Rubens Ricupero: uma reflexão sobre os 200 anos da Independência

Para embaixador, a esperança hoje pode convergir – mais do que em algum nome – num evento histórico: a derrota do presidente Jair Bolsonaro nas eleições de outubro de 2022

Recém-indicado para a Cátedra José Bonifácio, na USP, Rubens Ricupero, de 84 anos, abandonou a aposentadoria, após quatro décadas dedicadas à diplomacia e à política nacional. À frente da instituição, o embaixador e ex-ministro já estabeleceu uma prioridade: dedicar-se aos 200 anos da Independência do Brasil, partido do pressuposto de que a verdadeira modernização do País é o enfrentamento da desigualdade.

“Efemérides do gênero têm trazido à tona, no mundo inteiro, uma disposição mais de se pôr fogo nas estátuas. Mas a saída não é se perguntar se devemos estar alegres ou frustrados – mas fazer uma reflexão sobre o sentido desses 200 anos e extrair não apenas um balanço, mas uma visão de futuro sob o signo da verdade”, analisa.

A convergência do bicentenário com a eleição de 2022 é uma coincidência “infeliz e feliz”, agrega ele. Infeliz por cair num momento de baixíssima autoestima nacional com a morte de mais de 619 mil brasileiros na pandemia e com a depressão da economia. E feliz porque as pessoas terão uma oportunidade de começar a mudança com seu voto.

“É desejável que um aniversário desse tipo inspire um ânimo celebratório. No primeiro centenário, em 1922, também havia problemas – mas não tão graves quanto agora”, diz Ricupero. “Em 1922 o Brasil era um país atrasadíssimo em tudo – em educação, ciência, cultura… A preocupação era a de modernizar o país, fazer com que o país deixasse de ser atrasado, que se inserisse no avanço mundial. Isso passa pela Semana de Arte Moderna, pelo tenentismo, pela fundação do Partido Comunista.”

Entre os ícones de 200 anos atrás cuja memória merece ser recuperada, Ricupero destaca a figura de José Bonifácio, o “Patriarca da Independência”. Trata-se, a seu ver, do “primeiro brasileiro, como se costumava dizer que Benjamin Franklin foi o primeiro americano. Bonifácio, ao contrário de seus congêneres na América Latina, não era general ou bacharel, mas cientista, um mineralogista. E este cientista foi o autor da ideia de que o Brasil deveria se tornar independente com o príncipe herdeiro porque isso nos pouparia uma guerra civil.”

Citando uma conferência de José Guilherme Merquior de 1889, nos “cem anos da República”, Ricupero evoca os sonhos de José Bonifácio para o Brasil: “abolição, fim do tráfico de escravos, de acesso à terra para negros e índios, com financiamento do Banco do Brasil, pequena propriedade, fomento à imigração e desenvolvimento da indústria e da mineração”. Bonifácio é também autor Projetos para o Brasil”.

Porém, o Império impediu de um plano com tamanha audácia para os brasileiros. “Bonifácio só governou 18 meses. Foi ministro da Guerra, da Marinha, dos Negócios Estrangeiros, organizou Exército e Marinha, contratou o Lord Cochrane para submeter as províncias do Norte”, lembra o embaixador. “Quando tudo isso estava pronto, ele não era mais necessário e d. Pedro o mandou para o exílio. E o projeto que vingou foi o escravocrata e latifundiário que dominou o País.”

Outro exemplo citado pelo embaixador é o do abolicionista Luiz Gama: “Ele nasceu na Bahia e foi vendido ilegalmente como escravo pelo pai porque nasceu livre. Veio como escravo para São Paulo. Aprendeu a ler com um estudante, se emancipou, readquiriu a liberdade. Era um rábula e dedicou toda sua vida a conseguir provar a liberdade de mais de 500 africanos escravizados ilegalmente. Morreu seis anos antes da abolição. Teve que defender quatro escravos que tinham matado o amo em Campinas e a tese é usada até hoje. Qualquer escravo que mate o senhor está agindo em legítima defesa. Conquistar a liberdade é maior que conquistar a vida”.

Sobre 1922, no primeiro centenário, ele afirma que o ano começou “tumultuado” do ponto de vista político –até se indicar um rumo. “Em março, foi eleito Artur Bernardes. Mas até novembro quem governou foi Epitácio Pessoa, num clima de contestação, de crise da República Velha”. Num Brasil em estado de sítio, “tinha havido a Revolta do Forte de Copacabana. Oito anos depois houve uma revolução (a de 1930, liderada por Getúlio Vargas) que derrubou o sistema”.

Hoje, para o embaixador, ter uma dimensão precisa dos impactos da desigualdade pode ser um trunfo. “É um progresso que a evolução da consciência coletiva tenha avançado para identificar o problema central do País. Parece longe a percepção de que para curar, aos olhos estrangeiros, a ferida do país, simbolizada no Monte Castelo, a solução tenha sido derrubá-lo com jato d’água.”

Um símbolo da persistente desigualdade, segundo Ricupero, está num dos principais cartões postais de São Paulo. “Outro dia, fui à Praça da Sé. Morei lá perto, no Brás, quando era menino. Fiquei espantado. A praça hoje parece um acampamento com dezenas de tendas. A periferia está ocupando o centro”, conclui. “No Rio se dizia “o morro vai descer”. Aqui foi a periferia que mudou de endereço. Então hoje está havendo um sentimento que é do extremo da miséria com o extremo da degradação política.”

Agora, a esperança pode convergir – mais do que em algum nome – num evento histórico: a derrota do presidente Jair Bolsonaro nas eleições de outubro de 2022. “Eleições sempre trazem uma renovação da esperança. Identifico no crescimento da candidatura Lula e até no fato de que ele possa ganhar no primeiro turno esse elemento de esperança”, avalia. “Na imensa maioria das pessoas com quem converso, sobretudo as pessoas mais modestas, empregadas domésticas e trabalhadores, há uma imensa esperança na vitória de Lula.”

Na visão de Ricupero, a campanha “pode levar a um movimento de avalanche”, garantindo uma vitória contundente e incontestável do ex-presidente. “A eleição, por algum efeito mágico, desperta um movimento de alegria. Mesmo que se decepcionem, o sentimento de alívio é muito grande.”

Com informações do Valor Econômico