Caso Pazuello é episódio de rompimento de militares com seus valores

Para professor Héctor Luis Saint-Pierre, existe um conflito entre os interesses e os valores de neutralidade política e verdade das Forças Armadas

O presidente Jair Bolsonaro dá posse ao ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, no Palácio do Planalto.

A decisão do Exército de não punir o general da ativa e ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello rompe com valores caros aos militares e expõe claramente um projeto de governo por parte do grupo. Esta é a opinião do professor Héctor Luis Saint-Pierre, especialista em segurança internacional e coordenador-executivo do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI) da Unesp.

No dia 23 de maio, Pazuello esteve presente em um evento público com a participação do presidente Jair Bolsonaro, no Rio de Janeiro. Na ocasião, o ex-ministro da saúde subiu em um carro de som ao lado do presidente e alguns aliados e discursou. Em nota publicada pelo Centro de Comunicação Social do Exército no dia 3 de junho, o Comandante do Exército entendeu que não restou caracterizada a prática de transgressão disciplinar por parte do general Pazuello e arquivou o procedimento instaurado.

Para o professor da Unesp, a manifestação de Pazuello, um general da ativa, em um evento político é gravíssima porque claramente quebra com o valor militar da neutralidade política. “Além disso, o Brasil é signatário da Carta Democrática Interamericana, onde se define democracia como separação dos poderes. Nesse mesmo parágrafo, a carta fala da impossibilidade de uma estrutura de Estado atuar em função do governo. Isso porque as estruturas de Estado não são deliberantes. Quem delibera são aqueles que têm a legitimidade do voto”, aponta.

Na opinião de Héctor, o general rompeu ainda com outro valor caro às Forças Armadas: o rigor com a verdade, ao mentir claramente em seu depoimento à CPI da Covid para “encobrir a responsabilidade do presidente no enfrentamento da pandemia”. “Uma interpretação errada, talvez, de lealdade militar, que não se compara à cumplicidade miliciana. Como pagamento pela cumplicidade, Bolsonaro pressiona o Exército para não condenar Pazuello, quebrando a hierarquia e rompendo com a ordem interna das Forças Armadas”, esclarece.

Embora já surjam críticas dentro da organização a respeito da decisão de não punir Pazuello, o professor da Unesp coloca em dúvida um retorno à neutralidade política por parte das Forças Armadas. “Na realidade, Bolsonaro está abrindo o bolso para os militares. Eles estão financeiramente muito bem. E aí há uma questão de confronto entre os interesses dos militares e os valores dos militares.  O futuro nos dirá qual é a prevalência”.

O professor explica que a dificuldade de estudar as Forças Armadas é que elas constituem uma “organização total”: uma corporação fechada com interesses, formação, educação, regulamentos, estatutos e hierarquia interna muito fechados em torno da cultura do segredo, “que impregna tudo e dificulta a percepção da imagem interna”. “Mas ela projeta uma imagem para a sociedade de eficiência, profissionalismo, disciplina, hierarquia, rigor, lealdade e neutralidade política”, salienta.

Essa imagem de neutralidade, em sua opinião, já está claramente desfeita, desde 2013, quando os militares começam articular um projeto de poder, que é defender os interesses da corporação e da família militar. “Mas vai se constituindo em um projeto de governo, com indícios claros que vão se constituir em um governo militar bolsonarista. É um governo articulado e executado por militares, com aspectos bolsonaristas e neo-fascistas”, define ele.

Cada general da ativa no governo tem a autorização das Forças Armadas para isso, assim como do Ministério da Defesa, que também está sob o comando de um militar. A passagem do general Pazuello no Ministério da Saúde também afetou a imagem de eficiência da corporação, na opinião do professor, conforme o militar não tenha sido capaz de reduzir o morticínio da pandemia.

O professor argumenta que os episódios ocorridos ao longo do último mês, que envolveram o depoimento de Pazuello na CPI, sua manifestação em ato político e a recente decisão de não punir o general, reforçam a ideia de que a presença das Forças Armadas no governo faz parte de um projeto dos militares. “Em um mês, ficou clara a imagem construída das Forças Armadas e sua participação ativa num governo que é claramente um projeto de governo militar”.

Edição de entrevista ao Podcast Unesp