Vinícius Amaral: Nenhuma carreira pode prescindir da estabilidade

Segundo consultor legislativo, embora flexibilize as possibilidades de desligamento para os atuais servidores, a reforma é mais problemática no que diz respeito às formas de contratação de novos funcionários.

O consultor legislativo Vinícius Amaral - Foto: Reprodução/TV Senado

A semana começou com o presidente da comissão especial que analisa a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32, conhecida como reforma administrativa, o deputado federal Fernando Monteiro (PP-PE), afirmando que a proposição, que implementa mudanças profundas no serviço público, deve ser aprovada até agosto na Câmara e até o fim deste ano no Senado.

Na mesma entrevista à Rádio Itatiaia, Monteiro disse que a comissão especial vai trabalhar para preservar direitos adquiridos. O discurso é igual ao adotado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e já foi repetido também pelo presidente da República, Jair Bolsonaro.

Um dos pontos mais questionados da reforma administrativa é o fim da estabilidade. A PEC enviada pelo Executivo ao Congresso prevê cinco formas de vínculo com o serviço público e, ainda, que somente as chamadas carreiras típicas de Estado (que exercem atividades que só podem ser realizadas pelo Poder Público) mantenham o vínculo estável.

O Portal Vermelho conversou sobre o tema com o consultor legislativo do Senado Federal Vinícius Amaral, que recentemente produziu um estudo que conclui que a reforma administrativa pode estimular o apadrinhamento político gerando 1 milhão de cargos de livre nomeação nas esferas federal, estadual e municipal, caso o texto seja aprovado como está.

Segundo Amaral, embora flexibilize as possibilidades de desligamento para os atuais servidores, a reforma é mais problemática no que diz respeito às formas de contratação de novos funcionários.

“[A reforma] traz todo um conjunto de novas formas precárias de contratação. Cria todo um cenário para um aumento exponencial desse tipo de questão [favorecimento político]. É um cenário muito problemático onde a estabilidade deixa de ser regra para ser exceção”, comenta. Ele diz ainda que, com a reforma, seria impossível, no futuro, “um caso Luís Ricardo”.

Luís Ricardo, irmão do deputado federal Luís Miranda (DEM-DF), é o funcionário concursado do Ministério da Saúde que denunciou possíveis irregularidades no contrato para compra da vacina indiana Covaxin. Ele se recusou a assinar uma ordem de pagamento em nome da empresa Madison Biotech antes mesmo do recebimento das vacinas.

Confira os principais trechos da entrevista:

Um dos argumentos dos defensores da reforma administrativa é que é preciso modernizar o serviço público, eliminando cargos defasados como copeiro, motorista, ascensorista. Mas não é esse o caso do Luís Ricardo, que ocupa um cargo administrativo em uma área-meio que, pelo texto atual da reforma, não teria direito à estabilidade …

Ele é agente administrativo. E um ponto importante para se comentar é que esses cargos mais operacionais, ao menos na esfera federal, já foram extintos há muito tempo. Dos cargos que existem efetivamente, para provimento, não vejo nenhum que possa prescindir da estabilidade para suas funções. Essa própria separação entre carreiras típicas de Estado e não típica me parece artificial e vai fragilizar a carreira da maioria dos servidores, muitos deles atuando em áreas de licitação, de contratos, financeiras.

A PEC não traz a definição do que seria uma carreira típica de Estado, não é?

Não. A PEC está definindo apenas que os critérios para definir um cargo típico de Estado vão estar em uma lei complementar futura.

Acredita que os próprios parlamentares vão suprir essa lacuna, para dar uma segurança a determinadas carreiras?

Esse tem sido um ponto de grande debate, o próprio relator da matéria [o deputado Arthur Maia (DEM-BA)] tem comentado que vem recebendo pedidos de diversas carreiras, diversos órgãos, para que os cargos sejam relacionados na própria PEC como típicos de Estado. Mas eu acho que essa é a discussão errada. Quando se entra nessa discussão, se está legitimando esse conceito.

Como eu disse, de todas as carreiras hoje existentes, desconheço uma que possa ser privada da estabilidade e me parece um enorme erro usar esse conceito [de carreira típica de Estado], bastante vago, para definir se certa carreira deve ou não ter estabilidade.

Até porque o fato de não ser exclusiva de Estado não significa que uma atividade não esteja sujeita a pressões, não é? Temos as áreas da educação e saúde, por exemplo, cujos servidores sofrem pressões, ainda que sejam atividades exercidas também pela iniciativa privada.

