Yanomamis e etnocídio: a face da morte

Os povos originários, em suas resistências e experimentação da boa vida, representam um risco ao poder.

Foto: Victor Moriyama/ISA

A perseguição aos povos originários é um ponto marcante do governo de Bolsonaro. Mesmo considerando que, desde a colonização, o Brasil nunca levou a sério as políticas e direitos dos povos indígenas e tradicionais, é a primeira vez, nos últimos tempos, que se vê uma política abertamente etnocida.

Junto com a destruição proposital dos povos indígenas caminha o assolamento dos territórios e das florestas, umbilicalmente ligados ao aniquilamento da vida que, no contexto de catástrofe climática, corresponde à degradação da Mãe Terra, para os coletivos humanos e não humanos.

A modernidade se trata de uma ficção, uma ideologia antropológica de desenraizamento, que quer transformar a vida em mercadoria. Então, os povos originários, em suas resistências e experimentação da boa vida, representam um risco ao poder.

O Estado social liberal no Ocidente, enquanto ficção, é etnicizado, marcando-se pela lógica mercantil do capitalismo moderno. E Bolsonaro, mais do que outros presidentes, adotou como traço distintivo de governo a política de morte, elegendo os povos da floresta como seus maiores inimigos

A tragédia dos povos yanomamis, protetores da Amazônia, é um exemplo da face mais cruel dessa política de Bolsonaro, também emparelhada e transformada em cinismo judicial.

ADPF 709 e a (des)proteção das terras indígenas

O STF, através do ministro Barroso, relator da ADPF 709/DF, acolheu, em agosto de 2020, pedidos liminares, determinando medidas ao governo de Bolsonaro na defesa dos povos indígenas, tanto no enfrentamento da covid-19, quanto de outras questões, sendo a ação um marco, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, na defesa do território psicofísico das Terras Indígenas (TI), em torno do qual orbitam os demais direitos originários, como os direitos à vida, à saúde e à segurança.

De poucas ações práticas, a liminar segue descumprida, com omissão deliberada por parte do governo de Bolsonaro, tanto na questão médico-sanitária, quanto nas constantes invasões e ataques do garimpo, apesar da determinação da extrusão dos invasores.

Segundo os Yanomamis, hoje existem cerca de 100 mil garimpeiros, número aumentado exponencialmente durante o governo de Bolsonaro, que sinaliza apoio aos garimpos ilegais, à diminuição de restrições legais e à liberação da atividade em terras indígenas e quilombolas.

Em 12/10/2021, no dia das crianças, conforme nota da Hutukara Associação Yanomami (HAY), houve o assassinato de dois meninos, de 5 e 7 anos, no rio em que brincavam, sugados por uma draga de garimpo ilegal, na comunidade Macuxi Yano, em Alto Alegre, Roraima. Em maio, duas crianças já tinham sido mortas afogadas em Palimiu, Roraima, após fugirem de disparos de garimpeiros, ataques cada vez mais frequentes, apesar da liminar acolhida na ADPF.

Morte por inanição

As formas de mortes do povo Yanomami são diversas, como por anemia, tiros, contágio por mercúrio e surtos de malária. E a perversidade é tamanha que, recentemente, a Funai proibiu a entrada de uma equipe multidisciplinar de saúde de oito médicos de diferentes especialidades nas Terras Yanomamis, enviados para socorrer o colapso de saúde enfrentado nas comunidades.

Apesar da proibição do ingresso, fundada em suspensão por “surto da covid-19”, os garimpeiros ilegais continuam com livre trânsito no território, conforme alertado pelo vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY), Dario Kopenawa, mesmo após a decisão liminar do ministro Barroso, reiteradamente descumprida.

O ministro Barroso, tentando demonstrar que o texto da Constituição não é apenas palavra vazia escrita em peles de papel, para falar como o xamã yanomami Davi Kopenawa, determinou que o governo informasse a situação nutricional, o acesso à água potável e aos serviços de saúde e medicamentos dos povos yanomamis. E cinicamente, em 23/11/2021, a AGU respondeu que o governo tem adotado todas as medidas necessárias para o enfrentamento da questão.

O governo Bolsonaro é digno de ser comparado com o duplipensar orwelliano, aquilo que retorce a fala para fazer o oposto do que deveria fazer. E assim se esvaziam as pautas, dando nomes errados às coisas e fundando paradoxos.

A Funai é um triste exemplo do duplipensar da política de morte bolsonarista, hoje comandada por Marcelo Xavier, fundamentalmente anti-indigenista. A Funai, que deveria proteger e promover os direitos e interesses dos povos indígenas, hoje incentiva o garimpo, o desmatamento e a monocultura, paralisando as demarcações do território.

O esvaziamento proposital, a tortura e a inanição deliberada resumem a face da morte do governo Bolsonaro. Enquanto os povos originários são propositalmente vulnerabilizados, a governança ambiental segue desmontada.

Davi Kopenawa lembra que, enquanto existirem xamãs vivos, eles conseguirão conter a queda do céu, que virá para todos, envoltos em “fumaças de epidemia” e em “estado de fantasma”, da qual a covid-19 é apenas um breve sinal. Contudo, com a política de morte e de fome, os xamãs vêm sendo destruídos, um a um.

Desde a colonização, o modo de organização da vida se pautou pela submissão ao pensamento colonial, mas a vida resiste nos saberes originários, enquanto os brancos, com as mentes fincadas nas mercadorias, ignoram a morte.

Vida que flui, vida que insiste e re-existe. Talvez aí resida a possível reinvenção: experimentar as alteridades nos cosmos, reaprender a sonhar, recuperar os saberes do corpo e da terra na ancestralidade indígena, buscando, nos sonhos esquecidos, outros mundos para serem vividos.

Um poder horizontal chama: protegei todos os xamãs — deles depende a sustentação do céu.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho

Fonte: CartaCapital