João Guimarães Rosa: travessias, por Luiz Claudio Vieira de Oliveira

“Para nossa tristeza, Rosa ficou encantado antes de terminar sua obra. No entanto, deixou para nós um grande sertão de textos que nos enlevam e nos cativam, onde sempre poderemos trilhar novas veredas. Travessias”

O mineiro João Guimarães Rosa (Foto: Divulgação)

O ano de 2006 comemora o aniversário de publicação de três obras de Guimarães Rosa: Sagarana, de 1946, Corpo de baile e Grande sertão: veredas, de 1956. São obras importantes que viraram a literatura brasileira de cabeça para baixo, despertando paixões e críticas radicais. Juntamente com Magma – publicado postumamente apenas em 1997, apesar de ter sido o primeiro livro de Rosa – os demais títulos compõem a travessia do autor rumo ao aprimoramento estético e à construção de uma poética. Muito da qualidade literária de Guimarães Rosa provém dessa consciência no uso das palavras, na busca pelo “ileso gume do vocábulo”, que o faz recusar o lugar-comum, as idéias feitas, os hábitos irrefletidos.

Magma é a primeira experiência literária de Rosa. Ali estão, de forma embrionária, temas e propostas que desenvolverá mais tarde, a partir de Sagarana. Trechos inteiros de poemas, personagens, situações, descrições serão aproveitadas em outros textos. Apesar de em seu conjunto Magma revelar o grande escritor e sua habilidade no trato com as palavras, é um livro ruim. Rosa percebeu isso e jamais o publicou.

Sagarana é o amadurecimento do autor, a manifestação de seu domínio do instrumento lingüístico e de uma técnica literária sofisticada. No concurso da Livraria José Olympio de que Rosa participou, a leitura atenta de Graciliano Ramos já percebera os altos e baixos dos contos, como nos revela na crônica Conversa de bastidores: “montanhoso, subia muito, descia – e os pontos elevados eram magníficos, os vales me desapontavam.” Mais tarde, no contato com a edição depurada dos contos de Sagarana, altera-se o julgamento de Graciliano: “Vejo agora, relendo Sagarana, que o volume de quinhentas páginas emagreceu bastante e muita consistência ganhou em longa e paciente depuração”. E acrescenta, de forma premonitória: “Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando os meus ossos começarem a esfarelar-se”.
Corpo de baile e Grande sertão: veredas foram publicadas no mesmo ano, o que constituiu uma temeridade editorial. Se Corpo de baile, de certo modo, deu continuidade ao mesmo tipo de narrativa de Sagarana, apresentou algumas diferenças. Dentre elas, as epígrafes. Enquanto o primeiro livro de contos dá preferência a cantigas populares, quadrinhas e modinhas da roça, cantigas de roda, Corpo de baile mistura epígrafes de diferentes origens: de Plotino e Ruysbroeck e de cantigas da roça.

As epígrafes em Rosa têm uma dupla função: esclarecer e antecipar o texto que antecedem e, ao mesmo tempo, criar um enigma para o leitor: decifra-me ou devoro-te. Por isso mesmo, a leitura de Rosa é um permanente desafio, manifestando-se em múltiplas direções, como um caminho que se abrisse em múltiplas veredas, com idas e vindas, em volutas e espirais, sem nunca cessar.

Grande sertão: veredas confirma o veredicto de Graciliano: “A arte de Rosa é terrivelmente difícil. Esse antimodernista repele o improviso. Com imenso esforço escolhe palavras simples e nos dá impressão de vida numa nesga de catinga, num gesto de caboclo, numa conversa cheia de provérbios matutos. O seu diálogo é rebuscadamente natural”. Com essas palavras, tem-se a caracterização do estilo rosiano: trabalhado, natural, simples, rebuscado. Ali, não há improviso. A dificuldade de sua arte não está na leitura, mas na sua própria construção, em que nada é deixado ao acaso. A arte de Rosa nos encanta porque ele conseguiu dar vida – a impressão de vida – ao sertão.

Mas o que é Grande sertão: veredas? O que é este livro que, por um lado, provocou críticas ferozes, como as de Roberto Simões, Silveira Bueno, Adonias Filho e Ferreira Gullar e, por outro, reações de admiração incondicional como as de Rubem Braga, Antonio Candido, Cavalcanti Proença, entre outros. Os primeiros estudos sobre esse romance identificaram suas características mais evidentes, como as origens ibéricas do mito da donzella guerrera, isto é, a jovem donzela que se veste de homem e vai para a guerra, tal qual Diadorim; as narrativas medievais que sobreviveram no imaginário brasileiro, como a história de Roberto do Diabo; a sobrevivência em nosso interior de uma ética medieval, que transforma Riobaldo num cavaleiro andante.

