Crises política e econômica amplificam efeitos do terremoto no Haiti

Segundo Everaldo de Oliveira Andrade, o país depende de intervenção estrangeira e missões humanitárias que aprofundam o desrespeito à sua soberania

Desde 2004, tropas dirigidas por militares brasileiros, sob tutela da ONU, passaram a intervir militar e economicamente no Haiti – Foto: Alexandre Noronha/Amazônia Real

Recentemente, uma série de desastres naturais atingiu o Haiti. Depois de dois terremotos, o primeiro deles de magnitude 7,2, o país foi afetado por uma tempestade tropical. Esses eventos em conjunto destruíram diversas estruturas e dificultaram a busca por sobreviventes. Segundo o governo local, já são mais de 2 mil mortos e 12 mil feridos.

Everaldo de Oliveira Andrade – Foto: FFLCH-USP

De acordo com Everaldo de Oliveira Andrade, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a grande crise econômica e social que o país enfrenta dificulta um trabalho de precaução a esses desastres. O Haiti já havia sido atingido por outro terremoto ainda mais devastador em 2010, que deixou sequelas que não foram superadas até hoje.

A infraestrutura do país e os serviços de resgate e saúde não recebem os grandes investimentos de que necessitam. “Existe uma rede de solidariedade da população haitiana, com suas organizações, sindicatos e igrejas, mas a fragilidade do Estado dificulta um trabalho mais amplo de prevenção para evitar grandes calamidades”, afirma Andrade, autor de diversos artigos sobre o tema e do livro Haiti, dois séculos de História (2019) pela editora Alameda.

Dessa forma, os estragos dos desastres são amplificados no país. “Na verdade, não é um acidente climático, são debilidades e falta de investimento que provocam uma situação de calamidade”, diz o professor. “Os eventos climáticos que sacodem o Haiti também ocorrem em outros países, como Cuba e República Dominicana, sem provocar o mesmo número de mortes, isso porque lá existe uma rede de proteção social construída previamente”, acrescenta.

“Não se trata simplesmente de uma suposta maldição ou incapacidade do povo haitiano, mas do apoio e solidariedade, de fato respeitando a liberdade e autonomia que os haitianos sempre souberam prezar e defender com grande dignidade.”

Além das mortes e da destruição material, Andrade afirma que outra consequência desses desastres é o aprofundamento da dependência de países estrangeiros. Desde 2004, tropas dirigidas por militares brasileiros, sob tutela da ONU, passaram a intervir militar e economicamente no país. 

Assim como outros países, o Brasil enviou ajuda para auxiliar nas buscas por sobreviventes após o tremor mais recente. Entretanto, nem todos os haitianos são favoráveis à presença internacional e às missões humanitárias no país. 

“As tropas estrangeiras não só se impuseram pela violência como também deixaram rastros de desorganização, introduziram doenças como cólera, além das denúncias de maus-tratos, violações e execuções da população”, afirma Andrade. Na avaliação do professor, essas intervenções aprofundam o desrespeito à soberania do país e a falta de democracia. Em julho deste ano, o presidente Jovenel Moïse foi assassinado, o que ilustra a instabilidade política e social naquela nação.

Entretanto, Andrade questiona o discurso difundido de que os haitianos seriam incapazes de erguer uma nação autônoma, democrática e livre. “Esse é um falso discurso, que ignora o que os haitianos já ofereceram para o mundo”, afirma, ao citar a independência do país em 1804, os movimentos em defesa das populações negras e o enfrentamento a invasões e repressão. 

“Não se trata simplesmente de uma suposta maldição ou incapacidade do povo haitiano, mas do apoio e solidariedade, de fato respeitando a liberdade e autonomia que os haitianos sempre souberam prezar e defender com grande dignidade”, conclui.

Edição de entrevista à Rádio USP