Bolsonaro homenageia pracinhas mortos na Itália ao lado de neofascista

O evento criado por Bolsonaro para justificar seu passeio pela Itália é um festival de contradições e expedicionários e partigiani se revirando em seus túmulos.

Bolsonaro e Salviani em Pistoia, na Itália.

O presidente Jair Bolsonaro (ex-PSL) parece não ter nenhum compromisso importante no Brasil. Também não considera importante o encontro de lideranças mundiais na Escócia para discutir o avanço do desmatamento da Amazônia em meio às mudanças climáticas. Em vez disso, está passeando pela Itália, desde sexta-feira (29), onde inventou na agenda presidencial uma homenagem a pessoas das quais parece não saber muita coisa.

Bolsonaro participou nesta terça-feira (2) de cerimônia em memória a pracinhas brasileiros mortos na Segunda Guerra Mundial. O evento aconteceu na cidade italiana de Pistoia. Dos 20.573 soldados brasileiros enviados à Itália na luta contra o fascismo, 467 pracinhas morreram em combate durante a Segunda Guerra Mundial.

A cerimônia foi realizada no Cemitério Militar Brasileiro de Pistoia, criado no dia 2 de dezembro de 1944. No local, estão sepultados 462 brasileiros. Após a execução dos hinos nacionais brasileiro e italiano, o presidente depositou uma coroa de flores no monumento ao soldado desconhecido, um pracinha enterrado no local e que não foi identificado.

O monumento é símbolo da solidariedade brasileira aos italianos devastados pelo governo fascista de Mussolini e pela maior guerra que ocorreu no mundo. Os brasileiros são lembrados pelo carinho que tinham pelos moradores dos vilarejos famintos e sofridos a que chegaram. Pistoia tem o monumento mais importante, dentre 50 outros em homenagem aos pracinhas brasileiros. Lá tem um fogo eterno, a lista dos brasileiros mortos e das batalhas na Itália e um altar em formato de véu.

O padre Dom Piero Sabadini celebrou uma pequena missa e abençoou o monumento. Sabadini substituiu, às pressas, Dom Tardelli, que todos os anos celebrava a missa e que, desta vez, negou sua presença por ser “abertamente contrário a instrumentalização da celebração”.

Segundo relato da Folha de S. Paulo, Dom Piero tamém não estava muito feliz em participar do ato. Uma pessoa próxima ao religioso falou, em condição de anonimato, que o padre não concordou com nada do que estava ocorrendo naquele ano. Disse ainda que o presidente brasileiro é um ditador e que o pai de Dom Piero morreu lutando contra o fascismo.

Monumento Votivo Brasileiro foi construído para homenagear soldados mortos na Segunda Guerra MundialImagem: ADITÂNCIA DO EXÉRCITO BRASILEIRO NA ITÁLIA

Pracinhas e comunistas

Outro aspecto estranho da homenagem é o fato da participação dos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na 2ª. Guerra Mundial ser mais importante para os italianos do que para os brasileiros. Este tema era discutido pelo historiador Augusto Buonicore, que analisou o progressivo apagamento oficial deste episódio da história.

Embora pouco valorizados no Brasil, pelas condições históricas e ideológicas da época, e recentemente desqualificados por autores reacionários e revisionistas, Buonicore não apenas resgatou em textos o cenário conturbado que levou o governo brasileiro, ao fim da guerra, a ignorar o retorno dos pracinhas.

O retorno triunfante dos soldados foi desmobilizado por Dutra, ministro da Guerra, para evitar o avanço comunista entre as tropas, já que o contato com os partigiani (os comunistas italianos que se mobilizaram contra o nazismo) foi o melhor possível. Na verdade, a FEB contava com a participação de muitos militares comunistas.

O modo como os comunistas passam a ter uma forte influência entre os febianos, em particular no que se refere à luta democrática, é algo que preocupa o Governo brasileiro naquele momento, ao ponto da FEB ter sido desmobilizada ainda na Itália, praticamente abandonados lá. As próprias associações de ex-combatentes surgem em função da luta por direitos, pois não tinham nem condições de voltar para casa.