Nós podemos ver isso muito claramente quando se trata das universidades públicas. As universidades têm sido alvo de um ataque político sistemático e admitir que essas carreiras percam a estabilidade – e o plano é esse, como já foi dito explicitamente tanto por autoridades do governo quanto por defensores da PEC no Congresso – seria expor a perseguições políticas servidores a quem hoje a estabilidade dá alguma proteção. Chegou a tal ponto que agentes do Estado estão processando professores por seus posicionamentos. É um risco enorme de retrocesso permitir uma perda tão ampla da estabilidade como a prevista na PEC.

A PEC 32 também flexibiliza as hipóteses de perda de cargo. Hoje, uma das hipóteses é por motivo de decisão judicial transitada em julgado, que a PEC quer mudar para decisão em segunda instância. A Constituição já traz formas satisfatórias de desligamento do servidor?

A estabilidade hoje já é relativizada de várias maneiras na Constituição. Não existe, de forma alguma, a estabilidade absoluta. Há diversas situações que não são cobertas pela estabilidade.

Vou citar três: infrações administrativas que podem levar à demissão do servidor; previsão Constitucional não regulamentada de perda do cargo por avaliação insatisfatória de desempenho e, ainda, a possibilidade de o servidor estável perder o cargo caso o ente político ultrapasse o limite de despesas de pessoal previsto na LRF [Lei de Responsabilidade Fiscal]. Essas duas últimas hipóteses foram introduções da reforma administrativa de 1998, pela EC 2019.

Você mencionou a possibilidade de demissão por avaliação insatisfatória de desempenho, que precisa ser regulamentada por lei complementar. As mudanças necessárias no serviço público poderiam ser feitas regulamentando normas existentes?

Sim, claro. A maior parte das mudanças a serem feitas para melhorar o serviço público não dependem de nenhuma mudança constitucional ou mesmo legal. Dependem de mudanças gerenciais tomadas pela alta administração e da observância das leis já existentes. Algumas outras leis complementares e ordinárias poderiam aprimorar, como essa questão da avaliação de desempenho, poderiam colaborar para melhorar o arcabouço jurídico. Mas elas sequer são claramente o ponto central.

A grande deficiência vem da própria incapacidade de definição de planos e metas claras para os órgãos e de mobilização da força de trabalho para realização dos planos. Quer-se jogar sobre o servidor uma responsabilidade que, na verdade, diz respeito a falhas gerenciais da administração.

Um outro argumento dos defensores da reforma administrativa é que a folha de pagamento dos servidores públicos engessa o orçamento e não permite investimentos. Além disso, ela aumenta a cada ano devido a questões como reajustes …

No caso da esfera federal, praticamente não existe aumento vegetativo das despesas. Não existe nenhum tipo de reajuste salarial automático no âmbito federal e o crescimento vegetativo em geral por promoções é um percentual muito pequeno. O que move o aumento de gastos de pessoal é a aprovação de reajustes em processos muito problemáticos, porque, via de regra, não são observadas as regras legais.

Há dois casos recentes em que a legislação foi bastante descumprida, que foi o reajuste do STF [Supremo Tribunal Federal] no fim de 2018, que provocou efeito em cascata por todo o judiciário, e o reajuste dos militares em 2019. Mas isso foi ignorado tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo. E provocou aumento de despesa. Uma forma mais efetiva de se controlar os gastos é simplesmente respeitar a legislação em vigor.

No fundo, o problema é o seguinte: o pessoal ignora as leis, tratora, e depois o culpado é o agente administrativo que ganha R$ 3 mil.

Na sua opinião, o que precisa ser aprimorado no serviço público?

O serviço público brasileiro é muito desigual. Tem tanto instituições de excelência internacional quanto órgãos que certamente não conseguem cumprir adequadamente a sua missão. Não vejo que reformas generalistas possam ser adequadas para este cenário.

Há múltiplas situações diferentes que precisam de gestores competentes que façam diagnósticos adequados, que entendam quais fatores estão levando a esse diagnóstico insatisfatório. Se são recursos insuficientes, se é um problema que vem de outro órgão.

A grande orientação deveria ser buscar reproduzir as melhores práticas. A PEC faz o oposto. Ela leva as piores práticas existentes no serviço público para a administração. Intervenção política, corrupção, aparelhamento, paternalismo. Todas essas piores práticas são institucionalizadas devido a essa nova série de formas de contratação e nomeação para cargos. São novas formas de captura do Estado que a PEC introduz

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