo.

Estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e da Universidade de Campinas (Unicamp) analisou a legislação municipal, matérias jornalísticas e documentos institucionais das nove capitais nordestinas (Teresina, Recife, Salvador, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Maceió e Aracaju) e constatou que as gestões locais ainda são ineficientes no desenvolvimento de políticas públicas ou ações direcionadas ao enfrentamento das mudanças climáticas.

As iniciativas mapeadas foram divididas em nove categorias, que abrangem desde legislação de planejamento urbano até acordos intermunicipais de cooperação – Imagem: Reprodução 

O pesquisador Rylanneive Teixeira, doutorando e mestre em Estudos Urbanos e Regionais pela UFRN e primeiro autor do artigo sobre a pesquisa, explica que a escolha desse recorte territorial foi motivada pela alta vulnerabilidade climática e também socioeconômica da região Nordeste e pelo fato de esses estados não receberem tanta atenção na literatura científica. Mesmo assim, os pesquisadores chamam atenção para o fato de que a realidade demonstrada por esse trabalho é comum a outras cidades no resto do País.

Os dados estão no texto Pensando no hoje e no futuro”: iniciativas de mudanças climáticas nas capitais do Nordeste do Brasil. O trabalho foi realizado por pesquisadores da UFRN e da Unicamp com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e os resultados, publicados em forma de artigo na revista Confins, podem ser lidos na íntegra aqui.

Rylanneive Pontes Teixeira é doutorando e mestre em Estudos Urbanos e Regionais pela UFRN e professor substituto do Departamento de Políticas Públicas - Foto: Arquivo Pessoal
Rylanneive Pontes Teixeira é doutorando e mestre em Estudos Urbanos e Regionais pela UFRN e professor substituto do Departamento de Políticas Públicas – Foto: Arquivo Pessoal

De acordo com a equipe, entre os municípios analisados, Maceió foi o que mostrou as piores condições político-institucionais, com uma escassez grande de políticas públicas implementadas voltadas aos problemas frutos da questão climática. Já Salvador, Recife e Fortaleza são as cidades mais avançadas, com uma maior internalização das questões do clima em suas agendas de governo e o maior número de iniciativas implementadas.

Em termos gerais, o que os pesquisadores observaram foi que as gestões locais analisadas têm dado preferência a medidas de adaptação climática em detrimento de medidas de mitigação das emissões de gases de efeito estufa.

Medidas de adaptação são voltadas a conter as consequências das mudanças climáticas: investir em estrutura de saneamento e drenagem para diminuir o impacto de enchentes ou obras de enrocamento, que usam rochas para impedir o avanço das águas em praias, por exemplo. Já medidas de mitigação buscam atacar as causas das mudanças climáticas, por meio da diminuição das emissões de gases de efeito estufa.

Medir as iniciativas das cidades contra o aquecimento global

Pontes integra a rede de pesquisadores CiAdapta, coordenada pela professora Gabriela Marques Di Giulio, do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. A rede é voltada ao estudo das saídas que as cidades brasileiras têm encontrado para lidar com as questões ambientais e climáticas. O grupo é formada por pesquisadores de diversas áreas, entre eles a cientista social Zoraide Pessoa (UFRN), que também assina o artigo.

Gabriela Marques Di Giulio é doutora em Ambiente e Sociedade pela Universidade Estadual de Campinas e professora do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da USP – Foto: Arquivo Pessoal

Para a professora Gabriela, as cidades têm um papel extremamente importante nos processos de adaptação, pois são nesses locais que os efeitos negativos das mudanças climáticas se materializam e são sentidos e mensurados. Segundo ela, é na cidade que conseguimos observar a conexão das questões climáticas com várias dimensões estruturais da sociedade:

“Ao buscar realizar medidas de adaptação, as cidades devem promover ajustes em diferentes setores para antecipar possíveis impactos relacionados às mudanças climáticas, o que resulta em um processo bastante transversal que vai tocar em questões como segurança hídrica, saneamento, habitação, mobilidade, segurança alimentar e energética.”

Os tomadores de decisão dos municípios precisam entender que, quando dão atenção ao enfrentamento desses efeitos negativos das mudanças climáticas, eles também estão investindo na saúde e na qualidade de vida de seus residentes.

Pontes explica que os dois conjuntos de medidas são complementares: a adaptação é essencial para conter os impactos urgentes da crise climática e a mitigação é o que garante sustentabilidade a longo prazo.

