Walter Sorrentino: O mundo em transição – contradições e desafios

Vemos a realidade internacional como a de um mundo em transições de várias ordens e ritmos, que afetam a vida de todas as sociedades e de todas as nações.

É um momento marcado pela crise sanitária da pandemia da COVID-19, que agrava todas as contradições, como a crise econômica e social, a desconstrução dos direitos laborais, as tensões geopolíticas que ameaçam a paz mundial e pela grave ofensiva contra a democracia, com o crescimento de tendências antiliberais de extrema-direita que questionam os próprios valores civilizacionais.

Mas a singularidade principal é a transição das relações de forças internacionais, apontando para o declínio relativo dos EUA, ascensão da China, com tendência à multipolaridade e multilateralismo.

É uma situação volátil e conflituosa, e quero abordar rapidamente alguns desses fenômenos.

Em primeiro lugar, a grande crise econômica mundial, uma crise sistêmica e estrutural que evidenciou plenamente a dimensão sem precedentes que atingiu a hipertrofia do capital financeiro dominante, sendo que ainda não se iniciou a retomada de um ciclo de crescimento mundial. O neoliberalismo senil não promove qualquer consenso nem esperança para os povos. Só pode continuar a concentrar a pobreza e a riqueza em polos opostos.

Isso é cristalino, em claro contraste com os países socialistas. Refiro-me aqui aos sucessos desses países no enfrentamento da pandemia, determinados a defender a vida, a ciência, o serviço ao povo e a solidariedade com os outros povos. Estes são exemplos vivos do que são os comunistas e valem mais que mil palavras. China, Cuba, Vietnã, em particular, ensinaram valiosas lições e o sucesso de China e Cuba com suas vacinas impressiona a todos.

As políticas econômicas do neoliberalismo aprofundam a contradição capital x trabalho para enfrentar o declínio nas taxas de lucro do capital mediante a superexploração do trabalho: desconstrói-se assim em boa medida a materialidade e a cultura do mundo do trabalho. Em meio aos grandes avanços das forças produtivas através da ciência e tecnologia, que poderiam emancipar o trabalho humano, sob a lógica neoliberal criam uma enorme massa humana descartável, que nem mesmo terá o direito de ser explorada por um salário.

Neste cenário, e este é outro fenômeno notável de nosso tempo, tal realidade produz uma certa divisão das classes capitalistas hegemônicas em termos das formas de manter seu domínio, razão pela qual assistimos uma escalada antiliberal e antiglobalista. O mais importante é que isso ocorre nos países centrais do sistema, como os Estados Unidos (com Trump) e a União Europeia. Surge uma espécie de Internacional Regressista dessas correntes, que alcançaram posições políticas relevantes de governo.

Também nos deparamos com a ubiquidade da transmissão, informação e conectividade que afeta profundamente as lutas ideológicas, que até se tornam um palanque para a continuação da política como guerra cultural e ideológica, com uma vasta rede de notícias fraudulentas. A Internet não reflete mais apenas as relações e  a consciência sociais, mas também as molda.

A reação prega o irracionalismo, a anti-civilização, a pós-verdade ou a verdade de cada tribo, através do uso intensivo das redes sociais, utilizando fartos recursos financeiros e tecnológicos, e estratégias militares de guerras híbridas. Como disse Díaz Canel, a batalha ideológica cultural é uma questão midiática, em disputa, por isso é essencial garantir, nela, a identidade de nossos povos, dar destaque aos jovens e saber se comunicar.

Com tudo isso, não é possível subestimar o fator subjetivo na correlação de forças, em que crescem o estranhamento, a alienação e o desânimo político, o que gera governança precária em muitos países e impulsiona a crise de representação política. As lutas de identidade étnicas, raciais, nacionais, de gênero, de orientação sexual, etc., muitas vezes ignoram o pertencimento e a consciência de classe. As igrejas neopentecostais estabeleceram raízes firmes neste espaço e oferecem redes de proteção social e espiritual, proclamando a ideologia meritocrática de confiar apenas no próprio esforço individual, na família e em Deus.

