Cientistas recusam honraria concedida por Bolsonaro

Após epidemiologista ter renunciado ao título de grão-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico por não querer compactuar com governo que “boicota ativamente as recomendações da epidemiologia”, mais 20 cientistas agraciados decidem rejeitar o reconhecimento. Eles protestam contra a exclusão pelo presidente do nome de dois colegas que constavam da lista de agraciados, mas são alvo de bolsonaristas.

A exemplo do epidemiologista Cesar Victora, que manifestou nesta sexta-feira (5/11) recusa à Ordem Nacional do Mérito Científico concedida a ele pelo presidente Jair Bolsonaro, outros 20 cientistas condecorados anunciaram renúncia coletiva à honraria neste sábado (06/11). Em carta aberta, eles afirmam que a decisão foi motivada pela “exclusão arbitrária” de dois pesquisadores da lista de homenageados, o que lhes causou “indignação e repúdio”.

Os cientistas haviam sido condecorados em 3 de novembro por meio de um decreto presidencial. Dois dias depois, na sexta-feira, Bolsonaro assinou um novo decreto retirando da lista os nomes de Marcus Vinícius Guimarães Lacerda, pesquisador da Fiocruz, e de Adele Schwartz Benzaken, diretora da Fiocruz Amazônia.

“Tal exclusão, inaceitável sob todos os aspectos, torna-se ainda mais condenável por ter ocorrido em menos de 48 horas após a publicação inicial, em mais uma clara demonstração de perseguição a cientistas, configurando um novo passo do sistemático ataque à ciência e tecnologia por parte do governo vigente”, escreve o grupo, segundo informações da agência de notícias alemã Deutsche Welle.

Os cientistas seguem afirmando não compactuar com “a forma pela qual o negacionismo em geral, as perseguições a colegas cientistas e os recentes cortes nos orçamentos federais para a ciência e tecnologia têm sido utilizados como ferramentas para fazer retroceder os importantes progressos alcançados pela comunidade científica brasileira nas últimas décadas”. O grupo reitera que a renúncia coletiva os entristece, mas expressa sua “indignação frente ao processo de destruição do sistema universitário e de ciência e tecnologia”.

A medalha

A Ordem Nacional do Mérito Científico é uma das mais altas honrarias concedidas pelo poder público a personalidades nacionais e estrangeiras. Desde 1993, a medalha reconhece nomes que contribuíram para o desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação no Brasil.

A indicação dos agraciados é realizada por uma comissão formada por três membros indicados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, três indicados pela Academia Brasileira de Ciências e três indicados pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

“Nossos nomes foram honrosamente indicados por essa comissão, reunida em 2019. O mérito científico (como não poderia deixar de ser) foi o único parâmetro considerado para a inclusão de um nome na lista”, afirmam os cientistas na carta.

Apesar de se dizerem “honrados” por ganhar “um dos maiores reconhecimentos que um cientista pode receber em nosso país”, eles destacam que “a homenagem oferecida por um governo federal que não apenas ignora a ciência, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva, não é condizente” com as trajetórias científicas deles. “Em solidariedade aos colegas que foram sumariamente excluídos da lista de agraciados e condizentes com nossa postura ética, renunciamos coletivamente a essa indicação”, concluem.

Alvos de bolsonaristas

Ambos os pesquisadores excluídos da homenagem haviam se tornado alvos de bolsonaristas nos últimos tempos. Contrário ao uso da cloroquina no tratamento da covid-19, Guimarães Lacerda conduziu um estudo no Amazonas em abril de 2020 que concluiu não haver benefícios na aplicação de altas doses do remédio em pacientes graves da doença. Após a pesquisa, o cientista passou a receber ameaças de apoiadores de Bolsonaro, que ao longo da pandemia vem promovendo a cloroquina e outras drogas ineficazes.

Schwartz Benzaken, por sua vez, foi demitida em 2019 do departamento do Ministério da Saúde responsável por elaborar políticas referentes a infecções sexualmente transmissíveis. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, a demissão teria ligação com uma cartilha da pasta que trazia dicas de saúde para homens transsexuais. Bolsonaro também é conhecido por proferir declarações homofóbicas e anti-LGBTQ.

