A Cozinha da Tverskáya, por Maria Prestes

“Ao contrário do Brasil na década de 1970, as mulheres na Rússia exerciam profissões no pé de igualdade com os homens”

Luiz Carlos Prestes experimenta iguarias em Tashquente, capital do Uzbequistão

Foi na cozinha do meu apartamento na rua Gorki, que hoje voltou a se chamar rua Tverskáya, como antes da Revolução Russa de 1917, que aprendi muitas particularidades da cozinha daquele país. As Filhas e os filhos menores foram matriculados numa creche e numa escola do bairro. O João e o Pedro foram estudar em um curso técnico profissionalizante, na área de aviação. Todos estavam a maior parte do dia ocupados. Preocupação eu tive com o meu filho Paulo que resolveu arriscar e voltar para o Brasil.

Edifício nº9 da rua Tverskaya, antiga rua Gorki, retratado pela artista russa Ecaterina Castro

Nessa época, tive tempo para percorrer os supermercados, padarias e o Mercado Central de Moscou para conhecer os produtos consumidos pela população moscovita. Em algumas casas de famílias, pude saborear peras secas que vão muito bem depois de uma dose de vodka ou de conhaque. Os embutidos eram servidos em grande variedade. Meu destaque vai para o salame doktorskaia kalbaçá; para a karéika, espécie de toucinho defumado; e para a salsicha de frango.

Os mercados da União Soviética eram muito diferentes dos que eu conhecia no Brasil

Durante o inverno pedi que me levassem até as estufas dos arredores da Capital, as famosas “teplitsi”. Eu tinha curiosidade sobre o sistema de produção de alface, cebolinha, tomate e salsa quando os campos estão cobertos de neve. Pude constatar que são grandes estruturas, muito bem iluminadas e ventiladas, com equipamentos que facilitava o plantio, a colheita e a conservação. Minha amiga, Elena Ivanova, foi quem me acompanhou nos primeiros anos.

Praça Vermelha: Maria Prestes e a amiga, Elena Ivanova, que foi sua guia pelos supermercados e lojas de Moscou

Aos poucos, registrei que os pratos mais consumidos eram sopas e as katletas, uma espécie de almondegas grandes de carne moída, feitos com cebola, alho e pão adormecido. O repolho é muito usado em lascas bem finas, seu cozimento é lento numa frigideira na qual são lançadas leves doses água fervente. Após esfriar, se acrescenta o sal e o azeite. O arroz é pouco usado nas refeições diárias. O forte nos restaurantes populares é batata cozida refogada na manteiga ou o purê.

O frango à Kiev é bem popular em Moscou, que tem a forma de coxinha como no Brasil. Eles usam muita farinha de trigo para empanar, o que deixa esse prato bem crocante. O recheio é de pura manteiga derretida que termina jorrando para o alto quando damos o primeiro corte. Um capítulo à parte são os bolinhos feitos de ricota: Alady. Saudades. Também, os folheados que são servidos com sopas. Tem os piroshki, pequenos pãezinhos recheados com carne moída, repolho, ovo cozido, salsinha ou endro. Estes podem combinar com num lanche da tarde, com xícaras de chá ou de café.

Uma coisa que me chamou a atenção é que geralmente a culinária russa não usa tanto tempero como nós aqui usamos como colorau, cominho, pimenta, vinagre, alho, pimentão, folhas de louro e massa de tomate. Hoje percebo que em muitos casos os russos têm razão, os temperos em exagero tiram o sabor da carne, frango ou do peixe.

Salão do Grande Palácio do Kremlin

Frequentei os banquetes no Palácio da Ekaterina, dentro do Kremilin, durante as comemorações da Revolução Russa de 7 de novembro de 1917; festas de 1º de Maio, Dia Internacional do Trabalho; Aniversário da Constituição Soviética; e em congressos do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Apreciei diferentes marcas de vodkas, de vinhos soviéticos e de caviar. Geralmente serviam postas grandes de esturjão acompanhadas de pepinos frescos macerados. O creme de leite nunca faltava nessas ocasiões. Era creme de leite aplicado nas sopas, nas saladas ou sobre as carnes! A salada de batatas, cenouras, pepinos e maçãs picadas, misturadas com salsa, cebolinha e muita maionese se chama Stalítchnaia, que significa: A Salada da Capital.

