Análise da “dependência brasileira” de FHC é tema de seminário na USP

Fernando Henrique Cardoso como sociólogo é tema de seminário. Contribuições do ex-presidente para as ciências sociais serão discutidas nesta semana em evento on-line

O sociólogo em seminário na década de 1970 – Foto: Arquivo Fundação Fernando Henrique Cardoso

Antes de ocupar o cargo de presidente da República entre 1995 e 2003, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso fez trajetória acadêmica e se consolidou como um cientista social de relevância para o País. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, formou-se em Ciências Sociais em 1952 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP — hoje a FFLCH —, foi aluno de Florestan Fernandes (1920-1955) e é autor de Dependência e Desenvolvimento na América Latina: Ensaio de Interpretação Sociológica, de 1969, escrito no Chile em parceria com Enzo Faletto, sua obra mais famosa.

Essa face de FHC, por vezes deixada de lado devido à sua carreira política, pauta o seminário on-line Fernando Henrique Cardoso, Cientista Social: Modos de Ler, que começou nesta segunda-feira, dia 7, e se estende até quinta-feira, dia 10, sempre a partir das 17 horas. O evento, que é transmitido pelo canal da FFLCH no Youtube (assista aqui), é organizado por pesquisadores que estudam a obra do sociólogo: Leonardo Belinelli, pós-doutorando da FFLCH, Karim Helayel e Pedro Luiz Lima, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Segundo Belinelli, o objetivo do evento é “reunir diversas gerações de cientistas sociais para rediscutir a vasta obra de Cardoso, a começar por ex-alunos dele e importantes intérpretes do pensamento social e político no Brasil”. Serão abordados temas ligados principalmente às áreas de sociologia, ciência política e economia.

Para o professor da FFLCH Bernardo Ricupero, um dos participantes do evento, trata-se de “uma oportunidade para examinar com cuidado a obra de um intelectual importante e controverso, devido principalmente à sua atuação política, que é parte importante do seu trabalho intelectual”. Ele destaca o fato de o evento ser organizado por jovens pesquisadores da obra de FHC, “que buscam uma avaliação equilibrada do seu trabalho, o que talvez fosse mais difícil alguns anos atrás”, diz. “Não menos importante é que o encontro se dá num momento de ameaça à democracia, e quando o homenageado assume uma posição mais resolutamente contrária ao risco que vivemos”, completa o professor.

Nas palavras de Ricupero, Fernando Henrique Cardoso — que no próximo dia 18 completará 90 anos — é um “autor-ator”, um intelectual que produziu uma obra de respeito a partir da USP, o que abriu caminho para que ele se tornasse um protagonista da política brasileira.

“Fico, naturalmente, contente com a realização do seminário”, afirmou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao Jornal da USP. “Quero apenas dizer que o que fiz, no que possa ter de positivo, deve-se à formação que recebi de meus professores na FFCL da USP”. Cardoso cita, dentre os muitos que o ensinaram, Florestan Fernandes e Roger Bastide. “Tive bons professores, não só os dois mencionados. É bom professor não apenas quem sabe, mas quem transmite ao aluno a paixão pelo saber. E saber na ciência é, em grande medida, o interrogar-se e interrogar os demais”, reflete. “Sem pesquisa podem, eventualmente, formarem-se ensaístas competentes, mas não bons cientistas. Observação que vale para as ciências sociais, como para qualquer ciência.”

O seminário contará com três mesas temáticas, além das mesas de abertura e encerramento. Inauguram o evento, nesta segunda-feira, dia 7, os professores José de Souza Martins, da FFLCH, e Elide Rugai Bastos, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na quinta-feira, dia 10, o fechamento será feito pelos professores da FFLCH Maria Hermínia Tavares de Almeida e André Singer.

As mesas temáticas seguem cronologicamente a carreira de Fernando Henrique Cardoso, desde sua formação até a maturidade intelectual. A primeira delas, nesta terça-feira, dia 8, tem participação dos organizadores Leonardo Belinelli e Pedro Luiz Lima e dos professores Lidiane Soares Rodrigues, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), e Rodrigo Santaella, do Instituto Federal do Ceará (IFCE). “A mesa discutirá como Cardoso, ao longo de sua formação, se relacionou com o marxismo, o que abrirá caminho para as suas formulações a respeito da ‘dependência’ e das características do capitalismo em sociedades periféricas, que é tema da mesa dois”, afirma Belinelli. 

Fernando Henrique Cardoso (em pé,  no centro) com Ulysses Guimarães (sentado, no centro), Bernardo Cabral (à esquerda) e Humberto Lucena (à direita) durante a Assembleia Nacional Constituinte, que elaborou a Constituição de 1988 – Foto: Wikimedia Commons

Quanto à ligação de FHC com o marxismo, Belinelli explica que um fator importante foi o grupo de estudos Seminário de O Capital, organizado por Cardoso e outros intelectuais da época, como José Arthur Giannotti e Fernando Novais. “Jovens professores e alunos se reuniam para ler a principal obra de Karl Marx e alguns dos seus intérpretes. Por meio disso, foram capazes de incluir Marx e a sua tradição nos estudos das ciências humanas no Brasil, o que ainda não era praxe”, conta o pesquisador. “Vale notar que era uma forma acadêmica de leitura, diferente das apropriações parciais, e muitas vezes vulgares, feitas do marxismo na política daquele período.”