Carta ao ministro

Referência mundial em aleitamento materno, o epidemiologista Cesar Victora já havia manifestado nesta sexta-feira (05/11) sua recusa em receber o título de grão-cruz da Ordem por meio de carta ao ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes. Segundo informações da jornalista Ruth de Aquino em seu blog no Portal de O Globo, Victora não quis compactuar com um governo que “boicota ativamente as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva”.

“A homenagem oferecida por um governo federal que não apenas ignora, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva, não me parece pertinente. Como cientista e epidemiologista, tenho tornado pública, através de palestras e artigos científicos, minha completa conhecida à forma como uma pandemia de COVID ‐ 19 tem sido enfrentada por esse governo”, explica Victora no documento endereçado ao ministro. “Mais ainda, enquanto cientista não consigo compactuar com a forma pela qual o negacionismo em geral, como perseguições a colegas cientistas e em especial os recentes cortes nos orçamentos federais para a ciência têm sido utilizados como ferramentas para retroceder os importantes progressos alcançados pela comunidade cientifica brasileira nas últimas décadas ”, acrescentou.

No texto, o epidemiologista deixou claro ainda que decidiu recusar antes de saber da exclusão dos colegas da lista, mas afirmou que tal atitude só reforça a decisão dele de não aceitar a distinção. Também por meio de carta, o presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, Celso Ferreira Ramos Filho, parabenizou Victora pela “atitude corajosa, digna, e a ser seguida por outros agraciados – atuais e passados”. “Não sei se será… ”, escreveu, condenando a “atitude indigna e vil de um governo incompetente e desastrado”, que “não lê o que assina”. Segundo ele, Bolsonaro “deu um tiro no próprio pé: a homenagem a Marcus e Adele talvez passasse despercebida”.

A Academia Brasileira de Ciências (ABC) também manifestou indignação pelo “expurgo de Adele Schwartz Benzaken e Marcus Vinicius Guimarães de Lacerda, notáveis ​​cientistas” da lista de agraciados com a Ordem Nacional do Mérito Científico. “Esse ato, inédito no país e típico de regimes autoritários, é mais um ataque à ciência, à inovação e à inteligência do país”, continua a nota da Academia. “Ciência e inovação estão sendo debilitadas por uma política econômica equivocada, que mira o horizonte imediato, com medidas que prejudicam o futuro do Brasil. Ataques irresponsáveis ​​à evidência científica prejudicam o desenvolvimento nacional e afetam diretamente a saúde da população ”, acrescenta a ABC no documento, no qual a academia reivindica “o retorno à lista dos nomes arbitrariamente retirados” e afirma que o governo Bolsonaro promoveu “um ataque frontal ao espírito da Ordem Nacional do Mérito Científico”, que não se presta a “expurgos políticos”.

Confira os nomes dos cientistas que renunciaram à homenagem:

Aldo Ângelo Moreira Lima (UFC)

Aldo José Gorgatti Zarbin (UFPR)

Alfredo Wagner Berno de Almeida (UEMA)

Anderson Stevens Leonidas Gomes (UFPE)

Angela De Luca Rebello Wagener (PUC-RJ)

Carlos Gustavo Tamm de Araujo Moreira (IMPA)

Cesar Gomes Victora (UFPel)

Claudio Landim (IMPA)

Fernando Garcia de Melo (UFRJ)

Fernando de Queiroz Cunha (USP)

João Candido Portinari (Projeto Portinari)

José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS)

Luiz Antonio Martinelli (USP)

Maria Paula Cruz Schneider (UFPA)

Marília Oliveira Fonseca Goulart (UFAL)

Neusa Hamada (INPA)

Paulo Hilário Nascimento Saldiva (USP)

Paulo Sérgio Lacerda Beirão (UFMG)

Fonte: Deutsche Welle, Folha de S.Paulo/UOL e O Globo