Vacina anti-Covid: como a 3ª dose agrava a desigualdade mundial

Menos de 2% da população dos países pobres está protegida, segundo a OMS

Vacina Sputnik V aplicada na Argentina

A pandemia de Covid-19 não se limitou apenas à trágica marca de 4,5 milhões de mortes nos últimos 20 meses. Embora se previsse um mundo mais coeso e solidário, a crise sanitária global estimulou interesses nacionais e consolidou as desigualdades entre países.

Aconteceu na primeira onda, quando as fronteiras foram fechadas para não compartilhar produtos básicos. Aconteceu novamente com as primeiras vacinas, monopolizadas pelos países ricos. E agora, com o debate sobre a necessidade da terceira dose em aberto, os de maior renda se preparam para usar várias centenas de milhões de vacinas que a Organização Mundial da Saúde (OMS) pede que sejam destinadas a países que ainda não puderam proteger seus grupos mais vulneráveis. Menos de 2% da população dos países pobres está protegida, segundo a OMS.

“Faltou uma visão global para enfrentar a pandemia”, diz Africa González, professora do Centro de Pesquisas Biomédicas (Cinbio) da Universidade de Vigo. “Se tivéssemos essa visão, o centro do debate agora seria como aumentar a cobertura de vacinação em todo o mundo e não se dar a terceira dose apenas em alguns países. O risco é que surjam variantes que inutilizem todas as vacinas atuais “, acrescenta o especialista.

Quique Bassat, epidemiologista e pesquisador do Icrea do instituto ISGlobal, defende posição semelhante: “Estamos repetindo erros. Israel e os Estados Unidos (que anunciaram a terceira punção para toda a população adulta) seguirão seu caminho, mas a chave será se todos os países os seguirão ou se limitarão aos grupos para os quais foi acreditado ser necessário”.

França e Alemanha anunciaram que vão aplicar uma punção de armadura a partir de setembro à população mais vulnerável e àqueles com mais de 65 anos. A Espanha, por enquanto, aguarda a tomada de posição da Agência Europeia de Medicamentos (EMA). Nesta semana, o Ministério da Saúde brasileiro anunciou que vai aplicar, também a partir de setembro, a dose de reforço em pessoas maiores de 70 anos e em pacientes imunossuprimidos. Na quinta-feira, a Pfizer, vacina prevista para contemplar esse reforço no Brasil, anunciou parceria com a Eurofarma para produzir sua vacina em território brasileiro, com vistas ao fornecimento de imunizantes para a América Latina.

A OMS, por outro lado, pede aos países ricos uma moratória que adie a terceira injeção. “As evidências sobre os benefícios das doses de reforço são inconclusivas. Também enfrentamos um problema moral quando há uma grande parte da população mundial não vacinada”, afirma o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus. “Os países ricos não podem usar essas doses para que outros possam se desfazer delas. Estamos todos no mesmo barco e tratar apenas uma parte da população não ajudará a sair da pandemia.”

A ciência e a indústria farmacêutica, com enorme apoio público – até 10 bilhões de euros, de acordo com Médicos Sem Fronteiras (MSF) –, alcançaram um sucesso sem precedentes, desenvolvendo uma dúzia de vacinas em um ano e meio. Além disso, e apesar dos problemas iniciais, a capacidade de produção global cresceu. Em um planeta com 7,8 bilhões de pessoas, entre 10 bilhões e 14 bilhões de injeções foram necessárias neste ano. As previsões da indústria são de que em dezembro superem 12 bilhões.

Essas conquistas, no entanto, ainda não garantem que a vacina chegue a tempo a todos os que necessitam. De acordo com Our World in Data, a cobertura mostra grandes diferenças entre os países. Enquanto vários dos mais ricos, incluindo a Espanha, atingem 70% da população com o padrão completo, muitos dos mais pobres permanecem abaixo de 1%. A média mundial resultante dessas grandes disparidades é de um em cada quatro habitantes protegidos do globo.

O sistema Covax, capitaneado pela OMS e que visa a garantir vacinas para pelo menos 20% da população dos países participantes do programa, foi a chave para que os países ricos garantissem suas doses o mais rápido possível (afinal, são eles que adiantam o dinheiro e onde estão as grandes empresas farmacêuticas) e para que a vacina chegasse depois ao resto do planeta. Mas a iniciativa não está funcionando no ritmo esperado e agora, quando era possível ver um aumento nos frascos disponíveis, a terceira dose ameaça reduzi-los. A Covax já deveria ter recebido 640 milhões de vacinas (2 bilhões no ano todo), mas apenas 160 milhões chegaram.

Irene Bernal, chefe de acesso a medicamentos da organização independente Salud por Derecho, afirma: “A Covax não recebeu os fundos de que precisava e não foi considerada um ator prioritário na aquisição de vacinas. Os governos o relegaram e preferiram acumular doses. O problema básico é que é um programa que depende da vontade política dos países ricos e das empresas farmacêuticas “, explica.

O resultado é um planeta transformado em um verdadeiro bazar de vacinas. Em alguns casos, as doses são revendidas. Isso é o que a Polônia fez com a Austrália, com um milhão de doses da Pfizer. Em outros, são doadas. É o que estão fazendo Estados Unidos, Canadá e União Europeia, que adquiriram várias vezes a quantidade de que precisavam. A Espanha se comprometeu a enviar por meio da Covax mais de seis milhões de doses para países latino-americanos.

Essa situação, em que os países menos desenvolvidos são relegados na hora do acesso às vacinas, tem alimentado o debate sobre as patentes. A Organização Mundial do Comércio (OMC) vai retomar em seu conselho geral em outubro a iniciativa da Índia e da África do Sul, com o apoio de mais de 100 países (incluindo os Estados Unidos), para liberar licenças. O objetivo não é apenas aumentar a produção, mas fazê-la nos países menos desenvolvidos para que sejam autossuficientes.

Irene Bernal acredita que “a terceira dose pode causar um novo gargalo na produção de vacinas que precisa ser combatido em várias frentes”. Segundo ela, “as patentes são apenas um primeiro passo que deve vir acompanhado da transferência de conhecimento pelas empresas. Se elas não quiserem dar esse passo, atrasaremos o acesso e perderemos milhares de vidas que hoje têm chance”, argumenta.

As diferenças na cobertura vacinal entre os países não se devem tão-somente a uma questão de renda. Uma nova variável entrou em jogo nos últimos meses e ameaça se tornar mais um calcanhar de Aquiles na luta contra a pandemia: parcela importante da população se recusa a receber a vacina. É um problema, admitem os especialistas, tão difícil de enfrentar quanto as desigualdades – e obedece a uma complexa mescla (diferente em cada país) de desconfiança em relação aos governos, ignorância e tendências difíceis de catalogar.

Com informações do El País