Auxílio Brasil: ‘Não tem transição nenhuma, é um buraco negro’, diz ex-ministra

Em entrevista ao Sul21, Tereza Campello avalia que novo programa tem uma série de problemas que ainda precisam ser resolvidos.

Foto: Roberta Fofonka/Sul21

No mesmo dia em que o programa Bolsa Família foi extinto por Bolsonaro, o Sul21 conversou com Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo Dilma Rousseff e que coordenou os programas de combate à fome no Brasil entre 2011 e maio de 2016. Para ela, não é possível dizer que há uma transição entre o Bolsa Família e o Auxílio Brasil porque o novo programa apresenta uma série de problemas que ainda precisam ser resolvidos.

“A Medida Provisória 1061 (que extinguiu o Bolsa Fam´ília e criou o Auxílio Brasil) é de 9 de agosto. Podiam ter um conjunto de situações para fazer uma transição e não fizeram. Não tem transição nenhuma, tem um buraco negro e dentro dele tem 39 milhões de pessoas que recebiam o Auxílio Emergencial e não sabem o que vai acontecer com elas. Essa MP teria que criar o Auxílio Brasil, criar a fonte de financiamento para esse novo programa, porque todo novo programa, pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), tem que ter uma fonte de financiamento a longo prazo, coisas que eles não fizeram, por isso que estão dizendo que vai durar só até o ano que vem, porque não precisa ter fonte (nesse caso). Então, pega um programa que existe há 18 anos, que funciona, e substitui por uma coisa que vai durar até dezembro de 2022”, diz Tereza Campello.

Ao longo de 40 minutos de entrevista, Campello apresentou aqueles que considera ser os problemas do novo programa e oferece soluções para dificuldades que o governo federal deverá enfrentar para implantá-lo.

Confira trechos da entrevista a seguir.

Sul21 – Como a senhora avalia a transição entre o Bolsa Família e o Auxílio Brasil?

Tereza Campello: Primeiro que nem daria para chamar de transição algo que substitui uma política de estado, que tem 18 anos, por um conjunto desconhecido de normas. Bem ao estilo governo Bolsonaro, não só à revelia de qualquer base técnica e científica, porque nenhum estudo foi feito. Tem gente que fala que nenhum estudo foi apresentado, mas não foi apresentado porque não foi feito. Então, sem base em nenhum elemento técnico, sem base em nenhuma evidência científica, sem base em nenhuma conta de padeiro, se troca um programa que já se mostrou sustentável, até porque vem sendo executado há 18 anos, por algo completamente desconhecido.

Podíamos imaginar que acontece uma situação inusitada, que obriga o governo a tomar uma medida atabalhoada, uma hecatombe, caiu uma bomba atômica no País e o governo tem que tomar medidas, sem fazer muita conta. Mas, não, há três anos o governo Bolsonaro vem anunciando que vai fazer isso, não estamos tratando de uma novidade inesperada. Faz três anos que eles anunciam que vão acabar com o Bolsa Família, eles fizeram dez anúncios diferentes de supostos programas que teriam nomes diferentes ao longo desses três anos, então não resta a menor dúvida de que eles tiveram tempo suficiente para construir um projeto, para fazer estudos, etc e tal. Não fizeram, não é só por incompetência, é por completo desdém à agenda social, por completa desconsideração à situação do povo, por completo descompromisso, inclusive, em responder a situação atual.