No final, os expedicionários nunca tiveram um desfile da vitória ou homenagens à altura do esforço de guerra para libertar os italianos. Alguns deles se tornaram militares golpistas, depois, mas muitos foram perseguidos, cassados, presos e torturados na defesa da democracia. Enquanto isso, na Itália, há idosos que ainda lembram das marchinhas de carnaval brasileiras daquela época.

Bolsonarismo à italiana

Bolsonaro foi recebido pelo líder da extrema-direita italiana, Matteo Salvini, que também foi à homenagem. O senador e seus aliados fazem oposição ao atual governo do primeiro-ministro Mario Draghi, que não recebeu Bolsonaro durante sua visita à Itália. Ali também houve protestos contra Bolsonaro, que ocorrem por toda as cidades por onde passa. Foram cerca de 300 pessoas gritando “Fora Bolsonaro”.

“Esta é a terra também de meus antepassados. Hoje, um sétimo da população brasileira, 30 milhões de pessoas, tem origem italiana. Em 1943, um dever nos chamava: voltar para a Itália e lutar por liberdade. Assim, 25 mil brasileiros cruzaram o Atlântico, muitos de origem italiana, e para cá vieram. Dois anos depois, quase 500 brasileiros aqui pereceram, mas a vitória se fez presente. Ouso dizer: mais importante que a própria vida é a nossa liberdade”, disse. “Daqueles jovens que estiveram aqui nos idos 43, 44 e 45, poucas dezenas ainda estão vivos, mas eles são, para nós, a chama da liberdade”, foi o que disse Bolsonaro ao fim da homenagem. 

O problema da homenagem é que ela não faz sentido nenhum, quando ambos os envolvidos são lideranças conhecidas internacionalmente por sua ideologia neofascista, justamente o que os pracinhas foram combater na Itália.

Salvini é um dos principais expoentes da direita nacionalista e populista em expansão na Europa. Como Bolsonaro, é conhecido pelo modo como articula discurso de ódio e fake news para combater adversários e disseminar seu elitismo e nacionalismo contra estrangeiros e minorias políticas, como também contra a imprensa.

Assim como Bolsonaro e apoiadores no governo e no parlamento, parafraseiam discursos, mimetizam gestos e práticas do período nazifascista, Salvini publicou em 2018, no dia de aniversário do ditador Benito Mussolini uma variação despudorada do slogan usado pela propaganda fascista (“Muitos inimigos, muita honra”) ao discursar “Tantos inimigos, tanta honra”. Em 2019, Salvini citou outra famosa frase de Mussolini ao pedir à população “plenos poderes”. Ele também foi o único membro do governo a faltar à tradicional celebração do Aniversário da Libertação da Itália do regime nazifascista. Questionado sobre a ausência disse um “e daí?”

Tendo chegado perto de comandar a Itália, o senador sofre a ameaça à direita de Giorgia Meloni, deputada do partido Irmãos da Itália que disse ter uma relação “serena” com o fascismo, ao ressaltar diversos avanços de Mussolini, mas condenar “erros profundos como as leis raciais e o autoritarismo”. A neta de Mussolini, Rachele Mussolini, foi a vereadora mais votada de Roma pelo partido Irmãos da Itália.

O que liga todas essas lideranças de extrema-direita a Mussolini ou Hitler, assim como Bolsonaro, é uma versão dissimulada ou franca de racismo, a manipulação da informação usando a mentira ou distorções argumentativas, negacionismo científico, desqualificação de intelectuais e especialistas, a homofobia, anticomunismo, o nacionalismo, os discursos de ódio e a defesa de valores cristãos. Também costumam se considerar antipolíticos e “contra tudo que está aí”, inclusive contra o nazismo, o fascismo, o feminismo, o ambientalismo, o islamismo etc.

Assista um debate com o historiador Augusto Buonicore sobre a participação dos brasileiros na libertação da Itália na 2a. Guerra Mundial:

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