Memória: Duarte Pereira, jornalista

“Duarte apareceu um dia na redação de Realidade aí pelo início de 1966, antes do primeiro número da revista. Havia sido contratado para o departamento de pesquisa. Magro, de pele pálida, discreto, de óculos de grau, sempre vestindo terno leve e gravata, um tipo bem diferente da nossa turma de barulhentos, e que andávamos de calça rancheira e manga de camisa.”

Duarte Brasil Lago Pacheco Pereira, o nome já é algo pouco comum. Cinco nomes, o que até parece uma premonição sobre alguém com uma personalidade complexa e que desenvolveria com brilho competências diversificadas:

Intelectual, teórico marxista, professor universitário, dirigente político fundador de organização revolucionária (Ação Popular), militante com ação concreta diretamente junto aos trabalhadores (greve operária de Osasco, Movimento contra a Carestia, na zona Sul de São Paulo) e por aí vai. Mas quero falar dele como jornalista.

Duarte apareceu um dia na redação de Realidade aí pelo início de 1966, antes do primeiro número da revista. Havia sido contratado para o departamento de pesquisa. Magro, de pele pálida, discreto, de óculos de grau, sempre vestindo terno leve e gravata, um tipo bem diferente da nossa turma de barulhentos, e que andávamos de calça rancheira e manga de camisa. À primeira vista bem parecia o cara certo para um departamento de pesquisa, para ficar ali levantando dados e estatísticas para dar apoio às reportagens, o que ele, aliás, viria a fazer com bons resultados para a credibilidade da revista.

Mas foi muito mais do que isso. Sua primeira contribuição foi para a capa da primeira edição. Quem pesquisar vai ver nessa capa a foto de Pelé vestindo um chapéu da Guarda Real Britânica. Na época teve grande repercussão. A ideia da foto já não lembro de quem foi. Mas quem procurou por São Paulo inteira e encontrou o chapéu numa loja que fazia trajes para personagens de teatro foi Duarte.

Discreto. Falava só o necessário, em voz calma, sem arroubos no meio da ebulição da redação. 

Ali ninguém sabia que ele havia sido vice-presidente da UNE em 1963-64, nem que (conforme depoimento de seu contemporâneo Marcelo Cerqueira) na condição de presidente da UNE em exercício, foi a principal liderança popular a se opor, numa conturbada reunião de políticos da esquerda, ao projeto de golpe de Estado cogitado por militares que apoiavam o presidente João Goulart. Sua participação foi decisiva para que o plano fosse abortado.

Também não sabíamos que durante o golpe militar de 1964 se deslocara para Feira de Santana a fim de se juntar ao prefeito da cidade, Chico Pinto, e outras lideranças para organizar a resistência armada. Da qual desistiram quando Goulart se asilou no Uruguai.  

Estávamos começando a fazer a revista. Duarte, que então se apresentava só como Duarte Pacheco, logo chamou atenção quando escreveu uma grande reportagem sobre a China Popular  (“Eis a China”) que com certeza foi a primeira matéria informativa sem viés anticomunista publicada na época no país. Houve muitas reações. Lembrem-se, já era a ditadura militar. Mas a matéria passou.

Fez outras matérias importantes para Realidade, como “Deus está morrendo?”, e também um extrato de um texto americano, “Quem era o homem Jesus”. Foi o editor de uma pesquisa de grande impacto na época, feita por uma agência chamada Marplan, “A Juventude diante do Sexo”, sobre o que pensava e como agia a Juventude Brasileira.

Apesar do seu ar reservado, mostrou-se logo camarada e os colegas se aproximaram desse cara diferente que respeitavam e apelidaram de “Baiano”. Muitos anos depois, em 2013, quando Duarte deu entrevista para a série de vídeos “Resistir é Preciso” do Instituto Vladimir Herzog, é que vim saber que ele era de Santo Amaro da Purificação, Bahia, que ficou órfão de pai aos seis anos, que depois disso a mãe foi com os filhos para Salvador em busca de trabalho e estudo para as crianças.