Esse tipo de análise possibilitou uma outra abordagem, a sociológica, que vê na estrutura romanesca a supervivência da estrutura social, política e econômica de uma região bem marcada do interior mineiro e brasileiro: o sertão. Teve o mérito de indicar que o romance de Rosa estava embasado nessa região, mas não com intuitos documentais. Grande sertão: veredas não é um documento, mas um texto literário e ficcional, através do qual se consegue ler uma sociedade característica.

Paralelamente, fez-se uma análise lingüística do romance, num trabalho de mineração que intentava descobrir as grupiaras onde Rosa havia garimpado palavras e expressões inusitadas. Numa nota de pé-de-página da famosa entrevista com Rosa, Günter Lorenz explicita que o romancista falava português, espanhol, francês, inglês, alemão e italiano e possuía conhecimentos suficientes para ler em latim, grego clássico e moderno, chinês, japonês, sueco, dinamarquês, servo-croata, russo, húngaro, persa, malaio, hindu e árabe. A crítica foi levada a buscar as evidências desse conhecimento lingüístico e, mais que isso, a estudar como se deu o trabalho de aclimatação de palavras estrangeiras ao português do sertão das Gerais. Osvaldino Marques publicou um profundo ensaio sobre o tema.

Esse trabalho investigativo foi complementado pela análise de poetas como Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Pedro Xisto, que viram o outro lado das palavras. Não mais a etimologia, a erudição, a versatilidade das fontes, mas “o quem das coisas”, a “palavra nunca vista ou jamais ouvida”, o “canto e plumagem das palavras”: a poesia.

Esses autores tiveram o mérito de apontar que o trabalho de Rosa estava além da mera aparência das palavras: era mais sutil, mais profundo, mais visceral. Em outras palavras: ia além do significado, ia ao significante, ao jogo de palavras, à sonoridade, à ambigüidade, à sugestão, ao esvaziamento dos sentidos fossilizados dos vocábulos e ao preenchimento de cada um com novas possibilidades semânticas.

A vereda esotérica também foi trilhada pela crítica. Em Grande sertão: veredas há símbolos em profusão: cabala, alquimia, zodiacais, astrologia, tarô, tao, zen-budismo. O romance está repleto de símbolos gráficos, a começar pelas orelhas do volume, em que há um mapa do sertão, supostamente representativo da área em que se passa o romance. São cruzes, triângulos, círculos, hexagramas e pentagramas, signos planetários e astrológicos, que têm a função de orientar/desorientar o leitor, como o haviam feito as epígrafes de Corpo de baile.

Faz parte da poética rosiana esse jogo de informar e desinformar o leitor, confundindo-o quanto à “verdade” das informações dadas. Isso, inclusive, é um dos atrativos para o leitor, levado a tentar, como dissemos, o deciframento dos enigmas criados pelo autor. Grande sertão: veredas começa por um símbolo gráfico, o travessão, signo paradoxal da oralidade e da escrita, e termina pela lemniscata, o símbolo do infinito, nada mais que um laço, indicando o encerramento e a abertura do romance, logo após as frases: “Existe é homem humano. Travessia”. Aproveitando a vasta simbologia do romance, alguns autores analisaram as vertentes filosóficas e religiosas presentes na obra: Benedito Nunes, Heloísa Vilhena de Araújo, Paulo César Carneiro Lopes. Outros, como Consuelo Albergaria, Ana Maria de Almeida, Lauro Belchior Mendes, Francis Utèza, Antônio Roberval Miketen, trilharam essa vereda alquímica e semiótica.

Grande sertão: veredas é um livro que chocou pela novidade. Ainda hoje nos espanta pela fecundidade com que se abre a novas leituras. Em épocas de estudos culturais, as novas tendências críticas passam a buscar no romance os sinais de sua integração à realidade política brasileira, como uma outra vertente da análise feita por Euclides da Cunha em Os Sertões. Assim, dão ao romance rosiano uma dimensão política de resgate das origens e de construção da nacionalidade que, parece-nos, ele não teve nem procurou ter. Nessa linha estão as análises de Heloísa Starling e Willi Bolle, por exemplo.
Grande sertão: veredas tem uma estrutura simples sob uma aparente complexidade. Trata-se da narrativa de um fazendeiro, ex-jagunço, sobre sua vida a um interlocutor. Esse interlocutor, douto e forasteiro, participa ativamente da narrativa: faz perguntas, evidenciadas pelas respostas dadas, e anota a narrativa de Riobaldo. Isso o torna um co-autor ou co-responsável pela narrativa. Riobaldo se apresenta como um velho jagunço aposentado, quase barranqueiro – uma estratégia que disfarça sua posição de fazendeiro e de chefe jagunço vitorioso, detentor do poder no sertão.

