Ameaçada por reforma, estabilidade permitiu denúncia do caso Covaxin

Servidor do Ministério da Saúde, o irmão do deputado Luís Miranda (DEM-DF) só teve autonomia para se recusar a assinar documento devido à estabilidade como servidor público.

O servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda (à esquerda) e o deputado federal Luis Miranda - (Foto: Reprodução do Twitter)

Caso o Congresso Nacional já tivesse aprovado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, que trata da reforma administrativa, o servidor público Luís Ricardo Miranda, irmão do deputado Luís Miranda (DEM-DF), não poderia ter denunciado suspeitas de irregularidades no contrato de compra da vacina indiana Covaxin pelo Ministério da Saúde. O servidor se recusou a assinar um recibo que previa pagamento antecipado de R$ 45 bilhões, ou seja, antes da entrega das doses, e número menor de doses do que estava previsto no contrato.

Luís Ricardo só teve autonomia para fazer isso porque tem estabilidade, direito previsto na Constituição Federal que garante proteção para que o servidor possa exercer suas atribuições. A PEC 32, no entanto, prevê que a estabilidade fique restrita às carreiras típicas de Estado.

O governo Jair Bolsonaro e o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), têm garantido que o direito adquirido de quem já é servidor será preservado. Ou seja, em tese, só perderiam o direito à estabilidade os funcionários que ingressarem em carreiras do serviço público que não são típicas de Estado após a aprovação das novas regras.

Na prática, no entanto, não é bem assim. Segundo Vladimir Nepomuceno, assessor e consultor de entidades sindicais e diretor da Insight Assessoria Parlamentar, a PEC também ameaça a estabilidade dos atuais servidores ao facilitar as demissões.

“Hoje, o servidor pode ser mandado embora em três situações. Uma, após Processo Administrativo Disciplinar (PAD). Outra, no caso de decisão judicial transitada em julgado. E a terceira é por insuficiência de desempenho, hipótese colocada pela Emenda Constitucional (EC) 19, de 1998, mas que ficou para ser regulamentada por lei complementar”, explica.

Segundo Nepomuceno, a PEC 32 propõe alterações para duas últimas hipóteses de demissão. No caso de decisão judicial, uma decisão de segunda instância já poderia gerar a demissão de um servidor. Já no caso da demissão por insuficiência de desempenho, a PEC propõe que a matéria seja regulamentada por lei ordinária em vez de lei complementar.

“A lei complementar, para ser aprovada, precisa do voto de mais da metade dos deputados e dos senadores. Se a reforma administrativa passar como está, a demissão por insuficiência de desempenho pode ser aprovada pela maioria dos que estiverem presentes no Plenário. Ou seja, abre caminho para a aprovação de leis absurdamente frágeis dizendo como se demite um servidor público”, afirma o especialista.

Vladimir Nepomuceno destaca ainda que o governo sinalizou que pretende fazer a reforma administrativa em três fases. Após a aprovação da PEC 32, e dependendo de como ficar o texto final, a intenção é passar às fases dois e três.

“A segunda fase é o que eles chamam de conjunto de projetos de lei, tanto complementar quanto ordinária, na área de gestão de pessoas, incluindo um projeto de gestão de desempenho e um específico de ajustes no Estatuto do Servidor [lei 8.112/90]. Na terceira fase, vão apresentar sob a forma de um projeto de lei complementar o que eles chamam de Novo Serviço Público. Aí vai entrar mais detalhadamente como serão tratados servidores atuais e novos. Abre caminho para um novo marco regulatório de carreira, direitos, estrutura remuneratória, código de conduta e até mesmo para uma lei de greve do funcionalismo”, comenta.

Segundo o consultor, atualmente o Judiciário se baseia na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) para decidir sobre greves de servidores. “Até os juízes e ministros dos tribunais superiores dizem que, na ausência de lei específica, aplica-se a lei de greve do setor privado. Esta [nova] lei [de greves], segundo informações que a gente tem, vem muito dura”, observa Nepomuceno.

O especialista questiona ainda o entendimento do Ministério da Economia e de setores da sociedade que apoiam a reforma administrativa de que a estabilidade só é necessária para carreiras típicas de Estado, que são aquelas relacionadas a atividades do Poder Público que não encontram paralelo na iniciativa privada, como a de delegado, por exemplo. Com base nesse entendimento é que a maioria dos novos servidores não terá estabilidade.

“Vamos separar o que é uma atividade exclusiva do Estado do que é uma atividade típica. Exclusiva é o que só o Estado pode fazer por exemplo, a diplomacia. Ninguém mais pode representar o Brasil lá fora. No entanto, a Constituição Federal diz que saúde e educação são obrigação do Estado. Então, apesar de ter na iniciativa privada, quem trabalha nessas áreas está em atividade típica de Estado porque a Constituição manda. Se é típica, tem que ser exercida por servidores com estabilidade”, argumenta.

Vladimir Nepomuceno também pontua que, embora o caso da denúncia sobre a Covaxin seja o mais comentado no momento, há diversos exemplos de casos em que a estabilidade protegeu os servidores. “Há a situação do delegado [Alexandre Saraiva, da Polícia Federal] lá em Manaus, que denunciou o ministro do Meio Ambiente [Ricardo Salles] e não foi demitido. Há o servidor do Ibama que multou o Bolsonaro [em 2012] por estar pescando em área proibida e dos diversos servidores do Ibama que têm denunciado o desmatamento”, enumera.

Autor