Dados da segurança pública mostram subnotificação de racismos

A partir de dados do “Anuário Brasileiro de Segurança Pública”, jurista analisa as controvérsias das leis aplicadas sobre discriminação e injúria racial, que levam a subnotificação de racismo

A diferença entre injúria racial e racismo define a subnotificação de crimes e a omissão da justiça e da polícia

Em 2020, o número de casos de injúria racial registrado no Brasil foi de 10.291. Em contrapartida, o número absoluto de casos de racismo no País não ultrapassou 3 mil casos no mesmo ano. Os dados presentes no Anuário Brasileiro de Segurança Pública denunciam a urgência do debate sobre o racismo e o aprofundamento do problema no Brasil, principalmente em relação à subnotificação dos registros criminais e às controvérsias das leis aplicadas nesses casos.

“O crime de racismo está previsto na Constituição Federal e trata-se de crime inafiançável e imprescritível. A Lei n° 7.716/1989 é que tipifica a discriminação racial como crime”, explica a professora e pesquisadora do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Eunice Aparecida de Jesus PrudenteAinda de acordo com Eunice, essa lei é antiga e foi aperfeiçoada ao longo do tempo. Mas foi principalmente com a redação da Lei n° 9.459, de 1997, que foram caracterizados como crime os atos resultantes da discriminação ou preconceito por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. 

Enquanto o crime de discriminação racial está previsto na Constituição Federal de 1988, a injúria racial também é um crime e está previsto no Art. 104 do Código Penal brasileiro, porém, gera algumas controvérsias.

“É verdade que, nos chamados crimes contra a honra, há o crime de injúria, que é quando se desqualifica e desrespeita a outra pessoa, muitas vezes envolvendo fenotípicos negros”, explica Eunice. “Ela é diferente e há muitas críticas, porque, em muitos casos manifestos de discriminação racial, onde deveria ser aplicada Lei n° 7.716, é aplicado o Código Penal como se fosse injúria racial”, critica a professora ao revelar que o crime de injúria não é imprescritível e inafiançável, como é a discriminação racial. 

Ela ainda destaca que isso ocorre porque a atuação penal e o punitivismo não são suficientes para mudar uma sociedade e que é preciso investimento em educação e na percepção das diferenças que existem entre a população brasileira. 

Sobre a pessoa que comete o crime, Eunice comenta que, em sua maioria, são pessoas brancas, com níveis bons de escolaridade e integrantes do empresariado. “É um réu diferenciado, porque, no Brasil, a maioria da população carcerária é formada por jovens negros das periferias das cidade”, avalia. Segundo Eunice, quase 45% da população prisional brasileira está na faixa etária de 18 a 29 anos, assim como mais de 67% do total da população carcerária é negra, amarela ou indígena.

“A negligência e péssima atuação do Legislativo brasileiro e, muitas vezes, do Executivo também revelam como a nossa sobrevivência tem dependido do Judiciário”, analisa. 

Ainda de acordo com o anuário, o Estado que mais registrou casos de racismo foi o Rio Grande do Sul, com 1.237 casos. Para Eunice, trata-se de uma questão histórica do Brasil. “O sul do Brasil se destaca por ser a primeira região a receber famílias trabalhadoras da Europa. Esta foi uma opção do governo brasileiro desde o século 19 e, portanto, houve realmente uma convivência de um trabalhador livre, vindo da Europa, com o negro escravizado no Brasil”, contextualiza. 

Para a pesquisadora, as consequências dessa escravização ainda são feridas abertas e que precisam estar nas primeiras pautas políticas e no centro das negociações e das relações internacionais. “É preciso que fiquem claros os resultados que a escravização trouxe e que agora são necessárias ações políticas pelo Brasil, não só as ações punitivistas, mas também as chamadas políticas de ação afirmativa”, destaca. 

Por fim, a professora observa que é preciso melhorar os estudos e colhimento de dados acerca do racismo no Brasil, sobretudo em relação aos dados apontados pelo anuário sobre casos no Rio Grande do Sul.

“Talvez o mesmo não ocorra em outros Estados ou regiões do País, porque há uma subnotificação do racismo. Não é que ele não esteja presente lá, mas não há a devida notificação. No Rio Grande do Sul, pelo visto, realmente há, e no Sudeste também. É mais uma questão de se notificar porque esses casos, sobretudo de injúria racial, estão presentes em todo o Brasil, infelizmente”, conclui.

Confira os dados sobre racismo do Anuário Brasileiro de Segurança Pública aqui.

Edição de entrevista à Rádio USP

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