Márcio Pochmann: A novíssima maquinaria e o trabalho no início do século 21

Desindustrialização não significa que a produção de manufatura tenha perdido relevância econômica

A busca pela elevação na taxa de lucro do sistema econômico promove o aparecimento de uma novíssima maquinaria a reconfigurar o trabalho neste primeiro quarto do século 21. Por maquinaria compreende-se a incorporação de novas tecnologias que permite tanto ampliar a capacidade de produção como reduzir o tempo de trabalho necessário, cujas consequências políticas na sociedade, sobretudo para a classe trabalhadora, são significativas.

Desde o nascimento da grande indústria, ainda na Inglaterra do século 18, o desenvolvimento da maquinaria se associou aos processos de inovação tecnológica. Ao englobar os saberes dos trabalhadores, a industrialização crescente nas mais diversas atividades econômicas garantiu maiores ganhos de produtividade pela captura de maior parcela do trabalho não-pago.

Neste sentido, o avanço atual do trabalho em plataformas digitais e pela difusão da inteligência artificial guarda relação com o passado da mecanização que transformou o antigo labor artesanal dos trabalhadores de ofício. Ainda que linguagens de base ideológica esteja sendo introduzidas (“parceira”, “empreendedorismo” e “colaboracionismo”), parecendo diferenciarem da tradicional relação capital-trabalho, a estrutura básica das classes sociais proprietárias e não proprietárias permanecem intocadas.

Em não havendo alteração na separação entre proprietários e não proprietários dos meios de produção, a novíssima maquinaria termina por reproduzir a clássica e longeva forma industrial de produção. Em vez da perspectiva pós-industrial, consolida-se a superindustrialização dos serviços em busca da elevação na taxa de lucro assentada no apresamento do trabalho não pago através da crescente digitalização da economia.

Por indústria, concebe-se a forma de produzir padronizada e em larga escala, conforme origem na esfera da manufatura, e se que espraiou também para a agropecuária e serviços, mais acentuadamente no período recente. Na realidade, a superindustrialização que se expressa pela digitalização do sistema econômica ancora-se no uso recorrente da inteligência artificial em simultânea metamorfose da riqueza submetida à lógica rentista do capitalismo ocidental nos últimos anos.

Com a globalização sendo conduzida pelo aprofundamento da competição entre as grandes corporações transnacionais, a produção foi reespecializada no mundo, permitida pela difusão de novas tecnologias que mudou a natureza e o conteúdo do trabalho em todos os três setores econômicos, sobretudo o terciário. Pela dinâmica dos serviços ao longo do tempo se pode melhor considerar a trajetória do desenvolvimento da indústria.

Em geral, o apogeu da industrialização no capitalismo transcorreu na manufatura que possibilitou elevar a participação do setor secundário na composição do PIB em simultâneo decréscimo do setor primário e da estabilização dos serviços. Mais recentemente, com a superindustrialização, assiste-se à continuidade do declínio da participação relativa da agropecuária (setor primário) acompanhada da indústria (setor secundário), com expansão dos serviços (setor terciário) no PIB.

Embora seja identificada como desindustrialização, isso não significa que a produção de manufatura tenha perdido relevância econômica, uma vez que pode haver maior densidade industrial caracterizada pela sofisticação tecnológica cada vez mais relacionada ao desenvolvimento dos serviços. Assim, a produção industrial tende a catalisar maior geração de riquezas com a contínua incorporação de novas tecnologias e inovação em melhores condições de apropriação do trabalho não pago.

Justamente por isso que se reconhece a associação positiva da participação do setor com o desempenho industrial. Pela novíssima maquinaria que se pode observar a evolução dos dois distintos comportamentos no interior do setor terciário: os serviços tradicionais (pessoais e sociais) e o avançado (distribuição e produção).

Quanto maior o grau de internalização da novíssima maquinaria, mais avançada presença dos serviços (financeiros, comunicação, informática e técnica jurídica, publicidade, negócios e outras) a transformar profundamente o trabalho submetido às tecnologias de informação que favorecem a comercialização transfronteiras nacionais. Com menor o grau de internalização da novíssima maquinaria, mais ampla tende a ser a manifestação dos serviços tradicionais (segurança privada, trabalho doméstico e outras formas de atividades sociais e pessoais) vinculados às especificidades de cada nação, por isso não comercializáveis.

Por outro lado, a interpenetração da maquinaria na economia desde o século 18 tem provocado a apropriação de forças de trabalho suplementares pelo capital, com a flexibilização do uso e remuneração da mão de obra, o prolongamento da jornada laboral e a intensificação do trabalho. Como reação à crescente exploração dos trabalhadores, a progressão dos conflitos e resistências laborais têm sido perseguida por intervenção política que através de legislações nacionais reconhecem a representação laboral e buscam regular a relação entre o capital e trabalho.

Publicado originalmente na Carta Maior

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