Grande Palácio do Kremlin

Os peixes que mais consumi na Rússia eram: carpa, bacalhau fresco (treska), zander (sudák), esturjão (ossetr) e arenque (seliotka). Muitos peixes são importados do Chile, China, Turquia ou Índia. Mas tem muitos peixes de água doce na Rússia, nos grandes rios. Nos banquetes observei aqueles que eram servidos em bandejas ornadas com batatas, azeitonas, tomates frescos, cebolinha e salsinha. Assim descobri o esturjão-beluga e o esturjão-branco, aqueles dos quais extraem a ova do caviar. Eles são encontrados no Mar Cáspio.

Aos poucos, aprendi a comer o caviar preto e o vermelho, depois descobri o caranguejo (krab) e a vóbla, um peixe desidratado, seco e bem salgado. Um perfeito tira-gosto para a cerveja. Espadilhas (chpróti) é um peixe do Mar Báltico, que banha a cidade de São Petersburgo, antiga Leningrado soviética. Quantas vezes eu saía das recepções entusiasmada para comprar os ingredientes e tentar reproduzir os pratos que comia ao lado de representantes do movimento comunista internacional. Lembro dos salões cobertos de tapetes vermelhos, lustres de cristais, dos heróis de guerra com os peitos cheios de medalhas, artistas e do secretário geral do PCUS, Leonid Brejnev.

Maria Prestes no Grande Palácio do Kremlin, Moscou, quando seu marido, Luiz Carlos Prestes, foi condecorado com a Ordem da Revolução de Outubro de 1917 pelo presidente da URSS, Nikolai Podgorny, e do Diretor do Departamento da América Latina do PCUS, Boris Ponamariov.

Algumas vezes eu e o Velho voltamos à pé para casa, andando através dos jardins que ficam ao lado do Kremlin e pelas ruas da cidade que deu abrigo a toda a minha família durante os anos do governo militar no Brasil. Foram anos de exílio, mas também os anos mais felizes da minha família. Quando não tínhamos a polícia no nosso encalço, quando todos nos reuníamos em paz e tranquilidade.

As tulipas inesquecíveis do jardim Alekssandrovsky, junto ao Kremlin, Mosou

Ao contrário do Brasil na década de 1970, as mulheres na Rússia exerciam profissões no pé de igualdade com os homens. Elas já eram a maioria dos servidores dos hospitais e das escolas. Trabalhavam na manutenção de esgoto e na construção civil; dirigiam tratores e caminhões; eram maquinistas e condutoras de trem e metrô. Estavam acostumadas desde os tempos da II Guerra Mundial, pois tiveram que ocupar os postos nas fábricas, deixados pelos 20 milhões de soldados que morreram na batalhas contra a Alemanha Nazista. Convivi com muitas dessas mulheres que eram altas executivas responsáveis, que após o expediente se divertiam nos restaurantes, teatro, cinema ou em espetáculos de patinação artística no gelo. Muitas que já tinham feito cursos universitários estavam no mestrado ou no doutorado. Quantas amigas frequentaram a cozinha do meu apartamento na rua Gorki para, pacientemente, me ensinar o preparo de pratos russos. O espaço era pequeno, cabiam no máximo três pessoas sentadas, mas era aconchegante.

Supermercado soviético, década de 1970

Conversávamos sobre o cotidiano. Como dona de casa, fui fazendo as contas, através dos relatos e descobri que os gastos que uma família tinha com educação, saúde e moradia não ultrapassavam 10% do orçamento doméstico! Era para mim surpreendente que os produtos alimentícios e industriais tivessem o mesmo valor de compra em todo o território nacional. Não existia a variação com a qual convivemos nos países capitalistas. Mas também não faltavam mistérios. Por exemplo, como um país que mandava cosmonautas para a Estação Orbital internacional todos os meses não disponibilizava um liquidificador de qualidade para a população?

Prestes na cabeceira da mesa, durante almoço no apartamento da rua Gorki, hoje rua Tverskaya. Ao seu lado a filha Ermelinda, a neta, Ana Maria, o gênro, José Nicodemos Texeira Rabelo, e a amiga uruguaia, Marta Saxlund. Moscou, 1978.