Fernando Henrique Cardoso (no centro) com os então presidentes do Paraguai, Juan Carlos Wasmosy (à esquerda), e da Argentina, Carlos Menem (à direita) – Foto: Wikimedia Commons

A segunda mesa vai abordar as reflexões de Cardoso dos anos 1970 e 1980, “mais centradas nos dilemas da democratização do País a partir do diagnóstico sobre a origem e o funcionamento do Estado autoritário instalado em 1964”. O organizador Karim Helayel se apresenta ao lado dos professores Vera Cepêda, da Ufscar, Antônio Brasil Jr., da UFRJ, e Alessandro Leme, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Por último, a terceira mesa traz os professores Bernardo Ricupero, Daniela Mussi, da UFRJ, e Juarez Guimarães, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ricupero diz que pretende concentrar sua fala na temática do populismo. “Talvez não foi uma questão que Cardoso tenha discutido tanto, mas me parece interessante o diálogo com seus contemporâneos Francisco Weffort e Octávio Ianni, e como o populismo chega até nós”, explica o professor.

O sociólogo antes do político

Segundo o professor Bernardo Ricupero, Fernando Henrique Cardoso como autor deve ser entendido num ambiente mais amplo, o da chamada “Escola Paulista de Sociologia”. Um dos primeiros docentes da cadeira de Sociologia I da USP — da qual Florestan Fernandes era catedrático —, ele “procurou entender a especificidade do capitalismo brasileiro, que é parte do capitalismo mundial, mas com uma forma própria de inserção nele”, explica.

Foi a partir desses estudos que surgiram o que Ricupero considera os principais trabalhos de Cardoso, todos dos anos 1960. Dentre eles, sua tese de doutorado, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional (1961), “em que demonstra, contra as aparências, a ligação (contraditória) entre capitalismo e escravidão”, e sua tese de livre-docência, Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil (1963). Nesta, com base em uma pesquisa com empresários brasileiros, Cardoso “aponta o vínculo deles com o latifúndio e o capital internacional, o que desmentiu a aposta de boa parte da esquerda de então na chamada ‘burguesia nacional’”, afirma Ricupero. 

O pesquisador Leonardo Belinelli – Foto: Arquivo Pessoal

Para Leonardo Belinelli, Cardoso tornou-se célebre sobretudo por Dependência e Desenvolvimento na América Latina. “Na obra, ambos fizeram uma importante crítica à teoria econômica cepalina e às ciências sociais latino-americanas, o que permitiu uma nova forma de examinar a formação histórica da região e as suas possibilidades”, diz Belinelli. A teoria econômica cepalina refere-se ao estilo de pensamento econômico desenvolvido pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), em especial pelo argentino Raúl Prebisch e o brasileiro Celso Furtado, ao longo dos anos 1950 e 1960. 

O professor Bernardo Ricupero, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – Foto: Departamento de Ciência Política da FFLCH

Ricupero analisa que o interesse pelo “personagem” vem também da ambivalência entre o sociólogo e o político. “Como acadêmico, demonstrou uma fina percepção da política, além de capacidade de liderança, especialmente colocada à prova na resistência à ditadura. Como político, inicialmente muita da sua legitimidade veio da sua posição como intelectual. Mas, mesmo como presidente, escolhas por vezes controversas, como a abertura econômica, derivaram de uma certa interpretação do Brasil e do mundo”, completa Ricupero. 

Para Belinelli, como as reflexões de FHC foram centrais para as ciências sociais brasileiras, acabaram se tornando objeto de leituras divergentes ou até opostas. “É compreensível que as diferentes tradições dessa área no Brasil tivessem que interpretá-lo, e o fizeram a partir das suas próprias posições”, acrescenta.

Quanto a possíveis aplicações do pensamento de FHC no Brasil atual, Belinelli afirma ser uma análise difícil, visto que sua obra sociológica foi encerrada nos anos 1980. Entretanto, o pesquisador pensa que a maneira de Cardoso de interpretar a inserção do Brasil na ordem social capitalista, ao lado de sua multidisciplinaridade e formação teórica rigorosa, são legados que podem iluminar os caminhos dos cientistas sociais brasileiros.

Banner de divulgação do evento Fernando Henrique Cardoso, Cientista Social: Modos de Ler – Imagem: Divulgação/FFLCH

O seminário Fernando Henrique Cardoso, Cientista Social: Modos de Ler, promovido pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, começou nesta segunda-feira, dia 7, e vai até quinta-feira, dia 10, sempre às 17 horas, com transmissão através do canal da FFLCH no Youtube. Não é necessário fazer inscrição. Confira a programação completa na página do evento.

Do Jornal da USP