50 anos sem Barão de Itararé: a vida trágica de um ícone do jornalismo

Apparício Torelly foi também ativista político, chegando a eleger-se vereador, na década de 1940, pelo Partido Comunista do Brasil

Em 2021, completam-se 50 anos da morte do jornalista gaúcho Apparício Torelly (1895-1971), o Barão de Itararé. Autor de máximas consagradas que o tornaram um dos maiores frasistas da imprensa brasileira, Torelly foi também ativista político, chegando a eleger-se vereador, na década de 1940, pelo Partido Comunista do Brasil.

“O Barão é daqueles que começam uma partida do zero. É como se tivesse inventado as regras do jogo”, afirma o jornalista Cláudio Figueiredo, autor da biografia Entre Sem Bater – A Vida de Apparício Torelly – O Barão de Itararé (2012). “Foi muito mais do que ‘frasista’. Foi um humorista revolucionário, anárquico, inovador. Colocar o foco sobre um único aspecto de sua obra seria como julgar Pelé por sua atuação no Cosmos, já no seu fim de carreira.”

Fernando Apparício de Brinkerhoff Torelly nasceu no Rio Grande, município a 317 quilômetros de Porto Alegre (RS), no dia 29 de janeiro de 1895. Seu pai, João da Silva, era brasileiro, e sua mãe, Maria Amélia, uruguaia. O pequeno Apparício ainda não tinha completado dois anos quando a mãe, então com 18, tirou a própria vida, com um tiro na cabeça. Até hoje, não se sabe ao certo a razão do suicídio. Especula-se que tenha sido por causa do temperamento violento do marido.

Órfão de mãe, Apparício foi mandado para um colégio jesuíta em São Leopoldo. Apesar de sua pouca idade, já esbanjava a irreverência que o tornaria famoso. Tanto que foi lá, no Colégio Nossa Senhora da Conceição, que criou seu primeiro jornal de humor, o Capim Seco, totalmente escrito a mão. Certa vez, o professor de português pediu a Apparício que conjugasse um verbo qualquer no tempo mais que perfeito. “O burro vergara ao peso da carga”, respondeu o jovem. Nada demais, não fosse Oswaldo Vergara o nome do tal professor.

Antes de se tornar jornalista, Torelly tentou a carreira médica. Aos 17 anos, matriculou-se na Escola de Medicina e Farmácia de Porto Alegre. Ao chegar atrasado a uma aula de anatomia, o professor Sarmento Leite pegou um fêmur e lhe perguntou: “O senhor conhece este osso?”. Ainda ofegante, o estudante respondeu, estendendo a mão: “Não, muito prazer!”.

Em outra ocasião, durante uma prova oral, o professor, vendo que Apparício não sabia as respostas, pediu, irônico, a um funcionário da faculdade: “Me traga um pouco de alfafa, por favor”. “E, para mim, um cafezinho”, completou o aluno que, no entanto, não concluiu o curso – ele largou a faculdade em 1919.

“A vida do Barão de Itararé é cheia de passagens trágicas. A começar pelos seus problemas de saúde, como a hemiplegia (paralisia total ou parcial da metade lateral do corpo)”, conta Mary Stela Surdi, mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com a dissertação Barão de Itararé – A Linguagem do Humor (1998). “Desde muito jovem, foi preso e apanhou incontáveis vezes. Mas, sempre lidou com a perseguição político-ideológica com humor e inteligência.”

Com passagem por diversos jornais e revistas, tanto da capital gaúcha quanto do interior do Estado, Apparício Torelly tentou a sorte no Rio de Janeiro. Na bagagem, trazia seu primeiro e único livro, Pontas de Cigarro, de poesia, de 1916, e seu primeiro jornal de humor, O Chico, que teve tiragem de 8 mil exemplares, de 1918.

Aos 30 anos, foi bater à porta de O Globo. “O que quer fazer aqui?”, perguntou o então dono do jornal, Irineu Marinho (1876-1925). “Qualquer trabalho serve”, respondeu Apparício. “De varredor a diretor do jornal, até porque não vejo muita diferença”. Sua primeira coluna, intitulada “Despreso”, foi publicada na versão matutina do jornal, em 10 de agosto de 1925.

Ao longo da carreira, Apparício Torelly teve dois pseudônimos: Apporelly, uma fusão de “Apparício” e “Torelly”, e Barão de Itararé, o mais famoso deles, em homenagem à batalha que nunca aconteceu, na divisa entre São Paulo e Paraná, entre as tropas de Washington Luís e de Getúlio Vargas.

