O PSDB não sobreviveu à própria hipocrisia, por Aldo Fornazieri

PSDB foi transformado não só em partido de direita, mas também em agremiação golpista, com a destruição de sua história e compromissos pregressos

A Social-Democracia europeia surgiu no fim do século 19 como uma vertente do socialismo revolucionário, mas no início do século 20 optou por um caminho mais moderado, de reforma do capitalismo pela via democrática. Historicamente, assumiu um programa de Estado de Bem-Estar Social pela efetivação de direitos sociais e de políticas públicas, para garantir emprego, renda, educação e proteção de outros direitos. Patrocinou um pacto tripartite, envolvendo os trabalhadores, o Estado (e os partidos) e as classes patronais. No contexto da Guerra Fria, esse pacto foi assumido também pelos partidos de centro-direita. Mas a Social-Democracia tinha nos sindicatos suas correias de organização e força eleitoral.

Ao surgir em 1988, o PSDB, como dissidência do PMDB, decidiu ostentar a noção de “Social-Democracia” em seu nome. Tratou-se de uma opção extemporânea, por uma série de motivos. Primeiro, surgiu com quase um século de atraso. Àquela altura, os partidos social-democratas europeus tinham assumido um viés liberal, abandonando os programas tradicionais. Além disso, no Brasil, o PT ocupava um lugar político e social que o aproximava mais da antiga social-democracia.

Olhando retrospectivamente, o PSDB, surgido como agremiação parlamentar, era mais um partido de compromissos democráticos. Em 1989, apoiou Lula no segundo turno, mas depois se aproximou do governo Collor por conta do programa de privatizações e liberalizante. Seu grande feito foi o Plano Real no governo Itamar Franco. O perfil dos governos FHC é conhecido: procurou combinar um programa econômico estabilizador e liberalizante com compromissos democráticos e com programas sociais pontuais, a exemplo do Bolsa Escola. Mas a prioridade foi a economia e não o social, embora o econômico e o social possam ser prioridades coesas e talvez este tenha sido o mote dos governos Lula.

Se, originalmente, o PSDB surgiu como centro-esquerda, nos governos FHC deslocou-se para a centro-direita e, durante os governos petistas, deslocou-se ainda mais para a direita. Isso ocorreu porque, em parte, o PT deu um passo para o centro, colocando-se como uma centro-esquerda moderada, e também porque, como oposição, o PSDB apresentou-se como antiesquerda. O PT manteve o pé esquerdo nas classes trabalhadoras e fincou o pé direito no diálogo com os setores do capital, apoderando-se de parte da interlocução e do programa dos tucanos. O PT e o PSDB disputaram por 20 anos quem coordenaria a centro-direita atrasada e fisiológica do País.

Nas eleições presidenciais de 2014, mesmo com o pós-manifestações de 2013 e com o governo Dilma em crise, Aécio Neves chegou a ser ameaçado de não passar para o segundo turno, dada a competitividade de Marina Silva. Foram sinais de uma fadiga histórica do PSDB. O conteúdo da campanha de Aécio indicava o prenúncio de algo grave, embora as campanhas em geral dos candidatos tenham sido decepcionantes.

O ponto de virada definitiva rumo à autodestruição do PSDB ocorreu no episódio em que Aécio não reconheceu a derrota e decidiu questionar o resultado das eleições na Justiça Eleitoral. Essa atitude assentou um golpe mortal não só no pouco que sobrava do seu conteúdo de centro-esquerda original, mas também no conteúdo de partido de compromissos democráticos que ele vinha mantendo até então.

A partir daquele momento, o PSDB foi transformado não só em partido de direita, mas também em agremiação golpista, com a destruição de sua história e compromissos pregressos. As portas para transformar o partido em um dos capitães do golpe do impeachment contra a presidente Dilma foram abertas naquele momento.

O PSDB não sobreviveu à sua própria hipocrisia: ficou evidente para a opinião pública de que se tratava de um partido de lavajatistas moralistas sem moral. Desfilaram com as camisas amarelas nas manifestações pró-impeachment, mas não conseguiram esconder as suas próprias mazelas e corrupções. O desastre do governo Temer afundou ainda mais o PSDB.

Com o falso moralismo tucano desnudado, o campo ficou aberto para outro moralismo sem moral: o de Bolsonaro como candidato da Lava Jato e o da Lava Jato como aposta num candidato de extrema-direita, antidemocrático e igualmente corrupto. A destruição das vértebras programáticas do PSDB abriu suas portas para que forasteiros como João Doria se alçassem dentro do partido. Em 2018, o partido perdeu qualquer pudor: apoiou o candidato que defendia ditaduras e ditadores, a tortura e torturadores e que havia defendido o fuzilamento do próprio FHC, pai-fundador do partido. Sobrou pouco mais que nada do antigo PSDB: além de apoiar Bolsonaro nas eleições, boa parte do partido assumiu o bolsonarismo, como se evidencia, por exemplo, na bancada.

Em 2022 será escrito o último capítulo da recente farsa do moralismo sem moral se Sergio Moro for candidato. Verificar-se-á também se será possível resgatar algo de digno da história do PSDB ou se o partido morrerá em definitivo no lodo da extrema-direita e da hipocrisia moralista dos oportunistas que abraçam o discurso moral para enganar o povo. Parece que é isso que querem Aécio Neves e Eduardo Leite.

Publicado originalmente na CartaCapital