Sua narrativa parece oscilar, confundindo-se, ao misturar nomes, situações, lembranças. Apesar disso, nada fica fora do lugar, pois sua consciência pensante organiza a narrativa, tecendo os fatos de acordo com uma lógica interna: seus próprios interesses como personagem e narrador da própria história. Quando Riobaldo começa a contar tudo já aconteceu e ele, como narrador, tem ciência de tudo, revelando o que quer, quando quer. Como narrador único, dono da fala – e não se pode esquecer que dominar a fala é uma forma de poder –, Riobaldo conta sua versão da história, a que lhe interessa recordar e contar.

Assim, Diadorim é associado à palavra neblina, palavra ambígua que o caracteriza como alguém encoberto, dúbio, misterioso. Diadorim, sabe-se durante a narrativa, é o jagunço por quem Riobaldo é apaixonado. Uma paixão proibida, um amor irrealizável, pois ambos são homens e, na ética sertaneja, uma união impensável. Esse amor homossexual aproxima e afasta, ao mesmo tempo, os dois personagens. Por outro lado, Diadorim é filho de Joca Ramiro, grande chefe jagunço, e herdeiro natural do poder no sertão.

Riobaldo é oriundo das camadas mais baixas do sertão: pobre, pedidor de esmolas em beira de rio. Aos poucos, toma consciência de seus desejos, de sua habilidade com as palavras e sua perícia com as armas. É um grande atirador, é o Tatarana. Riobaldo percebe que é diferente dos demais jagunços: pensa, reflete, deseja o poder. Apesar de seu amor por Diadorim, este se converte em seu oponente: por ser um homem e por ser o herdeiro de Joca Ramiro.

Na batalha final, Diadorim morre. Riobaldo, bom atirador, mesmo estando em posição favorável para atirar, no andar superior de um sobrado, não atira. Seja qual for o motivo que alegue, não atira e deixa que Diadorim morra. Nesse momento, vem a revelação que Riobaldo já sabia durante toda a narrativa, mas que só revela agora, no instante em que conta: Diadorim é uma mulher. Poderia ter sido a sua mulher. É aí que surge o motivo da narrativa, a necessidade de fazê-la para compreender o que aconteceu, por que aconteceu e qual a parcela de culpa de Riobaldo por ter deixado Diadorim morrer.

Riobaldo não narra apenas para seu interlocutor: narra para si mesmo, para entender o que houve. É um autoconvencimento. Mas, ao mesmo tempo, Riobaldo não aceita a verdade e, por isso, busca desculpas, culpados. O destino ou o demônio teriam sido responsáveis por tudo. Nesse sentido, a narrativa de Riobaldo pode ser comparada ao inquérito conduzido por Édipo, que imagina todos culpados, menos ele mesmo. Só reconhece a culpa frente às evidências irrefutáveis. Mas a narrativa romanesca não termina com uma certeza. Ao contrário, acaba de forma aberta, ambígua, ampla: “Existe é homem humano. Travessia”. O laço final, como dissemos, acentua essa imprecisão.

A profundidade do romance e de seu protagonista consiste nesse jogo argumentativo, nessa construção de uma verdade que convença o próprio narrador, o seu interlocutor e a nós, os leitores. Tal construção é a própria construção narrativa, com todas as suas estratégias, suas negaças, seus avanços e recuos, suas meias-verdades, suas revelações parciais, suas reflexões sobre Deus e o demo, sobre o homem e sua oscilação entre esses dois pólos. Teria havido um pacto demoníaco? Teria havido uma desmedida, uma hybris, tal como na tragédia clássica? Teria havido uma armadilha do destino, que dobra a vontade do homem, fazendo-o sempre atingir um ponto mais abaixo, como na travessia de um rio? Teria havido um castigo divino, uma culpa trazida de vidas anteriores, e que estaria sendo paga nesta vida?

Por isso Riobaldo especula idéia e não tem respostas. Aliás, tem. E é a resposta que mais lhe agrada e a que mais agrada a nós, leitores, que nos identificamos com o narrador. Riobaldo, como nós, é uma vítima desse destino. Agiu sem saber o porquê, guiado por uma força maior que ele (possivelmente demoníaca), inconscientemente, tendo até desmaiado na hora do confronto final.

Essa imagem de vítima é a que cultiva durante toda a narrativa, sem que seja questionada por ninguém. Afinal, ele é o dono da palavra e a usa para sacramentar sua verdade. Mas, ficam claros o seu remorso e a tentativa de encontrar uma resposta que o tranqüilize e o libere do sentimento de culpa: “Compadre meu Quelemém sempre diz que eu posso aquietar meu temer de consciência, que sendo bem-assistido, terríveis bons-espíritos me protegem”. Por isso, a busca de todas as religiões: “Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue”.

