Como a pandemia e Bolsonaro levaram mais famílias a viverem na rua

Alta se deve, sobretudo, a pessoas e famílias que estavam em trabalhos precários e, com a crise econômica, não conseguiram mais manter suas moradias

Com o governo Jair Bolsonaro e a pandemia de Covid-19, houve um aumento da população vivendo nas ruas dos grandes centros urbanos. Conforme dados do Cadastro Único (CadÚnico, base para os programas sociais do governo), o número de pessoas em situação de rua subiu continuamente entre março de 2020 até abril de 2021 (com exceção apenas de novembro). Segundo o Ministério da Cidadania, de 149.019 pessoas no ano passado, passamos para 162.045 neste ano – um avanço de 8,7%.

Nos últimos dois meses, o número voltou a cair – para 138.762 em maio e 140.749 em junho. A queda na passagem entre abril e maio foi intensa, de 14,3%. Porém, segundo pesquisadores, o movimento que pode estar ligado ao baixo nível de atualização dos cadastros – os números são considerados subestimados por estudiosos.

“Com a pandemia, famílias inteiras estão indo parar nas ruas por não terem condições de pagar o aluguel ou se manterem de outra forma”, diz o professor André Luiz Freitas Dias, coordenador do Polos da Cidadania e do projeto Incontáveis da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Conforme sua estimativa, a diferença entre o número “oficial” de pessoas na rua e o número real ser de até 40%, já que o CadÚnico só inclui quem têm acesso a algum tipo de serviço oferecido pelo governo.

Outro dado que pode ser indicativo do aumento da população em situação de rua é o cadastro no Sistema Único de Saúde (SUS), que indica o número de pessoas que receberam atendimento pelo programa Consultório na Rua, voltado para esse grupo. O contingente total de atendidos mais que triplicou entre 2019 (primeiro ano da gestão Bolsonaro) e 2020, indo de 50.948 para 155.179 pessoas, segundo o Ministério da Saúde.

De janeiro a maio de 2021, o número chegou a 95.059 pessoas, o que representa uma alta de 55% frente a igual período de 2020 (quando eram 61.317, já sob o impacto da pandemia). Segundo o pesquisador Marcelo Pedra, do Núcleo de População em Situação de Rua da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a alta se deve, sobretudo, a um segmento: pessoas e famílias que estavam em trabalhos precários e, com a crise econômica, não conseguiram mais manter suas moradias.

Aliás, o nome do projeto Incontáveis vem da falta de dados sobre a população em situação de rua. “O fato de não termos dados diz muito sobre a invisibilidade dessas pessoas”, diz Pedra, que reforça o coro de que os números do CadÚnico e do SUS sobre a população em situação de rua são apenas uma referência e muito menores que a realidade. “Essas são as pessoas que de alguma maneira têm acesso a políticas públicas. Há mais gente de fora”, reforça.

Levantamento feito em março por Dias, da UFMG, apontava que quase 70% dos cadastros dessas pessoas em situação de rua no CadÚnico tinham sido atualizados há mais de 12 meses. Quase um terço (32,9%) tiveram atualização há mais de 25 meses, prazo que já compromete o pagamento de benefícios como Bolsa Família e auxílio emergencial. Essa “baixíssima” atualização do cadastro, segundo ele, ajuda a explicar a queda de nível do número de pessoas identificadas como em situação de rua.

“Não há queda na população em situação de rua. O que provavelmente ocorreu é que, na pandemia, vários serviços foram afetados, como a atualização do cadastro”, afirma Dias. “Vários equipamentos de atendimento a este público foram fechados. Além disso, esses números devem ser observados como uma tendência mais ampla e não só a variação mês a mês, pode haver algum represamento de dados.”

O Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Ciamp-Rua) também acredita que há influência de redução de registros nos números do CadÚnico. “Há um relato praticamente unânime de aumento entre quem trabalha com a população em situação de rua”, argumenta Carlos Ricardo, coordenador do comitê.

A inclusão de novos perfis entre os que sobrevivem nas ruas também é apontada por um dos líderes do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, Vanilson Torres. O público era marcado principalmente por conflitos familiares e problemas de saúde mental e vícios com drogas e saúde mental, diz ele. O quadro mudou com a ausência de políticas públicas no governo Bolsonaro e a gravidade da crise sanitária. “A pandemia escancarou as desigualdades da população em situação de rua. E há um exército de famílias vivendo nas ruas por não ter condições de arcar com aluguel”, aponta.

Levantamento do programa Canto da Rua Emergencial – realizado pela Pastoral do Povo da Rua no Centro de Belo Horizonte (MG), em parceria primeiro com o Instituto Unibanco e agora com a prefeitura da cidade – mostra a participação desses novos sobreviventes das ruas no total deste grupo. O dado se restringe ao programa, mas sinaliza uma situação que pode se refletir em outras partes do país.

De janeiro a maio de 2021, mais da metade (54,6%) das pessoas que receberam atendimento no projeto estão nas ruas há menos de um ano – ou seja, após o início da pandemia. Um quarto (26,33%) chegou há menos de um mês, 9,86% estão entre um e três meses, 7,72% têm entre três meses e seis meses e 10,68% entre seis meses e um ano. “Todo dia chegam pessoas novas às ruas”, afirma a Irmã Cristina Bove, que coordena o projeto.

Muitos dos novatos das ruas foram despejados de suas casas por não terem condições de arcar com os custos de aluguel. Segundo a Campanha Despejo Zero, quase 18 mil famílias (17.752) foram removidas de suas casas desde março de 2020, com destaque para São Paulo (3.970), Amazonas (3.028), Pernambuco (1.325) e Rio de Janeiro (1.042). Além disso, quase 90 mil (89.771) famílias estão hoje ameaçadas de despejo.

Entre pesquisadores e profissionais que trabalham com a população em situação de rua, a demanda é por políticas diversificadas, que atendam a diferentes perfis desse grupo e sejam capazes de auxiliar na saída dessas pessoas das ruas. “São necessárias políticas plurais, com diferentes ofertas, para diferentes situações. Entre as iniciativas importantes estão abrigos, aluguel social, requalificação profissional, Moradia Primeiro e um programa de renda mínima”, defende Pedra.

Moradia Primeiro é a tradução de “Housing First”, um modelo de política para a população em situação de rua adotado em outros países que prevê que a oferta de moradia deve ser o primeiro passo na política voltada a este grupo, que a partir daí poderá retomar ao mercado de trabalho e ao convívio social. Esta é uma das bandeiras, por exemplo, do Grupo de Trabalho Rua, da Defensoria Pública da União, coordenado pela defensora Maria do Carmo Goulart Martins Setenta.

Carlos Ricardo, do Ciamp-Rua, explica que já existem projetos pilotos nesta linha no Brasil, no Rio Grande do Sul e no Paraná, e que este pode ser um caminho de política para que essas pessoas possam efetivamente superar a condição de rua. “No mundo todo, de 80% a 95% das pessoas que participam de projetos do tipo permanecem pelo menos dois anos, uma taxa de sucesso”, diz. “E os pilotos no Brasil estão nessa média.”

Com informações do Valor Econômico