Nós temos um único acordo na sociedade, que o Bolsa Família, apesar de ser um programa absolutamente eficiente, eficaz, testado, comprovado e reconhecido mundialmente com base em 100 mil estudos científicos realizados em todo o mundo, dos quais quase 20 mil no Brasil, os valores precisariam aumentar, porque estão muito defasados. Eram valores talvez adequados a um outro Brasil. Por exemplo, em 2014, quando o Brasil saiu do Mapa da Fome, nós tínhamos um País com a menor taxa desemprego da história e um Bolsa Família que hoje equivaleria em torno de meia cesta básica. Ele era um complemento, mesmo assim muita gente dizia que ele estava baixo. Hoje, o que eles estão fazendo, eles arrebentam o Bolsa Família, colocam no lugar um projeto nunca testado, cheio de complicações, com conceitos completamente obsoletos, obtusos, conservadores, preconceituosos. Então, do ponto de vista do mérito, o projeto é insuficiente. Do ponto de vista dos valores, a proposta ainda é desconhecida e não para em pé do ponto de vista da gestão. Nós estamos muito preocupados, porque eles desorganizam toda uma base já existente, segura, colocam no lugar, do ponto de vista conceitual, um projeto ruim, mal feito, mal desenhado e preconceituoso. E, do ponto da gestão, eles não criaram a menor condição de que isso possa ser executado porque os municípios estão perdidos. Eu já recebi dezenas de e-mails, de telefonemas, de mensagens de WhatsApp de pessoas do Brasil todo me perguntando o que vai acontecer. Então, é muito preocupante.

Sul21 – A senhora falou de problemas conceituais, quais seriam eles?

Tereza Campello: Tem uma discussão mais geral que é bastante relevante que é a seguinte: o que motiva, o que organiza e orienta o Bolsa Família e o que organiza e orienta o Auxílio Brasil. O que organizava e orientava o Bolsa Família era a ideia de que você tinha uma situação grave de pobreza e de fome no Brasil e que isso se devia à falta de acesso aos alimentos. Então, a gente aportava às famílias um complemento de renda para melhorar o acesso aos alimentos e aliviar a pobreza. Junto com isso, a gente tentava resolver dois outros problemas, que eram a alta evasão escolar e a necessidade de que a população de baixa renda pudesse ter acesso regular ao Sistema Único de Saúde (SUS). Então, a gente buscava aliviar a pobreza com transferência de renda e garantir com isso o reforço de duas políticas públicas, que é o acesso à educação e o acesso à saúde dessas famílias.

Qual é o conceito que organiza o projeto do governo Bolsonaro? As famílias são pobres porque são preguiçosas, as famílias são pobres porque não querem trabalhar. E aí o programa é uma forma de estimular a busca ao trabalho, como se o Brasil tivesse cheio de empregos disponíveis e a população estivesse deitada na rede esperando o Bolsa Família. Eles partem do princípio de que o povo é pobre por culpa deles, porque não procura emprego. Então, esse Auxílio Brasil cumpriria uma função, digamos, de substituir o ministro da Fazenda, porque você acha que um programa social vai gerar emprego. Como a gente sabe que não tem emprego no Brasil, que estamos vivendo uma altíssima taxa de desemprego, você tem quase 15 milhões de pessoas procurando emprego e não acham, o problema não é que as pessoas estão deitadas na rede e procurando emprego, o problema é que a política econômica inviabilizou esse País. Então, tem um problema de conceito, que é radicalmente diferente.

Segundo, o desenho do programa é completamente diferente do nosso. A gente tinha um programa simples para funcionar no Brasil todo. Na Ilha do Marajó (PA), no Chuí (RS), em Viamão (RS), na Amazônia. Como ele era simples, podia funcionar no Brasil todo e estava baseado em três redes: assistência social, saúde e educação. E era viabilizado pela Caixa Econômica Federal. Ele se baseava em grandes sistemas públicos organizados a partir dos municípios, em linha direta com o governo federal porque são sistemas nacionais. O governo federal e os municípios são interligados, tanto por conselhos, como por fundos de repasses de recursos, com regras claras. Eles montaram um programa mega complicado, com nove benefícios diferentes, sem conversar com nenhum município. Portanto, os municípios estão desesperados, estão a ponto de me procurar, o que é absurdo, eu não sou mais ministra. As pessoas não sabem o que vai acontecer, é uma completa falta de comunicação e orientação geral.