Com a morte de Irineu Marinho em 21 de agosto de 1925, vítima de infarto, Torelly migrou para as páginas do jornal A Manhã, de Mário Rodrigues (1885-1930), pai dos jornalistas Mário Filho (1908-1966) e Nelson Rodrigues (1912-1980). Batizada de “Amanhã Tem Mais…”, a coluna diária de Apporelly estreou em 2 de janeiro de 1926 e fez enorme sucesso entre os leitores.

 “Eles não perdiam aquela saraivada de frases, versinhos e trocadilhos com nomes de políticos”, afirma o jornalista e escritor Ruy Castro em O Anjo Pornográfico – A Vida de Nelson Rodrigues (1992). “Algumas das melhores frases já tinham sido inventadas por Bernard Shaw, Mark Twain ou Oscar Wilde, a quem Apporelly esquecia de citar. Outras, às vezes muito engraçadas, eram dele mesmo.”

Entre outros trocadilhos famosos, Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), líder da Revolução de 1930, virou “Getúlio Dor Neles Vargas” e Filinto Müller (1900-1973), o torturador do Estado Novo, “Filinto Mula”. Sobre Getúlio, aliás, disse, certa ocasião: “Sabe como se chama nosso caro presidente? Gravata Preta. Adapta-se a qualquer roupa e a qualquer regime”.

Além de fazer trocadilhos com nomes de políticos, Torelly se especializou em criar paródias para frases famosas. “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”, do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), por exemplo, virou “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mais vivos”. Já o lema integralista “Deus, Pátria e Família”, de Plínio Salgado (1895-1975), ganhou nova versão: “Adeus, Pátria e Família!”.

Quatro meses após começar a trabalhar no A Manhã, Torelly decidiu fundar seu próprio jornal: A Manha. “O jornal de humor que ele criou e manteve com ímpeto quixotesco sobreviveu de 1926 a 1959”, explica o jornalista Rodrigo Jacobus, mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com a tese Um Nobre Bufão no Reino da Grande Imprensa (2010). “Ao longo desse período, pontuou com seu humor alguns dos maiores acontecimentos do século 20, como a Revolução de 30, o Estado Novo, a 2ª Guerra Mundial…”.

Em 10 de outubro de 1929, A Manha passou a circular como suplemento do jornal Diário da Noite, do jornalista Assis Chateaubriand (1892-1968). A sociedade, porém, durou pouco: cinco meses. Além da edição diária, Torelly publicou, ainda, três números de Almanhaque, ou seja, o almanaque do jornal A Manha. Um número saiu em 1949 e dois, em 1955. Todos traziam jogos, piadas e adivinhações. Seu principal parceiro na nova empreitada foi o chargista e ilustrador paraguaio Andrés Guevara (1904-1963).

No dia 9 de dezembro de 1935, Apparício Torelly sofreu a primeira de suas muitas prisões. O motivo da detenção nunca foi totalmente esclarecido. Uma das hipóteses é pelo fato de ele ter sido um dos fundadores da Aliança Nacional Libertadora (ANL), no Rio de Janeiro. Na manhã seguinte, Torelly foi levado para um navio-presídio ancorado na Baía de Guanabara. Nem mesmo preso perdeu sua verve cômica. A certa altura, o comandante afirmou: “O senhor está convidado a depor”. Nisso, o Barão respondeu, cínico como sempre: “Depor o governo? Me admira muito que o senhor tenha a coragem de fazer um convite desses”.

Em 21 de março de 1936, foi transferido para a Casa de Detenção, na rua Frei Caneca. Lá, dividiu cela, entre outros, com o jornalista e escritor Graciliano Ramos (1892-1953). “Aporelly contava piadas satirizando a situação política do País”, conta o escritor e biógrafo Dênis de Moraes em O Velho Graça – Uma Biografia de Graciliano Ramos (2012). “Só se referia, por exemplo, ao carrancudo general Góis Monteiro como ‘Gás Morteiro’ e adorava compor paródias para músicas famosas como Cidade Maravilhosa”.

Mas, aos poucos, a prisão começou a lhe deixar marcas. É o que relata Fábio César Alves, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), com a tese Vivência, Reflexão e Combate: Sobre Memórias do Cárcere (2013): “De dia, (o Barão) era aparentemente alegre. Mas, à noite, passava muito mal, a ponto de sofrer tremores e ranger os dentes – o que obrigava Graciliano a agarrá-lo até que se acalmasse”. Foi solto em dezembro de 1936, já ostentando sua famosa barba.

