O Mercado, o Poder e as Castas – Parte 1 de 2

“Essa aliança trabalhadores-intelectuais na Europa se chamou socialdemocracia. Aqui, entre 2003 e 2014, chamou-se social-desenvolvimentismo. Vamos retomá-la, somada às melhores lideranças progressistas de outras castas! Para isso, é necessário o apoio decisivo dos “párias” para voltarmos à política de inclusão social”, diz Fernando Nogueira da Costa na primeira parte de artigo publicado na Carta Maior.

Trato O Mercado com toda a reverência dedicada a um ser sobrenatural com letras maiúsculas. Afinal, Ele parece ser onipresente na mídia brasileira, onisciente a respeito do futuro, aparentemente incerto para os mortais – exceto a própria morte –, e onipotente para condenar todos esses pobres coitados às piores mazelas possíveis caso o contrariar. E não o louvar.

Neste fim de governo, o circo pegou fogo – e eu, pobre palhaço, dou risadas por ver os economistas neoliberais, louvadores de O Mercado, desesperados com o capitão e seu imprestável “Posto Ipiranga”. Provam do seu próprio veneno…

Com o baixo índice de popularidade e obcecado apenas com a reeleição para salvar a si e a família da prisão, devido aos maus hábitos, o líder do clã paramilitar pensa a conjuntura econômica representar, para o eleitor, a indicação do grau de acerto do governo na realização da sua tarefa. Com a estagflação, isto é, a estagnação no crescimento da renda e emprego, além da inflação de alimentos e energia, inclusive a de combustíveis, esse relacionamento entre a chance de reeleição e essas variáveis econômicas afetadas é chamado de “função popularidade”.

Inversamente, quando a relação direcional vai de O Governo a O Mercado, é a Política influenciadora da Economia, à qual tenta manipular para assegurar sua própria sobrevivência. Este relacionamento Estado-Mercado é chamado de “função política”. O conluio entre eles não atendeu à Comunidade desde sua posse no início de 2019.

O Governo não consegue mais colocar em prática suas concepções ideológicas. Sua política ideologicamente orientada para a obsessiva austeridade fiscal, extremamente impopular, está sendo impedida pelo próprio oportunismo de sua base governista. Ela duvida dele ser reeleito, por seu nível de popularidade está muito abaixo de um nível mínimo necessário de apoio.

No desespero, todo seu esforço para aumentar popularidade, não é propriamente implementar política expansionista, via aumento dos investimentos públicos produtivos, para reduzir o desemprego e aumentar o crescimento da renda, nem tampouco melhorar a qualidade dos serviços públicos na área de segurança, educação e saúde. Sua opção é comprar diretamente os votos necessários com mudança da rotulagem do bem-sucedido Programa Bolsa-Família, atribuído ao seu maior adversário.

Naturalmente, a situação será diferente se a taxa de inflação estiver muito alta. Neste caso, poderá ser vantajosa para o governo a implementação de uma política deflacionária.

Qual é a intuição a respeito do Poder de uma mente primitiva como a do atual mandatário? Quando é restrita apenas à (má) educação familiar, ela é imbuída do pensamento de o Poder Paternal, vindo da natureza sobre os descendentes diretos, ser exercido sobretudo pelos interesses dos filhos.

Com educação militar, cria antagonismo para associar e defender “os amigos”, isto é, sua base eleitoral, e desagregar e combater “os inimigos”: os adversários de sua prática governamental para si. O Poder Despótico adota um vale-tudo pelo interesse do tirano.

O Poder Político, nas formas corretas de Governo, deve agir pelo interesse não só de quem governa, mas, principalmente, de quem é governado, ou seja, toda sociedade. Apenas nas formas viciadas, o poder só é exercido em benefício da perpetuação dos passageiros governantes.

Esse Poder Político, exercido de modo adequado, se diferencia do Poder Paternal e do Poder Despótico. Deve se basear no consenso democrático – e não apenas nos interesses dinásticos e corporativistas dos governantes. Esta é a distinção chave entre mau e bom Governo.

Em uma sociedade desigual entre, de um lado, a abundância, e de outro a penúria, o Poder Econômico dos ricos busca defender seus interesses contra os dos pobres. Pior fica quando se alia ao Poder Político, baseado na ideia de o mundo se dividir entre fortes e fracos, definidos pela posse de armas para exercer a força física como poder de coerção violenta.

Frente essa realidade objetiva, resultante da mistura policiais-militares-milicianos, resta se erguer o Poder Ideológico. Os sábios necessitam enfrentar os ignorantes. No passado, os sábios eram sacerdotes. No presente, são intelectuais e/ou artistas criativos. Só dispõem da posse de sabedoria para exercer a força das ideias como poder de coesão social em torno de uma realidade democrática consensual.

Vemos, então, três subsistemas fundamentais interagirem e disputarem o Poder hegemônico: a organização das forças econômicas, a organização da coação ou coerção, e a organização do consenso. Tradicionalmente se distinguia, de maneira binária, o Poder Espiritual (hoje Poder Ideológico) e o Poder Temporal ou laico (resultante da união do chamado hoje de Poder Econômico e de Poder Político).