Duarte começou a estudar em escola pública, e, com bolsa da Prefeitura obtida na condição de órfão, cursou até o ginásio no Colégio Salesiano. Em seguida, foi para o seminário porque queria ser padre, “para aderir à causa dos pobres”, movido pela fé cristã que tinha àquela época.

Ali, cursou o ensino médio, estudou Filosofia e os clássicos, dominava o latim, tornou-se fluente em francês e “arranhava” o inglês, leu tudo de Monteiro Lobato, e jogava futebol com os colegas, na posição de zagueiro.  Ali, em 1957, aos 17 anos, criava seu primeiro jornal de uma longa série, o Acadêmico. E começava a incomodar, influenciado pelas ideias reformistas que surgiam no meio católico (Jaques Maritain, Alceu Amoroso Lima).

Discordando da doutrina tradicional da Igreja, desistiu de ser padre e deixou o seminário. Em 1958 foi trabalhar na Varig, no atendimento a turistas. Ali participou do jornal dos aeroviários e aeronautas, o Variguionando, e da primeira greve geral desses trabalhadores.

Em 1960, faz vestibular e entra para a faculdade de Direito da Bahia. E cai na efervescência do movimento estudantil. Dali a 1963 vive em um furacão: participa do jornal Presença, do grêmio estudantil, mergulha nas articulações que levaram  à criação da organização política de esquerda Ação Popular. Na Faculdade tomou contato com o marxismo, foi colega de Nelson Pereira Coutinho, que se tornaria importante intelectual marxista, e de outros como Glauber Rocha, que abandonou o curso.

Em 1963, numa aliança com a juventude comunista (UJC) a Ação Popular (AP) elege o novo presidente da UNE, José Serra, de São Paulo, tendo como vice Duarte Pereira, da Bahia.

De volta a 1966: na revista Realidade ele não participava do nosso modo festivo, das noitadas com a turma, cumpria rigorosamente o horário de trabalho e desaparecia. Parecia sempre ocupado. Um ano e meio depois de chegar, e de ter sido cogitado pela diretoria até para ser uma espécie de editorialista da nova revista da Editora Abril, a Veja, repentinamente pediu demissão. Alegou que sendo também professor estava atarefado demais para se manter trabalhando ali.

Na verdade, tratava-se de um dos cinco principais dirigentes da organização da esquerda católica Ação Popular, clandestina desde o golpe militar de 1964. Duarte era procurado pelos órgãos de repressão da ditadura militar e estava se afastando da revista para evitar ser localizado e preso. Ao sair, havia aproximado da organização clandestina alguns dos jornalistas com os quais convivera, Narciso Kalili, Sérgio de Souza e eu.

Em 1968, Ação Popular passava por um momento de transição profunda, ia assumindo posições marxistas e buscava ampliar seu raio de ação do movimento estudantil e classe média e se aproximar dos trabalhadores urbanos e rurais.

Trabalhando na clandestinidade, Duarte foi encarregado pela direção da organização de criar um jornal que fosse um divulgador das posições políticas e organizador das células de AP espalhadas pelo país. Foi chamado de Libertação, do qual ele foi o primeiro dirigente e eu seu editor e factotum. No início, feito em mimeógrafo, depois em sucessivos aperfeiçoamentos o jornal chegou a ser impresso numa gráfica própria montada sob a direção de Duarte num sítio da periferia de São Paulo por um casal de militantes (Divo Guisoni e Raquel Guisoni).

 Libertação circularia, sempre na clandestinidade, pelas mãos dos militantes, até 1975, sete anos, durante os quais os órgãos de repressão da ditadura procuraram inutilmente por ele e por sua gráfica.

Entre 1970 e 71 Duarte inspirou e dirigiu, secundado por Haroldo Lima e Aldo Arantes, a elaboração do Livro Negro da Ditadura Militar. Da elaboração desse livro participaram Bernardo Joffily, Jo Moraes e eu (que também era o editor de texto), recolhendo as informações, os relatos sobre as torturas e assassinatos praticados pela ditadura entre os militantes de AP, de outras organizações da resistência e do que era publicado na imprensa.

Duarte Pereira deu a forma final do livro. A capa (de grande impacto), uma caveira com um quepe militar, foi inspirada e desenhada por Elifas Andreato, na casa de quem, e com a colaboração de sua companheira de então, a fotógrafa Iolanda Huzak, foram redigidos e datilografados os textos e preparadas as matrizes para a impressão.