O mistério dos alimentos que desapareciam para compra era outra situação curiosa. Pois, o que faltava nas prateleiras nos supermercados eu encontrava na casa das minhas amigas. Faltava presunto, elas serviam presunto! Faltava salame ou carne defumada, cerveja tcheca ou café colombiano, chá da Geórgia ou da Índia, cigarros franceses ou americanos, vodka de boa qualidade ou conhaque… Minha amigas tinham comprado! Onde, quando? Não revelavam. Assim, posso dizer que na União Soviética em que vivi não existia fome, desemprego, favela, morador de rua, a população tinham acesso a educação e ao tratamento médico gratuito. Mas existiam grandes mistérios.

RECEITAS:

SOPA DE LEGUMES

Ingredientes: 3 batatas; 1 cenoura; 100 gramas de repolho; 1 tomate; 1 colher de azeite; 5 vagens de ervilha; sal e pimenta do reino a gosto.  

Modo de Preparo: Pique as batatas, as cenouras, o tomate, o repolho e coloque numa panela funda com bastante água junto com a ervilha, o azeite, o sal e a pimenta. Quando os legumes estiverem cozidos, a sopa está pronta. Sirva com creme de leite.

Observação: Esta sopa é muito consumida nas casas das famílias russas.

SALADA STOLICHNAIA

Ingredientes: Meio repolho; 200 gramas de lascas de frango desfiadas; 1 maçã; 3 batatas; 1 cenoura; 1 pepino; 1 cebola; 1 pimentão; 1 colher de sopa de vinagre; 1 tomate grande; maionese, pimenta do reino, sal, endro, salsa e cebolinha a gosto.

Modo de Preparo: Após picar bem todos os ingredientes, coloque os mesmos numa tigela. Acrescente o vinagre, o sal e a pimenta do reino sempre mexendo o conteúdo com uma colher grande. Quando tudo tiver bem misturado, coloque a maionese e volte a misturar. Deixe resfriar 30 minutos antes de servir.

Observação: Esta salada eu conheci nos banquetes oferecidos pelo governo soviético no Palácio do Kremlin. Nessas ocasiões, o frango era substituído por carne de caranguejo ou peixe.

Enfrentávamos filas como esta para comprar galetos  Moscou, década de 1970

GALETO DA RUA GORKI

Ingredientes: 4 galetos; 1 cebola; 3 dentes de alho; vinagre, sal e pimenta, folhas de louro, pimenta do reino a gosto.

Modo de Preparo: Tempere os galetos com todos os ingredientes e deixe descansar por 1 hora. Depois levar ao forno até dourar.

Observação: A família era grande, muitas vezes 4 galetos era pouco.

SALADA DE TOMATES RECHADOS COM RABANETE

Ingredientes: 5 tomates; 1 pepino; 3 rabanetes; 3 dentes de alho; pimenta do reino, azeitonas, azeite de oliva a gosto.

Modo de Preparo: Bata o tomate com a pimenta, o alho, as azeitonas e o sal. Em seguida pegue alguns tomates médios corte-os ao meio e coloque esse recheio dentro, tempere com azeite de oliva e sirva.

SALADA DE TOMATE COM QUEIJO BRANCO

Ingredientes: 1 kg de tomates médios; 500 gramas de queijo minas ralado; salsa a gosto.

Modo de Preparo: Lave bem os tomates, corte-os em rodelas, mas retire toda a semente. Coloque-os em uma travessa com queijo minas ralado sobre os tomates e aplique salsa e azeite de oliva.

COMPOTA DE MORANGO

Ingredientes: 1 kg  de morangos; 1 kg de açúcar.

Modo de preparo: Limpe bem os morangos, deixe-os de molho em água por um período de 1 hora, em seguida coloque-os no vidro distribuindo em camadas com açúcar. Uma camada de morango e uma camada de açúcar. Após feito isso, feche-o bem e deixe por 15 ou 20 dias em lugar fresco, no caso em Moscou, os vidros ficavam na casa de campo, já na cidade colocávamos nas janelas, onde a temperatura sempre era mais baixa.

Observação: Guarde em 1 vidro grande e tampe hermeticamente

BEBIDAS:

Refrigerante

“Buratino” (“Pinóquio”): um refrigerante muito doce

Chá da Geórgia

Chá preto, sempre servido em xícaras largas

Maria Prestes, militante comunista, é viúva de Luiz Carlos Prestes

Livro “Meu Companheiro – 40 anos ao lado de Luiz Carlos Prestes” de autoria de Maria Prestes

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