A crônica de uma copa anunciada

A crônica da Copa América 2021 em muito se assemelha à Crônica de uma Morte Anunciada, de Gabriel Garcia Marques: muito se alertou sobre seus riscos e, antes do seu fim, já temos consequências preocupantes.

A realização da Copa América põe em risco os brasileiros e o resto do mundo, devido às cepas que podem ser levadas pelos atletas e comissões técnicas para fora do país I Ilustração: Savron

Em 1981, o escritor colombiano e Nobel de Literatura, Gabriel Garcia Marques publicou um romance intitulado Crônica de uma Morte Anunciada. A história parece simples, um homem tem sua morte anunciada no início do livro e, no final, é assassinado. Entretanto, entre começo e fim, a prosa se revela encantadora. A crônica da Copa América 2021 apresenta um enredo parecido, muitos atores anunciaram que sua realização não era prudente e mesmo antes do final da competição já se sabe que seus resultados sanitários são preocupantes. Entretanto, a “prosa” entre início e fim não é encantadora. Pelo contrário, é repugnante.

Depois de ignorar pelo menos 81 e-mails referentes à possível compra de vacinas para proteger a população de seu país, o presidente do Brasil, em minutos, respondeu à Conmebol, entidade máxima do futebol sul-americano, apoiando a realização da Copa América em solo brasileiro “de imediato”. Isso se deu depois de Colômbia e Argentina se negarem a organizar o evento. Apenas este paradoxo já serviria para evidenciar a falta de legitimidade do presidente e da competição no contexto pandêmico. Porém, soma-se a este caldo a participação da CBF, instituição que governa o futebol no Brasil. Com longa tradição de corrupção e práticas antidemocráticas, inclusive tendo seus presidentes regularmente presos até fora do país, a CBF não decepcionou. Além de apoiar a consumação do evento, teve seu presidente afastado no início do certame, acusado de assédio sexual e moral a uma funcionária da entidade.

Autoridades ligadas ao governo federal, até mesmo o ministro da Saúde, justificaram a posição favorável à realização da Copa América com base em competições nacionais e continentais que já estavam em curso no país e seus protocolos sanitários que estariam funcionando. A Conmebol ainda, escandalosamente, comprou vacinas para dar aos seus afiliados, humilhando as populações sul-americanas tão necessitadas e escancarando a força do poder da grana do futebol sobre a saúde das pessoas.

O argumento dos protocolos sanitários que estariam sendo utilizados com sucesso em competições que estão em curso no Brasil é insustentável. Tais protocolos são frágeis e excludentes sob qualquer ponto de vista e basicamente protegem o “capital” de clubes testando pessoas arbitrariamente escolhidas. Mas, acima de tudo, trata-se de uma situação totalmente diferente. A Copa América trouxe ao Brasil milhares de pessoas vindas de diversos países, potencialmente carregando consigo todas as cepas de Covid-19 em circulação no mundo. Estas pessoas circulam em 4 estados brasileiros e 5 estádios, hotéis, restaurantes, locais de treinamento, etc. Entre outras possíveis consequências, já são mais de 150 pessoas comprovadamente infectadas ao longo da Copa América, no dia 21 de junho de 2021. Considera-se a possibilidade de o número ser até maior, na medida em que a testagem é deficitária.

Embora autoridades esportivas, sanitárias, médicas, acadêmicos e outros atores tenham publicamente aconselhado a não realização do evento, ele está acontecendo. E pior, suas consequências somente serão conhecidas após o seu encerramento, pois como aprendemos, impactos nas “curvas” de infectados e mortos aparecem cerca de duas semanas depois dos acontecimentos que geram circulação e aglomeração de pessoas.

A herança desta crônica de uma copa anunciada, então, deve ser a piora das condições sanitárias já tão sofríveis no Brasil. Contudo, seu legado pode ser ainda mais devastador, logo que cepas compartilhadas ao longo da competição poderão se espalhar rapidamente pelo mundo quando alguns dos melhores jogadores do planeta voltarem aos seus clubes, sediados em diferentes continentes. Importante lembrar que a Copa América não tem efeito sobre outras competições, não dá vagas a outras competições, não rebaixa, não classifica, não atrapalha o calendário esportivo internacional (ou atrapalha!). Foi um capricho do irresponsável presidente brasileiro e a sanha financeira dos cartolas futebolísticos que a fizeram acontecer. A história há de lembrá-los. E o Tribunal Internacional de Haia também.

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