Livro Negro da ditadura militar foi impresso na gráfica da AP por Divo Guisoni e sua companheira Raquel. E distribuído clandestinamente com grandes cuidados e muita dificuldade porque além do mais era relativamente volumoso, 200 páginas.

 Ação Popular passa a se chamar Ação Popular Marxista-Leninista. E mergulha na luta interna de posições políticas. Duas correntes se formam. Num aspecto as duas correntes concordam: a necessidade da construção do partido da classe operária, marxista-leninista, para comandar a organização popular no processo revolucionário. Consideram que as outras organizações da resistência não são esse partido.

Uma delas, porém, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) já havia alguns anos, assumia na frente de lutas concretas no movimento de massas seja estudantil, operário ou camponês, posições próximas das da AP e com certa frequência as duas organizações atuavam em consonância. Ambas se opunham à orientação política pró soviética do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e tinham relações com o PC da China. Suas direções trocavam informações e promoviam o debate das posições políticas. Aproximavam-se.

Nesse processo, a maioria da direção nacional da APML, formada por Duarte, Haroldo Lima e Aldo Arantes, chegou à conclusão de que o PCdoB já era o partido da classe operária, marxista-leninista. E, portanto, ao invés de tentar construir o partido da classe operária, a APML devia unificar-se com o PCdoB. Duarte teve papel destacado na elaboração dessa decisão crucial.

A unificação aconteceu entre 1972 e 1973. Por divergência em relação a algumas questões políticas e quanto ao método da unificação, Duarte desistiu de incorporar-se ao PCdoB. Não aderiu a qualquer outra organização, mas continuou sua militância, no início junto com padres progressistas, e entrando em contato com o movimento popular na região de Santo Amaro, na capital paulista.

Em 1975 reencontrou-se com Sérgio Motta, que na fase católica de AP havia sido dirigente importante em São Paulo, aliado e amigo de José Serra. Motta havia se tornado empresário de sucesso numa empresa de engenharia, a Hidrobrasileira, que fazia planejamento e projetos para grandes obras do governo. E procurava ajudar militantes de esquerda perseguidos pela ditadura, dando emprego para eles em sua empresa. Assim foi também com Duarte.

Em algum momento de 1975 Sérgio Motta apresentou Duarte ao jornalista Raimundo Pereira, que vinha de uma experiência de grande sucesso no Rio de Janeiro como editor-chefe do jornal Opinião. Raimundo estava montando um novo jornal semanal em São Paulo, que viria se chamar Movimento.

Duarte passou a escrever artigos de análise da conjuntura política para o semanário. Era uma sessão chamada Ensaios Populares que fez muito sucesso e alcançou grande repercussão nos meios democráticos que faziam oposição à ditadura.

Os artigos, muito bem escritos e de clareza cristalina ajudavam a compreensão da situação política e davam rumo para as ações da frente democrática que ia se formando.

Apesar da pressão constante da censura prévia, nos Ensaios Populares se fortaleceram propostas como a da Anistia e principalmente a da  convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte para repor o país de volta em trilhos democráticos. A ideia se espalhou “como uma faísca na campina”, reproduzindo-se em debates pelo país, em centros acadêmicos das universidades, em sindicatos de trabalhadores, em teatros, entre artistas, advogados, chegando ao Parlamento por meio dos deputados “autênticos” do antigo MDB. Inclusive vários dos jornalistas de Movimento como Tonico Ferreira, Sérgio Buarque de Gusmão e outros cujos nomes me falham, viajavam de Norte a Sul do país transformados em palestrantes da Constituinte. Sabem quando uma ideia “pega na veia”? Foi assim.

Depois da democratização Duarte continuou atuando como professor e disseminador de ideias. Ele dizia que gostava de ser professor e de fazer jornalismo.

Se você quiser saber mais sobre Duarte Pereira e seus escritos, inclusive os Ensaios Populares, vá ao site Marxismo21.org e procure “Dossiê Duarte Pereira”. Está tudo lá.

Fonte: Portal Unidade

Autor