Os nove benefícios tornam o programa complexo, inexequível, mal desenhado. Segundo, não tem contrapartida no que eles estão oferecendo. Por exemplo, a mulher para receber um benefício que eles criaram, um auxílio-creche, eles passam o dinheiro para a creche privada, que não é controlada pelos municípios e pode não ser regulamentada. E a mulher teria que arranjar emprego. Então, para ela ter acesso a esse benefício, imagina a complicação. Tem que arranjar emprego, o emprego tem que ser formal, tem que comprovar que está arrumando emprego, sendo que você não tem a mesma rede que você tem do SUS, até porque eles destruíram ou desorganizaram o pouco de rede que tinha da área de trabalho e emprego no Brasil. Então, ela teria que dar todo um conjunto de informações sobre esse emprego para eles passarem dinheiro para uma creche privada que não está regulamentada pelo município, que o município não controla, que você não sabe se é creche ou hotelzinho, se é uma espelunca. E, se a creche for uma espelunca e não for creche de verdade, quem vai ser culpada por isso vai ser a mulher. Então, a chance dessa proposta deles funcionar é nenhuma.

Agora, alimenta um tipo de discurso dessa base conservadora que acha isso, que as pessoas são pobres porque são preguiçosas, acham que tem que criar benefício desde que as pessoas procurem emprego, como se as pessoas não estivessem procurando emprego, e, mais, como se elas não estivessem trabalhando. A maior parte das pessoas do Bolsa Família não é que elas não estejam trabalhando, elas estão, a grande maioria trabalha e muito. Mesmo assim, porque trabalham na informalidade, porque não tiveram acesso à educação, porque não teve acesso a um conjunto de oportunidades, ganha muito pouco. Então, a ideia de o pobre é pobre porque não trabalha não só é uma ideia conservadora, como é uma ideia perversa, porque as pessoas trabalham. Pode ser que os pobres não trabalhem na Finlândia, mas no Brasil trabalham e mesmo assim não conseguem tirar o seu sustento. Até porque eles também vieram quebrando várias cadeias do campo e da cidade, acabaram com a CLT, desorganizaram o programa de aquisição de alimentos, desorganizaram as compras da agricultura familiar para a merenda escola.

E aí quando eu falo dos sistemas funcionando, entra uma terceira questão fundamental que é o fato de que o Bolsa Família acabou funcionando em parceria com duas ideias basilares. O Cadastro Único, que te gera um conjunto de informações sobre quem é essa família, um conceito muito importante de que você precisa conhecer para incluir. Você não inclui as pessoas da mesma forma. A pessoa pobre na área rural do Rio Grande do Sul, no Alto Uruguai, que tem uma população camponesa pobre, tem necessidades muito diferentes de uma família pobre da Amazônia ou do Nordeste no meio rural. Da mesma forma como uma família pobre no meio urbano de uma cidade média como Caxias do Sul é diferente de uma pessoa numa favela no Rio de Janeiro. Então, para você saber se essa pessoa precisa de uma cisterna, como no Nordeste, ou se precisa de assistência técnica, você precisa conhecer essa família. Então, o Cadastro Único te dava um conjunto de informações, seja de carências de bens públicos, como saneamento, água e energia, seja de que família você está falando. É uma família de indígenas, de produtores rurais, uma família urbana. Esse conjunto de informações te dava elementos para planejar e construir o acesso dessa população ao estado e fortalecer políticas públicas. A segunda ideia é sobre a forma como você construía esse acolhimento e essa abordagem para o cidadão, que era através da rede de assistência social.