Mas, ao mesmo tempo, é marcado o sentimento subjetivo de que a injustiça ultrapassa o limite do aceitável, razão pela qual as rebeliões populares produzem surtos frequentes que é preciso direcionar para projetos transformadores – em especial na América Latina e Caribe.

Todos esses fenômenos coexistem dentro de um processo ainda mais marcante da época que é a transição nas relações das forças internacionais em direção a uma ordem multipolar. A reação dos Estados Unidos é agressiva – mesmo com Biden, embora de outra maneira – diante do surgimento de novos polos de poder, expressos por países e articulações multilaterais – China, Rússia, BRICS e tantos outros – e da disputa pela vanguarda no progresso tecnológico.

Um grande combate, entre EUA e China, marca o cenário global e toma forma. A estratégia de Biden com a China, de preservar a hegemonia mundial dos EUA, é estabelecida como uma política de Estado, não de governo, ditada pelo establishment financeiro e econômico que comanda várias instituições do Estado.

A estratégia é de uma guerra contínua e multilateral, para o cerco da China por todos os meios e armas, e para a contenção militar da Rússia. Biden forja uma nova aliança com Austrália, Índia e Japão, conhecida como QUAD, em confronto explícito com a China. Ele também sinalizou uma abordagem mais dura em relação a Moscou, ao provocar Putin rudemente. O bloqueio contra Cuba não só persiste como tem se intensificado.

Não por acaso, China e Rússia formaram uma aliança estratégica entre si e podem até impulsionar, em algum momento, a substituição do papel do dólar como única moeda de reserva de valor internacional. A Rússia tem frieza ao lidar com problemas tão complexos, e a China é sábia em lidar com a situação com paciência estratégica e moderação, mesmo em um ambiente hostil.

Porém, a chegada de Biden sinalizou a tentativa de repor o tradicional multilateralismo norte-americano ao se reposicionar no Acordo de Paris e no G7, ao assinar a renovação imediata do Novo Acordo de Limitação de Armas Estratégicas com a Rússia e ao dar os primeiros passos para voltar ao acordo nuclear com o Irã, além de desistir da retirada imediata das tropas americanas da Alemanha. É um grande esforço de aproximação com seus antigos aliados europeus, em particular Alemanha e França. Biden tenta retomar o antigo papel na ordem global, mas já não gera confiança em seus parceiros. Há evidentes sinais de disputas inter-imperialistas entre a Europa, quanto as suas relações com a China, e os interesses dos EUA.

Mas será impossível para o mundo retornar às relações que foram rompidas, às instituições que foram destruídas e aos compromissos que não foram cumpridos pelo governo Donald Trump como se nada tivesse acontecido. Ninguém pode ter segurança de que Biden alcançará tais objetivos, até porque o próprio Trump manteve metade do eleitorado, em uma sociedade altamente polarizada.

Assim, em muitos aspectos, os EUA hoje estão mais questionados e enfraquecidos no mundo, como resultado do desenvolvimento desigual do capitalismo e do efeito da financeirização da riqueza, com a consequente perda de dinamismo produtivo. Também porque, como disse o ex-presidente dos EUA, Jimmy Carter, a economia do país está estagnada há décadas porque eles estão promovendo guerras contínuas contra outros povos e nações, houve muitas dezenas delas.

Mas Biden certamente marcou diferença com seu antecessor no ambiente doméstico, com um grande avanço na imunização contra COVID-19 e o programa “Plano de Resgate Americano” de US $ 1,9 bilhão para mitigar os efeitos da crise nas famílias e estimular a economia. Em breve também anunciou um novo pacote estrutural e de longo prazo, de mais 2 trilhões nos próximos oito anos, contra a pobreza, investindo em educação, saúde, meio-ambiente, infraestrutura, promovendo o combate aos monopólios tecnológicos, a volta ao multilateralismo e uma proposta para um aumento global dos impostos corporativos, bem como um aceno para o sindicalismo.

