Dar início a impeachment de ministros do STF é crime, por Lenio Streck

“Como diz Eráclio Zepeda, poeta mexicano, quando as águas da enchente cobrem a tudo e a todos, é porque já de há muito choveu na serra. Nós é que não nos damos conta”

(Foto: Rodrigo Abdalla)

1. Conceito de Constituição e os limites do político

Um bom conceito de Constituição é: estatuto jurídico do político. Quer dizer que, para uma democracia funcionar, a política tem de pagar pedágio para o direito. Caso contrário, já não haverá direito. Logo, não haverá democracia.

Leio que o presidente Bolsonaro quer fazer, junto ao Senado, pedido de impeachment de dois ministros do Supremo. Alguém dirá: sem problemas, porque é um gesto do campo da política.

O problema é que gestos políticos, quando transgridam as fronteiras do campo jurídico, têm de ser limados. Explico: embora a CF estipule que o Senado é o foro para processar e julgar, nos crimes de responsabilidade, ele mesmo, o presidente e ministros do STF, isto não quer dizer que o presidente ou qualquer pessoa possam sair escrevendo qualquer coisa.

2. Crime de hermenêutica? Isso é muito velho

Qualquer aluno de primeiro ano da Faculdade do Balão Mágico ou UniNada sabe que a Lei do impeachment não admite processamento de ministros do STF por causa do conteúdo de seus votos — o que seria crime de hermenêutica. Rui Barbosa já dizia isso em 1897.

O que isto quer dizer? Simples. Que o ato político tem consequências jurídicas. Há uma lei recente que trata do abuso de autoridade, cujo artigo 30 diz: “Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente: Pena — detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos”.

Se há dúvida se Bolsonaro, por pedir o impeachment, comete o crime de abuso, dúvida não há se Rodrigo Pacheco entrar nessa roubada, porque, se tocar para a frente, fica claro crime de abuso da nova Lei. Pacheco que abra o olho, pois.

Como sabemos, o Presidente tem a Advocacia Geral da União que o assessora. Na verdade, a AGU sempre se disse “advocacia de Estado”. Esperamos que a AGU não banque essa aventura antijurídica, típica e culpável. AGU não deve ser advocacia de governo ou fazer “advocacia de partido”. Além disso, uma “denúncia” infundada ao Senado contra ministros do STF, dependendo do teor, também pode configurar crime de responsabilidade, artigo 6, inciso V (ou VI?), da Lei 1.079.

Não esqueçamos que o presidente da República tem uma fala institucional. Um pedido (petição) de abertura de investigação por crime de responsabilidade de ministros do STF tem um peso incomensurável. O simples pedido já configura ameaça e pressão indevida sobre o Poder Judiciário.

3. O Rubicão brasileiro, que já tem ponte, e as vivandeiras bulidoras

Sim, sei que o Rubicão brasileiro, de tantas vezes atravessado, já tem até ponte. Mas sempre é bom lembrar à sociedade, à grande imprensa e à comunidade jurídica que o direito é que limita a política e não o contrário.

Por último e dentro da mesma linha, leio nas redes sociais insuflamentos ao cometimento de crimes — o que já por si é crime — tratando de fechamento de rodovias e marcha sobre Brasília para “buscar fechamento do STF” e quejandices.

Por trás das vivandeiras1 está um cantor-político, quem diz estar apoiado pelos maiores plantadores de soja e outros grãos. Nunca houve tantas vivandeiras no país.

Duas coisas sobre isso. Se queremos, mesmo, uma democracia, tentativas golpistas — e por isso o STF acertou ao prender Jefferson — devem ser punidas com rigor.

Não há um direito fundamental a extinguir os próprios direitos fundamentais. Instituições são notáveis invenções, que são como limpadores de para-brisa: só têm boa serventia se colocados do lado de fora do carro. Sob pena de inutilidade.

4. Coração de Papel ou Cérebro de papel? O dilema do cantor-deputado

A segunda coisa é sobre o deputado-cantor-sertanejo (o do Coração de Papel e famoso pelo berrante para tocar boiada) insuflador-instigador (consta que até mesmo os caminhoneiros o desmoralizaram). Há um livro do grande Fausto Wolf, cujo título é “Matem o Cantor e Chamem o Garçom”, romance sátiro-trágico-político. Pois é. Expulsemos o cantor e chamemos o primeiro advogado que entenda um pouco de direito e de Constituição. Claro, enquanto ainda houver Constituição.

Há algum tempo li que em uma livraria de Buenos Aires há uma caixa de vidro e, dentro dela, uma constituição. Por fora, um martelo e os dizeres: em caso de crise e perigos golpistas, quebre o vidro!

Olho no martelo! A coisa é séria, mesmo. Talvez já estejamos no olho do furacão e não nos demos conta.

Como diz Eráclio Zepeda, poeta mexicano, quando as águas da enchente cobrem a tudo e a todos, é porque já de há muito choveu na serra. Nós é que não nos damos conta.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados

Fonte: Conjur

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1 Elio Gaspari sempre lembra da expressão de Castelo Branco para caracterizar golpistas que flertam com militares: “vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar”.

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