Graciliano Ramos não foi o único escritor famoso que ele conheceu. No A Manha, trabalhou ao lado de Rubem Braga (1913-1990) e José Lins do Rego (1901-1957). No caso de Jorge Amado (1912-2001), foi Torelly quem apresentou o escritor baiano à sua futura mulher, Zélia Gattai (1916-2008), em janeiro de 1945, durante o 1° Congresso Brasileiro de Escritores, em São Paulo. O encontro se deu na Boate Bambu. “Me apresente à moça, Barão”, pediu Amado. E, assim, os dois se conheceram.

“Não houve no Brasil, na década de 1940, escritor mais unanimemente lido e admirado do que o humorista cujo riso, ao mesmo tempo bonachão e ferino, fazia a crítica aguda e mordaz da sociedade brasileira e lutava pelas causas populares”, declarou Jorge Amado, em 1985. “Mais do que um pseudônimo, o Barão de Itararé foi um personagem vivo e atuante, uma espécie de Dom Quixote nacional, malandro, generoso e gozador, a lutar contra as mazelas e os malfeitos.”

Em novembro de 1946, Torelly arriscou-se na carreira política. Em tempos de falta d’água e de leite adulterado, adotou como lema de campanha: “Mais água! Mais leite! Mas menos água no leite!”. Deu certo. Com 3,6 mil votos, elegeu-se vereador pelo Partido Comunista do Brasil (que, na época, adotava a sigla PCB). Certa ocasião, ouviu de um parlamentar: “O que Vossa Excelência fala entra por um ouvido e sai pelo outro”. “Impossível, excelência”, rebateu o Barão. “O som não se propaga no vácuo”.

Em maio de 1947, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou o registro do PCB. Com isso, Torelly perdeu o mandato. “Na época, emissoras de rádio transmitiam os discursos dos vereadores”, relata o jornalista Mouzar Benedito, autor de Barão de Itararé: Herói de Três Séculos (2007). “Quando discursava, lavadeiras e operários paravam de trabalhar para ouvir o Barão. Em seu discurso de despedida, disse: ‘Deixo a vida pública para entrar na privada’“.

No dia 12 de janeiro de 1965, Torelly sofreu mais um duro golpe. Sua companheira, Aída Costa, encharcou as roupas de álcool e ateou fogo ao corpo. Foi a quinta tragédia pessoal que Torelly sofreu em sua vida: em 1897, perdeu a mãe; em 1935, Zoraide, sua segunda mulher, vítima de câncer; em 1939, Juracy, sua terceira mulher, de leucemia; em 1944, Ady, sua filha, de problemas no coração e apendicite; e, em 1965, Aída, por suicídio.

Recluso, Apparício Torelly morreu enquanto dormia, em 27 de novembro de 1971, aos 76 anos, há exato meio século. Ele morava, sozinho, num apartamento de quatro cômodos, todos abarrotados de livros, revistas e jornais, no bairro de Laranjeiras, zona sul do Rio. No atestado de óbito, “arteriosclerose cerebral, seguida de coma diabético”.

Apparício Torelly deixou três filhos: Arly, Ady e Ary, frutos do primeiro casamento, com Alzira Alves. Os sucessores são incontáveis. Os mais famosos, na opinião de Jorge Amado, foram o Stanislaw Ponte Preta, criado por Sérgio Porto (1923-1968), e o Analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo. Mas, houve outros, conforme lista o jornalista e escritor Luís Pimentel em Entre Sem Bater – O Humor na Imprensa (2004): da revista Pif-Paf, de Millôr Fernandes (1923-2012), a Bundas, do cartunista Ziraldo.

“O pessoal do Pasquim assumia ser ‘neto’ do Barão e ‘filho’ do Stanislaw Ponte Preta”, observa o designer gráfico Sérgio Papi, responsável, ao lado de José Mendes André, pelo relançamento dos três volumes do Almanhaque, entre 1989 e 1995. “Não por coincidência, o jornalista Sérgio Porto foi ‘foca’ (jornalista iniciante) do Apparício no jornal Folha do Povo”. Reza a lenda que foi o Barão quem convenceu Sérgio Porto – que estreou no jornalismo como crítico de cinema – de que tinha vocação para o humor.

Dez máximas do Barão de Itararé:

1. “De onde menos se espera, daí é que não sai nada.”
2. “Quando pobre come frango, um dos dois está doente.”
3. “Tempo é dinheiro. Vamos, então, pagar as nossas dívidas com o tempo.”
4. “O fígado faz muito mal à bebida.”
5. “Negociata é todo bom negócio para o qual não fomos convidados.”
6. “Para este mundo ficar bom, é preciso fazer outro.”
7. “Quem foi mordido por cobra tem medo até de minhoca.”
8. “Sabendo levá-la, a vida é melhor do que a morte.”
9. “O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro.”
10. “Este mundo é redondo, mas está ficando muito chato.”

Com informações da originalmente na BBC News Brasil