FAO: Metade das crianças da Guatemala padece de desnutrição crônica

Relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura revela que tragédia social persistente afeta desenvolvimento e provoca crescimento atrofiado nas crianças até cinco anos (Prensa Libre)

Mãe segura sua filha de 2 anos, em La Palmilla, Camotán (Guatemala). Todos os fins de semana no departamento de Chiquimula, 175 quilômetros a nordeste da Cidade da Guatemala, a associação humanitária Antigua al Rescate tenta ajudar 600 crianças que a cada mês têm graves problemas de peso devido à falta de alimentos. A região é chamada "Corredor Seco" do território, onde a fome se acumula para milhares de famílias de baixa renda. Em maio passado, um relatório do Ministério da Saúde da Guatemala certificou que os casos de desnutrição aguda em crianças menores de cinco anos triplicaram em relação a 2019, com 13.740 casos confirmados. No entanto, de acordo com especialistas, os números são muito maiores devido à subnotificação.

Uma de cada duas crianças guatemaltecas padecem de desnutrição crônica, deficiência na dieta que, persistente, como é o caso, leva a que parem de se desenvolver e tenham o crescimento atrofiado, revelou o relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) divulgado recentemente.

Conforme a FAO, entre os menores de cinco anos, idade extremamente vulnerável e que merece atenção especial – pelo risco de uma alimentação inadequada afetar o seu processo formativo -, 42,8% apresentam atraso no seu desenvolvimento e 0,8% sofrem de desnutrição aguda, com risco de morte.

“Infelizmente, trata-se de uma agenda regressiva, planejada, imposta pelo presidente Alejandro Giammattei, pois são mortes diárias causadas por desnutrição, diarreia, pela não ingestão de vitaminas básicas em um país exportador de alimentos”. denunciou o coordenador do Comitê de Unidade Camponesa (CUC) da Guatemala, Daniel Pascual Hernández. Diante da gravidade da situação, defendeu, “a reforma agrária é uma necessidade, pois não são apenas os 80% da terra que está concentrada nas mãos dos grandes latifundiários, mas os solos mais férteis”. “Para completar a estratégia de dominação, não há indústrias, tudo é matéria-prima para o estrangeiro, enquanto uma política de produção de alimentos de quantidade e de qualidade é que deveria ser o primordial”, completou.

Líder da bancada do partido Winaq, a deputada Sonia Gutierrez Raguay ressaltou que se a desnutrição já vinha causando grandes estragos, com Giammattei ela se vê lastimosamente agravada pela crise sanitária que gerou a pandemia e pelas tormentas tropicais Eta e Iota que afetaram a região. “Tivemos a destruição de casas e de rodovias, a perda de muitas produções de alimentos e hoje estamos sentindo a escassez nas comunidades, com a população pagando a conta. Em um dos departamentos onde há muita população indígena e extrema pobreza, o de Alta Vera Paz, a desnutrição de crianças menores de cinco anos era de 55% e agora está em 70%”, explicou.

Movimento político fundado pela dirigente indígena e Prêmio Nobel da Paz (1992) Rigoberta Menchú, o Winaq tem cobrado do governo a dotação de recursos para estas comunidades, “mas até o momento, o que podemos comprovar, como parlamentares que acompanham de perto a execução orçamentária, é que o dinheiro não chegou até as pessoas”. “O mais grave é que o governo tem feito cortes no Orçamento. No Ministério da Agricultura e Alimentação, por exemplo, que conta com programas de apoio ao consumo, houve uma redução violenta. Praticamente se deixa sem nada a assistência no momento que mais se necessita. Há uma indolência absoluta. Para este governo, o único que conta são os seus próprios interesses, como foi visto na corrupção das vacinas, que não chegaram. É por isso o povo segue exigindo a renúncia deste presidente”, destacou.

Na contramão, a vice-ministra de Comércio Exterior, Edith Flores de Molina, comemorou as cifras obtidas principalmente às custas dos baixos salários, da inexistência de direitos e da semiescravidão das grandes plantações – que logicamente acaba tomando de assalto as cidades. Segundo o governo, de janeiro a novembro de 2020, o montante total das exportações do Comércio Geral alcançou US$ 10,24 bilhões, superando em US$ 69,7 milhões o montante registrado até novembro de 2019 (US$ 10,17 bilhões). As exportações em geral cresceram 4,28% em volume, em relação ao mesmo período do ano anterior.

Tornando ainda mais audível a falta de sintonia do governo com as necessidades de seu povo, Edith informou que 13 dos 20 principais produtos de exportação viram aumentados tanto o valor como o volume. O aumento do volume exportado dos produtos preparados à base de cereais se incrementou em 67%, com um valor de US$ 205,95 milhões; o cardamomo (50%), US$ 512,88 milhões; e a banana (cerca de 2%), US$ 771,73 milhões.