Segundo a meteorologista Ana Luiza Fontenelle, uma das autoras do artigo, a capacidade dos municípios de agirem no campo da mitigação é limitada, já que as ações mitigadoras envolvem, por exemplo, questões estruturais da matriz energética que são regulamentadas por leis estaduais e federais, mas as prefeituras ainda são capazes de intervir de formas bastante importantes, como, por exemplo, melhorando e estimulando a eficiência energética, como troca de lâmpadas e aparelhos por versões mais modernas e menos consumidoras.

Além disso, a professora Gabriela também cita a importância de esforços na melhoria da gestão ambiental municipal, que podem trazer cobenefícios para mitigação, adaptação e sustentabilidade, como o investimento em instrumentos de proteção à biodiversidade, planos de gestão integrada e sustentável de resíduos sólidos, saneamento, hortas urbanas e ampliação de áreas verdes.

Ana Luiza Fontenelle é doutoranda em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp e colaboradora no Research Center for Gas Innovation (RCGI), vinculado ao Instituto de Energia e Ambiente (IEE) e à Escola Politécnica (Poli) da USP – Foto: Arquivo Pessoal

Outra dimensão importante para políticas públicas locais está no âmbito da mobilidade urbana: “Nas cidades, a maior parte das medidas de mitigação vai estar ligada ao setor de transporte: trocar o diesel da frota de ônibus por biocombustível, investir em tornar a movimentação de pedestres e ciclistas mais acessível e melhorar o transporte público em geral, pois isso diminui a quantidade de carros circulando e, logo, a emissão de gases de efeito estufa”, comenta Ana Luiza.

A professora Gabriela aponta que, nos últimos anos, apesar da discussão da questão climática ter estado mais presente na agenda política dos municípios, a efetivação dessas leis ainda é lenta. Ela cita, por exemplo, os esforços do Plano Diretor Estratégico de São Paulo aprovado em 2014 no sentido de planejar a cidade de forma mais compacta, contendo o espraiamento urbano, fomentar habitação de interesse social em regiões dotadas de infraestrutura urbana consolidada e oferta de empregos formais, e diminuir os deslocamentos da população para o trabalho (algo alinhado com as diretrizes ambientais), que não se concretizou como deveria em decorrência das pressões que concorrem para descaracterizar os objetivos do PDE, principalmente por parte das incorporadoras imobiliárias.

Essa é uma dinâmica frequente: em um artigo de 2019, pesquisadores do CiAdapta identificaram que os principais entraves que dificultam o avanço das medidas de adaptação nas cidades brasileiras são falta de vontade política, coordenação inadequada entre diferentes departamentos da burocracia estatal e pressões do setor privado.

Todos esses fatores contribuem para o atual cenário: as ações implementadas nos municípios são insuficientes. Ana Luiza afirma que esse é o resultado observado pelo estudo nas capitais da região Nordeste, mas que também representa a realidade mais ampla do País. “As principais cidades da região não têm as medidas de adaptação necessárias e a situação no interior é ainda pior. É necessário fortalecer essas ações no nível municipal, buscar estabelecer redes colaborativas entre cidades para construir soluções coletivas”, comenta a pesquisadora.

Despreparo dos municípios paulistas para mudanças climáticas

A maioria dos municípios do Estado de São Paulo está mal preparada para lidar com os impactos das mudanças climáticas. Essa é a má notícia. A boa notícia é que os municípios mais bem preparados estão justamente nas regiões metropolitanas do Estado, onde vive a maior parte da população paulista.

Esse é o panorama traçado por um estudo publicado em maio de 2021 por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, em colaboração com autores de outras instituições, que mediu a capacidade dos municípios paulistas de se adaptarem aos efeitos — presentes e futuros — das mudanças climáticas globais. Para isso, os autores criaram um Índice de Adaptação Urbana (UAI, em inglês), que leva em conta 26 indicadores de políticas públicas, relacionadas a cinco grande temas que influenciam essa capacidade: habitação, mobilidade urbana, agricultura sustentável, gestão ambiental e resposta a impactos climáticos.

Todos os 645 municípios do Estado de São Paulo foram avaliados com relação à presença ou ausência de políticas e serviços públicos municipais relacionados a esses temas. Resultado: dois terços (66%) dos municípios paulistas têm baixa capacidade de adaptação, e apenas dez municípios (1,5% do total) receberam nota próxima de 1, que seria a “nota máxima” do índice. Felizmente, os municípios mais bem avaliados são justamente os mais populosos do Estado, incluindo São Paulo, Campinas e várias de suas cidades vizinhas.

