Entre vizinhos, por Yvonne Miller

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A gente vive numa troca contínua de alimentos com o vizinho:

— Lu, tu tem três dentes de alho pra me emprestar?

— Tenho até mais!

Lá vai ele pra cozinha e volta com uma cabeça inteira.

— E um tantinho de azeite?

Sem o Luciano nossos pestos nunca iriam sair. Depois de preparado, levo um potinho pra ele e garanto assim sua boa vontade para colaborar com futuras refeições e sobremesas.

— Comprei o creme de leite que a Morena estava precisando no outro dia — ele diz. — A próxima vez que quiser fazer torta de limão é só pegar aqui…

É a simbiose alimentícia perfeita. E a lista pendurada na geladeira testemunha nossa boa intenção de (um dia) devolver tudo: 5 cabeças de alho, meio pacote de arroz, um litro de leite, pães franceses no valor de 2 reais e 19 centavos, 3 pitadas de sal, dois tantinhos de azeite, 36 ovos e assim por diante.

Tá tudo documentado, viu, Lu? Pode deixar, que no momento menos esperado reencheremos sua despensa!

Acostumada com essa troca, não me surpreendi quando, dia desses, uma vizinha parou em frente de casa:

— Bom dia, Yvonne! Vocês têm jambu?

Para dizer a verdade, nunca vi jambu fora do Pará. Lá sim, não pode faltar em comidas como pato no tucupi, virou um ingrediente de moda em pizzas vanguardistas e serve de base para a melhor cachaça de Belém. A cada gole, um delicioso formigamento na sua língua e no céu da boca… Automaticamente a música da Dona Onete começa a tocar na minha cabeça: “E o jambu treme, treme, treme-treme-treme-treme…”. Mas peraí – jambu aqui em Pernambuco?

— Tu tá falando daquela folhinha que…

…treme, treme, treme-treme-treme-treme…

Aparentemente a vizinha também conhece Dona Onete. E não só conhece como está começando a cantar e dançar no meio do meu jardim, fazendo os ombros tremerem como se tivesse engolido um quilo de jambu. Conforme a letra da música, agora só falta ela ir descendo até o chão, mas antes que isso aconteça eu tomo as rédeas, pulo a dita parte e grito:

A boca fica muito louca!

Louca-louca, louca-louca… — acrescenta ela e eu constato que realmente conhece a música.

Mas tenho que decepcioná-la:

— Tenho não, mulher. Nem sabia que tem jambu em Pernambuco…

— Ótimo, então eu vou te dar!

Parece que essa vizinha tem um conceito de troca ainda mais avançado do que aquele nosso com o Luciano. Aceito feliz.

— A gente roubou do Danilo, nosso vizinho — explica ela, toda empolgada, e ao ver minha cara assustada: — Mas tem problema não, ele plantou muito. Depois roubo umas mudinhas mais e dou pra vocês.

Já começo a balançar a cabeça e a falar que não precisa, que qualquer coisa eu peço pro Luciano, mas ela continua falando:

— Tô fazendo uns óleos corporais também. Pra passar nas partes íntimas. Dá uma tremedeirazinha gostosa… Depois trago aqui, pra vocês experimentarem também.

Essa conversa tá tomando um rumo que eu não esperava. Olho à minha volta em busca de socorro. Por sorte, neste momento o Luciano vem descendo a rua.

— Lu! — chamo. — Vem aqui um momento.

Ele entra no jardim e eu, sem saber o que dizer, recorro ao mais óbvio:

— Ahn… vocês já se conhecem?

Eles trocam um sorriso de bons-vizinhos.

— Claro! — afirma o Luciano. — Muito bom esse óleo de jambu, viu? Dá uma tremedeirazinha…

Yvonne Miller nasceu em Berlim, mas mora no Nordeste do Brasil desde 2017. Tem crônicas e contos publicados em coletâneas, como Paginário (Aliás Editora, 2019), A Banalidade do Mal (Mirada, 2020), Histórias de uma quarentena (Holodeck Editora, 2021), assim como na revista literária feminista Laudelinas. É colunista do coletivo literário feminino @bora_cronicar, do blog Escritor Brasileiro e do ColetiveArts. Depois de três anos em Fortaleza, atualmente mora no interior de Pernambuco, junto com a esposa, enteada, gato, cachorro e um monte de bichinhos no quintal que inspiram suas crônicas.

Instagram: @yvonnemiller_escritora