Daniel Pascual, coordenador do Comitê de Unidade Camponesa (CUC); deputada Sonia Gutierrez Raguay, líder da bancada do partido Winaq, e Julio Coj, coordenador da Comissão de Organização da União Sindical de Trabalhadores da Guatemala (Unsitragua)

Contêineres cheios, panelas vazias

O fato é que se o quadro já era tenso com os governos anteriores, o primeiro ano da pandemia – que também foi o primeiro de Giammattei – agravou ainda mais a situação, ampliando em 100.000 (cem mil!) a quantidade de guatemaltecos que não puderam satisfazer nem mesmo as suas necessidades básicas. No mesmo ritmo que os portos sangravam os alimentos rumo ao exterior, a Guatemala sofria com a alta dos alimentos.

O relatório traduz esta tragédia humanitária, apontando que 2,9 milhões de habitantes estão desnutridos, 16,8% da população, enquanto 12,1 milhões têm alguns ou sérios problemas para conseguir comida, 1,2 milhões a mais do que em 2019 (na terminologia do informe, 8,7 milhões padecem de “insegurança alimentar moderada” e 3,4 milhões de “insegurança alimentar severa”). 

“Este cenário de fome, desnutrição infantil, insegurança alimentar, sobrepeso e obesidade é o caldo de cultivo perfeito para que enfermidades como a Covid-19 impactem negativamente na saúde da população de nossos países, aumentando o risco de hospitalização e de morte”, esclareceu o Oficial de Nutrição da FAO para a América Latina e o Caribe, Israel Rios.

A pandemia golpeou com força a América Central, mas em especial a Guatemala, onde encontram-se quatro de dez pessoas que sofrem de desnutrição, 44%; seguido de Honduras e Nicarágua, com 19,6%, e de El Salvador, com 7,57%.

Para Julio Coj, coordenador da Comissão de Organização da União Sindical de Trabalhadores da Guatemala (Unsitragua) e integrante da Assembleia Social e Popular (ASP), articulação de movimentos do país centro-americano, os números da FAO servem para lançar luz sobre a irracionalidade da lógica de submissão ao grande capital. “Muitas crianças morrem por falta de alimento ou medicamento. Não há qualquer preocupação em proteger a saúde e a vida dos seres humanos. Sendo assim, temos um nível de pobreza de mais de 60%, números que superam os 79% na área rural. Estes são números de antes da Covid, percentuais que seguramente agora vão além”, frisou o sindicalista.

Desemprego e salários de fome

“Termos metade das crianças com desnutrição crônica se deve aos salários de fome, que não garantem sequer a alimentação adequada, aos níveis de desemprego e subemprego muito altos. Temos 76% dos trabalhadores jogados na informalidade e apenas 17% na formalidade, o que tem gerado muita migração para o México, para os Estados Unidos e outros países da Europa. O outro problema de fundo é o excesso de concentração das melhores terras cultiváveis em mãos das grandes agroindústrias como de banana, cana de açúcar, palma de azeite e de látex, com o cultivo de abacaxi. Não há, portanto, uma política que gere salários dignos nem de reforma agrária que garanta aos camponeses e aos povos indígenas desenvolvimento, um projeto que possa pensar e construir segurança alimentar”, condenou Júlio Coj. 

Os resultados do informe da FAO, lamentavelmente, já eram esperados pelos estragos econômicos causados pela pandemia, que vem multiplicando os casos de desnutrição aguda e crônica, declarou María Gabriela Lima, gerente da World Vision Guatemala e representante das Organizações Não-Governamentais (ONGs) perante a Instância de Consulta e Participação Social (Incopas). “Vemos a população diante de bons programas, lindos, de acesso à alimentação ou de apoio à produção agrícola, mas que simplesmente não são implementados”, explicou. Na sua avaliação, não há uma ação integral, efetiva, de combate à desnutrição. Soma-se a isso a falta de dados e a dispersão, que faz com que a luta contra a fome se reduza, quando muito, à entrega de uma cesta básica minúscula, sem qualquer atenção em relação à saúde ou à educação. “A assistência deveria estar acompanhada de outras ações, porque a cesta básica se esgota e uma criança não recebe o apoio integral e nem a sua família”, condenou Lima, denunciando que o governo de Giammattei trata as organizações sociais como inimigas.

“Enquanto nós não nos indignarmos de vermos crianças morrendo de fome, a situação não vai mudar”, declarou o coordenador da Frente Parlamentar contra a Fome, deputado Jairo Flores, para quem “o informe da FAO não é casual”. “A gravidade tem relação com a falta de políticas de Estado, de orçamento e de uma boa execução dos recursos”, concluiu.

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