Você tinha uma abordagem humanizada. Eles substituíram essas duas peças chaves que organizavam o Bolsa Família por um aplicativo completamente inadequado, que não só barra o acesso ao cidadão mais pobre, que não tem internet, que não tem smartphone, que não tem conhecimento suficiente, que não sabe lidar com essa tecnologia, como tem informações parciais, rudimentares, eu diria, ao contrário da quantidade estratégica de informações que nós tínhamos no Cadastro Único. E o atendimento é um atendimento por robô. Disque 1 se você não sei o quê, disque 2, em vez de você ter o atendimento de uma assistente social, que inclusive ajuda as pessoas a responderem as perguntas. Quanto você ganha? ‘Ah, olha, eu não sei’. ‘Mês passado, você sabe?’ ‘Ah, não’. ‘Vamos fazer o contrário, então. Em geral, como é teu dia a dia?’ Era toda uma conversa e, nesse processo, você acaba compreendendo as vulnerabilidades. Tudo isso eles estão terminando, a base do que fez o Bolsa Família uma referência mundial.

Sul21 – Eu queria lhe perguntar sobre essa desarticulação da rede de assistência. O acesso ao benefício não passa mais pelos CRAS (Centro de Referência da Assistência Social), que direcionavam as pessoas para outras áreas. Como a senhora vê isso?

Tereza Campello: Agora você está pegando outro lado. Essa família é abordada, é acolhida, só que quando ela vai no CRAS, de fato, ela acaba tendo um acesso a um conjunto de políticas. Seja socioassistenciais — ‘Mora um idoso com você? Como ele está? Quantos anos ele tem? Recebe aposentadoria?’ Por que não recebe? Tem direito ao BPC, tem direito à aposentadoria, vamos ver como fazer isso, deixa eu te encaminhar’ –, seja outras políticas. Tem situações de isolamento, em que o idoso se sente muito isolado, fica muito sozinho. ‘Olha, porque não se inclui aqui num grupo de idosos aqui do CRAS’. Então, você passa a ter acesso aos serviços socioassistenciais e aos demais serviços do Estado. Interromper essa cadeia é uma questão fundamental para eles, porque eles querem destruir o estado. Então, ao acabar com essa relação, eles jogam uma pá de cal na assistência social, que teve um corte de recursos violentíssimo, 67%.

Sul21 – A impressão que se tem é que muitas pessoas procuram os serviços de assistência social primeiro a partir do Bolsa Família, tem que atualizar os dados no Cadastro Único, etc. A senhora acha que, separando as duas coisas, as pessoas vão perder o incentivo a procurar os serviços de assistência social?

Tereza Campello: Eles estão fechando uma porta de entrada ao estado, porque o objetivo deles não é esse. Tem uma coisa que é muito interessante e as pessoas não estão se dando conta. Quando essa família chega no CRAS, acessa o Bolsa Família e, com isso, acessa outras informações, ela passa a se empoderar como cidadã. Acaba sabendo que tem direito a isso, mais aquilo e mais aquilo outra, e passar a exigir do estado. ‘Eu sou obrigado a levar meu filho na escola, mas a escola é a não sei quantos quilômetros da minha casa e não tem transporte escolar. Por que não tem?’ Tudo isso vai, na verdade, trazendo à tona a desproteção. É uma criança que mora longe da escola, que precisaria de transporte escolar, explicita problemas. Ao explicitar problemas, se o estado está interessado em resolver, tenciona esse estado. Tem gente que fala assim: ‘a mãe não quer levar o filho na escola’. Em geral, não é isso que acontece, a mãe não consegue levar. Ou ela trabalha ou leva na escola, ou a escola é a 5 km dali, como que ela faz. Quer dizer, ao mostrar quão longe essa escola é, ou quão longe é o serviço de saúde, quão desprotegida essa família está, você acaba tencionando o estado a resolver esses problemas. Se é um estado acolhedor, preocupado em buscar esse cidadão, isso nos ajuda a construir uma estratégia para resolver esses problemas. Se é um estado que está interessado em fechar a porta, a melhor coisa que ele faz é criar um aplicativo que não funciona, a pessoa fica tentando, ‘alô, alô, disque’, ‘fique na linha, a sua ligação é super importante para nós’. Então, você acaba criando uma barreira de entrada ao cidadão ao interromper esses dois fluxos, o Cadastro Único e a própria política de assistência social.

Fonte: Sul21

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