MAPAS: ÍNDICE DE ADAPTAÇÃO URBANA (UAI)

Mapa mostrando o Índice de Adaptação Urbana (UAI, em inglês) dos 645 municípios do Estado de São Paulo, considerando 5 dimensões de política pública: habitação, mobilidade urbana, agricultura sustentável, gestão ambiental e resposta a impactos climáticos. Quanto mais próximo de 1 (verde escuro), melhor a capacidade adaptativa do município. Fonte: Neder, E. et al., 2021. “Urban adaptation index: assessing cities readiness to deal with climate change”

HABITAÇÃO

GESTÃO AMBIENTAL

AGRICULTURA SUSTENTÁVEL

MOBILIDADE URBANA

RESPOSTA AOS IMPACTOS CLIMÁTICOS

“O índice busca qualificar um pouco melhor o debate sobre adaptação às mudanças climáticas no nível municipal”, diz a professora Gabriela. O primeiro autor do estudo, publicado na revista Climatic Change, é o engenheiro ambiental Eduardo Neder, que fez seu mestrado na FSP, orientado por Gabriela e pelo professor Arlindo Philippi Junior, que também assina o trabalho.

Os dados usados na avaliação são provenientes de bases de dados públicos, como o Perfil dos Municípios Brasileiros e o Censo Agro, produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que permite que o índice seja atualizado regularmente (isto é, se o IBGE ainda tiver recursos orçamentários para continuar fazendo esses levantamentos nos próximos anos). 

Entre os indicadores considerados na análise estão a presença de planos municipais de habitação, políticas de saneamento básico e controle de poluição, políticas de mobilidade urbana e de incentivo ao uso de bicicletas, leis de proteção ambiental e da biodiversidade.

“Estamos falando de coisas muito básicas”, afirma Gabriela. “É o mínimo que os municípios precisam ter para aumentar sua capacidade de adaptação; e mesmo esse mínimo não está sendo cumprido.” Quase metade dos municípios, por exemplo, não possui planos de habitação ou conselhos municipais para orientar, de forma participativa, a ocupação de seus territórios. A maioria, por outro lado, possui planos de gestão de resíduos sólidos.

É natural que os municípios mais populosos sejam os que agregam o maior número de indicadores, já que são eles os que mais necessitam dessas políticas públicas para sua gestão no dia a dia. Quando se trata da capacidade de resposta a emergências climáticas, porém, são poucos os municípios que estão devidamente preparados — esse foi o tema com a pior avaliação em geral no Estado. Os indicadores nesse quesito incluem políticas de prevenção a enchentes e deslizamentos, existência de uma Defesa Civil, mapeamento e prevenção da ocupação de áreas de risco.

“Não é à toa que quando os extremos climáticos acontecem os resultados nos municípios são devastadores”, avalia Gabriela. “Quando você olha para essa capacidade de resposta a riscos climáticos específicos, ela ainda é muito fraca. Isso nos chamou a atenção.” A maioria dos municípios possui apenas a Defesa Civil, e nada mais.

As projeções para o Sudeste brasileiro preveem aumento da ocorrência de extremos climáticos nos próximos anos e décadas, principalmente relacionados à precipitação, com maior ocorrência de tempestades, o que aumenta significativamente o risco de enchentes e deslizamentos — daí a necessidade de políticas voltadas para o planejamento urbano de habitação e transportes, por exemplo.

Uma ressalva importante é que o estudo não mediu a efetividade nem o grau de implementação das políticas públicas ou dos serviços públicos associados a elas, apenas a existência ou não dessas políticas. Ainda assim, a expectativa é que o índice possa ser aperfeiçoado com o tempo e que os resultados ajudem os gestores municipais a enxergar pontos fracos que precisam ser melhorados frente ao agravamento das mudanças climáticas. Gabriela espera que o estudo auxilie também na compreensão do caráter transversal do tema, já que muitos gestores podem não enxergar, a princípio, a conexão que esses diferentes temas — habitação, mobilidade, agricultura, meio ambiente — têm com sua capacidade de adaptação às mudanças climáticas.

“A realidade brasileira demanda que, dada a recorrência de eventos extremos, os municípios estejam cada vez mais estruturados para promover ações adaptativas, que demandam não apenas investimentos em tecnologia e infraestrutura, mas também o fortalecimento de ações intersetoriais e transversais que considerem a importância do protagonismo dos cidadãos nos processos decisórios, levando em conta as assimetrias sociais e populações vulneráveis nas nossas cidades”, diz o professor Pedro Jacobi, do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP e coordenador do projeto temático Governança Ambiental da Macrometrópole Paulista face às Mudanças Climáticas, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que não participou desse estudo específico, mas acaba de lançar um livro sobre o tema, focado na macrometrópole paulistana. “A aplicação dos dados só se torna viável associando, de um lado, a sua disponibilidade e, de outro, a efetiva implementação de agendas adaptativas nas cidades.”

Do Jornal da USP