É um grande choque no sistema econômico. São medidas que fazem parte da superação do relativo declínio econômico nos Estados Unidos. Dizem que são políticas keynesianas e, nesse sentido, seu impacto no mundo, desmoralizando o Consenso de Washington, é importante e deve ser aproveitado, principalmente no que se refere ao papel do Estado na promoção do desenvolvimento. Dizer que é um novo New Deal requer mais atenção, porque sob Franklin Delano Roosevelt, monopólios de energia, ferrovias, minas de carvão, empresas de transporte e até mesmo algumas lojas de departamentos foram nacionalizadas durante a Depressão e a Segunda Guerra Mundial.

Veremos que no caso atual o predomínio da plutocracia é absoluto, malgrado as propostas de aumento dos impostos sobre as empresas e de taxação global, levadas à reunião do G7. As medidas fazem parte da estratégia de “tornar a América grande novamente”, agora nas mãos de Biden, para enfrentar a China.

Não subestimamos a importância econômica dos pacotes e seus impactos sociais, algo próximo do social-liberalismo. Mas falar que é a “superação do neoliberalismo”, como afirmaram alguns no Brasil, é fora de questão, porque não se deve confundir as coisas. Existem políticas econômicas “neoliberais” que administram a acumulação capitalista por meio de austeridade, tributação, privatizações, privação de direitos e retirada de orçamentos com vistas a um Estado mínimo. Sim, isto sofre mudanças, mas o neoliberalismo em um sentido amplo é o “capitalismo realmente existente” nos dias atuais, em sua forma mais pura prevista por Marx, do domínio do capital que rende juros, da riqueza fictícia financeirizada, do parasitismo e da putrefação. E isso, todavia, ainda está longe de morrer.

Isso aponta para algo muito importante que é o aguçamento da contradição dos povos e nações em busca de um desenvolvimento soberano contra o imperialismo. O multilateralismo cria uma realidade de Estados que lutam para afirmar seus projetos nacionais e que encontram uma maior margem de manobra estratégica para fazê-lo.

Além dos países socialistas, países capitalistas como Rússia, Turquia, Índia, Irã e outros se beneficiam disso. No nosso caso, Brasil – mas também Argentina, Chile, México, etc. Estas contradições da ordem internacional são uma reserva indireta de grande importância para nossa luta pelo desenvolvimento soberano, para abrir um novo ciclo político e civilizador em nosso país. O BRICS e o Mercosul, em particular, representam uma grande oportunidade de unir forças em torno de projetos regionais e pesados ​​investimentos em logística de integração física e de interesses entre nossos países.

Nesse cenário, América Latina e Caribe vive um processo de resistência e disputa política do campo popular e progressista contra a neocolonização. A luta anti-imperialista continua sendo o principal marco de nossa perspectiva e também está relacionada ao sucesso dos países governados por partidos comunistas no mundo.

Nossa resistência latino-americana precisa de novas perspectivas. Em muitos aspectos, nossos países são ainda mais semiperiféricos em termos da capacidade de seus Estados de promover projetos nacionais de desenvolvimento soberano, financiá-los e ingressar na nova esfera da CTI (Ciência, Tecnologia e Inovação) como força produtiva direta.

Tem sido difícil sustentar projetos políticos progressistas: como disse Díaz Canel no 8º Congresso do Partido Comunista de Cuba, “o que vivemos é muito estimulante, é um ciclo inteiro, mas devemos aprender lições; uma é que ‘a direita não perdoa’. Outra, poderíamos dizer, é que o socialismo em cada país requer seus próprios caminhos para o desenvolvimento soberano e um Estado nacional forte para servir aos desejos de nossos povos”.

Para lutar neste quadro de forças objetivas e subjetivas, não é o caso de ser indulgente com os desafios que temos. Há muito sobre o que refletir, e refletir é incomodar o pensamento estabelecido. Penso em programa inovador para as nossas disputas presentes e futuras, por uma autêntica e original Economia Política do desenvolvimento, que enfrente a desindustrialização, com uma macroeconomia política funcional e não contrária a esses desafios.

No documento “Consenso de Nossa América” temos um grande  e concentrado esforço para sistematizar reflexões estratégicas, a serem repetidamente atualizadas, para romper bravamente os limites de nossa teoria, para ir mais longe sem perder a coerência, constituindo sempre a unidade popular como a chave das vitórias.

O texto reproduz uma intervenção feita em reunião com dirigentes do Partido Comunista de Cuba

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