Poderíamos dizer que a maior parte da crítica que se dedica ao estudo de Grande sertão: veredas se ocupa com a estrutura narrativa. E o faz porque a preocupação de Guimarães Rosa com a narrativa está presente desde Magna, concretizando-se em vários contos de Sagarana, como “O burrinho pedrês”, “São Marcos”, “Conversa de bois”, “A hora e a vez de Augusto Matraga”, para citar apenas aqueles em que é mais ostensiva. Sua poética, como a de João Cabral de Melo Neto e a de Carlos Drummond de Andrade, tem uma intenção metalingüística muito clara. Nela se inclui a reflexão sobre “o gume dos vocábulos” e sobre o modo como a narrativa se constrói.

Para Rosa, nada é definitivo, tudo é muito provisório – incluindo as narrativas. Essas são apenas versões, que podem mudar a cada momento em que um novo narrador toma a palavra, ou em que o mesmo narrador conta a sua visão/versão dos fatos. Corpo de baile demonstra o experimentalismo narrativo de Rosa. “O recado do morro” retrata o desdobramento de uma história, contada e recontada sete vezes; “Dão-lalalão” mostra como a novela é ouvida no rádio e, em seguida, retransmitida por vários narradores, até “para o lado de lá do São Francisco se afundava, até em sertões”; “Uma estória de amor” apresenta dois contadores, Joana Xaviel e o velho Camilo, que têm maneiras diversas de contar suas estórias.

“Cara-de-bronze” é o conto em que Guimarães Rosa se permitiu as maiores liberdades, a começar pela representação de um forasteiro curioso, um duplo do próprio Rosa, que pergunta tudo aos vaqueiros. É o Moimeichêgo, vários “eus” reunidos numa só palavra: Moi, me, ich, ego. Nesse conto, há o recurso ao pé-de-página para a citação de Dante, do Cântico dos Cânticos, de Salomão, de Platão, e para a enumeração de nomes de flores, plantas e aves. De repente, no meio do conto, há um roteiro cinematográfico, com sua didascália e seus planos de tomada para as câmeras. Mas, principalmente, há a temática da busca da palavra, da expressão, da forma diferente de ver o mundo e a vida, da permanente transformação do real. É o que o fazendeiro, o Cara-de-bronze, quer. Não a verdade definitiva, radical: queria “as engraçadas bobéias”, “o que acontece miudim, momenteiro”, “a brotação das coisas”, “uma idéia como o vento”, o “não-entender, não-entender, até se virar menino”, enfim, queria “o quem das coisas”.

Esse processo experimental presente nesses livros se concretizará em Grande sertão: veredas. Nele, a narrativa terá sua reflexão metalingüística, sua teoria e sua prática. A todo momento Riobaldo questiona e se questiona sobre o narrar: “O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não”. Nessa fala do narrador se colocam algumas questões interessantes: primeiro, a relação entre a palavra e o referente que ela designa – o que falou foi exato; segundo, a capacidade da fala (da palavra) de criar uma nova realidade, um novo referente – a dúvida sobre a relação entre a palavra e o referente: “Mas teria sido?”. Em terceiro lugar, a constatação de que a narrativa de Riobaldo é também uma versão, uma procura do “quem das coisas”.

Guimarães Rosa, juntamente com Machado de Assis, João Cabral e Drummond, participa do grupo de escritores com maior consciência metalingüística dentro da literatura brasileira, que trabalhou artesanalmente a língua e a narrativa. Desde suas primeiras experiências como escritor construiu sua poética, que teve um processo evolutivo: da palavra à narrativa e, daí, novamente à palavra, desta vez integrada à narrativa. O processo, que culminou em Grande sertão: veredas, teve sua continuidade em Primeiras estórias e, depois, em Tutaméia, onde Rosa voltou a cultivar, de forma contida, minuciosa, o que já havia feito de modo grandioso e espraiado nos contos de Corpo de baile e em Grande sertão: veredas. É como se, depois do épico, se voltasse para a simplicidade do hai-kai e para a perplexidade fecunda do koan.

Para nossa tristeza, Rosa ficou encantado antes de terminar sua obra. No entanto, deixou para nós um grande sertão de textos que nos enlevam e nos cativam, onde sempre poderemos trilhar novas veredas. Travessias.

Luiz Claudio Vieira de Oliveira é Mestre em Literatura Brasileira, com a dissertação O sentido e a máscara em “Grande sertão: veredas”; e Doutor em Literatura Comparada, com a tese O percurso dos sentidos, sobre a obra de Guimarães Rosa.

Fonte: Revista Princípios