A visão marxista, inicialmente, adotou também um reducionismo binário, baseado no materialismo dialético. Supunha a infraestrutura (ou o sistema econômico de um modo de produção) ser dominante sobre a superestrutura, compreendendo esta tanto o sistema ideológico quanto o sistema jurídico-político.

Antônio Gramsci renovou o marxismo ao distinguir, na esfera da superestrutura, entre o momento do consenso, na sociedade civil, e o momento do domínio, na sociedade política ou Estado. Destacou o papel-chave dos intelectuais ser criar aquele consenso.

Tanto na dicotomia tradicional (Poder Espiritual versus Poder Temporal), quanto na marxista (Infraestrutura versus Superestrutura), se encontram as citadas três formas de poder. O segundo termo tem dois componentes na Teoria Tradicional, sendo o momento principal o ideológico, porque o Poder Econômico-Político é concebido como, direta ou indiretamente, dependente do Poder Espiritual. Já na Teoria Marxista, o momento principal é o econômico, pois o Poder Ideológico e o Poder Político refletiriam ou se submeteriam ao Poder Econômico da classe dominante.

Daí, sem cautela, é comum muitos marxistas caírem no economicismo, quando fazem análise político-eleitoral. Imaginam o Poder Econômico se sobrepor ao Poder Ideológico em eleições ou ser a Economia determinante direta da Política.

Mas a Economia depende da Política na alocação de capital (via impostos, subsídios, reserva de mercado, etc.) e na distribuição de renda (funcional, previdenciária, regional, etc.). Ambas estão afetadas por fatores não econômicos: os sociais, analisados pelo Poder Executivo, e os políticos, aprovados (ou não) pelo Poder Legislativo.

Em lugar da luta de classes binária (“nós contra eles”), o jogo de alianças, golpes e contragolpes da complexa e dinâmica configuração da luta pelo Poder eleito e exercido é melhor analisado através das lógicas de ações das castas de natureza ocupacional. Existem fracionamento das castas principais em subcastas em um emaranhado social.

Por exemplo, aqui-e-agora, o Poder Militar da casta uniformizada com farda (e adepta da lógica da violência, vingança, coragem, fama, glória, etc.) se aliou ao Poder Econômico da casta dos mercadores (colarinho branco), seguidora cega da lógica de mercado. Tentaram juntar “família, pátria, Deus” com liberalismo, empreendedorismo, competitividade, eficiência em custos/benefícios… Deu errado.

De início, para se elegerem, tiveram o apoio do Poder Judiciário. A casta dos sábios-juristas (da toga) adota a lógica da meritocracia. Para preservarem a nomenclatura com mais bem-dotados, regras, autoridade, desqualificou depois a sentença do oportunista (e carreirista) juiz de província, ou melhor, da República de Curitiba.

Mesmo o Poder Midiático, isto é, a casta dos sábios-jornalistas (da pena ou do microfone) tinha adotado antes a lógica de negociante ao defender, sistematicamente, o neoliberalismo, sem pluralismo no debate público, golpismo, etc. Reviu seu ponto-de-vista. Também o Poder Religioso da casta dos sábios-sacerdotes (da batina ou do púlpito), ao seguir a lógica religiosa (conservadorismo em costumes, moralismo, disciplina, etc.), não pode fazer “vista grossa” em favor do armamentismo.

Desse modo, dado o fracionamento conjuntural, reemerge o Poder Trabalhista. A casta dos trabalhadores (do macacão ou colarinho azul) tem a lógica de ações corporativas (igualitarismo, ceticismo quanto ao livre-mercado) dos trabalhadores organizados.

Seu líder mais popular, Lula, negocia bem com o Poder Político ou Legislativo da casta dos oligarcas (da gravata), seguidores da lógica paroquial (paternalismo, localismo, etc.), típica dos bairristas, ou da lógica familiar (respeito, herança, primogenitura, etc.) dos clãs dinásticos.

No seu primeiro governo, teve amplo apoio no Poder Executivo da casta dos sábios-tecnocratas (do terno-e-gravata) com sua lógica de especialista (educação, titulação), pois são, sobretudo, técnicos e gestores pragmáticos.

Mas onde mais sobressai seu apoio ou aliança é junto ao Poder de Celebridade: a casta dos sábios-criativos, seja do superstar, seja de outros artistas, com lógica de artista e artesão. Expressam autonomia, auto expressão, liberalismo cultural, criatividade, etc. A eles se juntam o Poder Educacional da casta dos sábios-educadores (do jeans e camiseta) com lógica cívica: tolerância, defesa de direitos civis, sociais e políticos das minorias.

Essa aliança trabalhadores-intelectuais na Europa se chamou socialdemocracia. Aqui, entre 2003 e 2014, chamou-se social-desenvolvimentismo. Vamos retomá-la, somada às melhores lideranças progressistas de outras castas! Para isso, é necessário o apoio decisivo dos “párias” para voltarmos à política de inclusão social.

Leia também a parte 2 do artigo.

Fonte: Carta Maior

Autor