Apagão: Após 20 anos, Brasil reencontra o fantasma do racionamento

Crise energética provocaria, no mínimo, apagões nos meses de setembro e outubro, turvando as perspectivas de recuperação da economia

Com a pior gestão da pandemia no mundo, a fome disseminada e o desemprego em alta, o Brasil reencontra também o fantasma do racionamento de energia, como em 2001. O temor é lembrado por investidores, acadêmicos e especialistas. Uma crise energética provocaria, no mínimo, apagões nos meses de setembro e outubro, turvando as perspectivas de recuperação da economia.

Há uma combinação de fatores que levaram ao caos há 20 anos: ausência crônica de planejamento, investimentos insuficientes e nem sempre adequados, além da prioridade no atendimento aos interesses de grupos poderosos do setor elétrico, em prejuízo da população. Tais problemas foram ampliados no atual governo e explodiram com a pior seca do País em 91 anos. A possível privatização da Eletrobras – maior empresa de energia elétrica da América Latina – eleva o risco de perenizar a vulnerabilidade.

A possibilidade de apagões leva o País a reviver o trauma da falta de energia em 2001, resultado de baixos investimentos no setor, privatizações e outros erros do governo Fernando Henrique Cardoso. Para evitar o colapso, FHC impôs a redução compulsória de 20% do consumo de eletricidade e punições para quem ultrapassasse o limite. O racionamento foi uma das causas da derrota dos tucanos nas eleições 2002.

A crise energética atual, dizem os especialistas, seria explosiva não fosse o fato de a pandemia e a lenta vacinação no País terem derrubado a economia e o consumo de eletricidade. Mas uma retomada provocada pela recuperação dos EUA, da China e de países europeus que controlaram a Covid-19 pode aumentar a demanda de energia e a crise do setor. Em 31 de maio, pesquisa Focus do Banco Central aumentou a projeção de crescimento do PIB neste ano – de 3,14% há um mês para 3,96%.

Os primeiros sinais estão à vista. Um problema na linha de transmissão de energia elétrica do Pará para o restante do País desligou sete turbinas da Usina de Belo Monte e deixou diversos estados sem energia por 20 minutos em 28 de maio. No mesmo dia, o Sistema Nacional de Meteorologia previu situação de emergência hídrica, entre junho e setembro, em 248 municípios de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul, devido à seca extrema.

Com o acionamento de todas as usinas térmicas (mais caras e poluentes), a conta de luz subiu em maio para o nível de bandeira vermelha 1 – e em junho passará para bandeira vermelha 2, ainda mais alto. A possibilidade de melhora significativa do quadro é nula, pois a Região Centro-Sul está prestes a ingressar no período de falta de chuvas.

“Estamos passando por um período de hidrologia dos piores da história, desde setembro de 2020”, analisa Maurício Tolmasquim, professor titular da Coppe, instituição ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética. “Há uma vantagem em relação a 2001, que é a diversificação da matriz energética. Hoje há muito mais eólicas no Nordeste, a solar aumentou, tem a biomassa, a maior parte das usinas de cana-de-açúcar usa bagaço para produzir energia e exporta o excedente para a rede e termelétricas foram construídas.”

Segundo Maurício, isso dá mais segurança, mas não o bastante, pois os reservatórios estão muito baixos. O período seco apenas começou nas regiões Sudeste e Centro-Oeste e irá até novembro. O risco maior é ter alguns problemas de atender à ponta do sistema entre 18 e 19 horas – período em que o consumo aumenta muito, com o uso de chuveiros e outros equipamentos ao mesmo tempo. Como o nível dos reservatórios fica mais baixo, a capacidade de produzir energia nesse período diminui.

Uma questão que requer atenção, sublinha o especialista, é que o País não usa neste momento todas as termelétricas. Um grupo delas, que corresponde a entre 2 mil e 4,5 mil megawatts, de um total de 200 mil megawatts, está indisponível por problemas de manutenção, quebra e despacho, entre outros.

“É uma parcela razoável fora de operação neste momento em que o País está até importando energia do Uruguai. Cabe às instituições do setor mapear esse problema e fiscalizar”, sugere Tolmasquim, que critica ainda a entrada em operação de todas as usinas disponíveis apenas em maio, quando isso deveria ter sido feito em janeiro.

Um crescimento eventual da demanda puxado pela retomada nas maiores economias e o aumento da vacinação deve “estressar o sistema de energia”. Com a diversificação, é possível evitar o racionamento, mas haverá impacto muito forte sobre os preços.

“É evidente que o governo está se negando a dar orientação para promover o uso mais racional da energia, fazer a população economizar, não querem sinalizar, porque isso é um baque”, diz Ildo Luís Sauer, do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP). “Caso a economia retome o crescimento, teremos problemas. Mas, se o nível de atividade continuar extremamente baixo, a desgraça brasileira é tão grande que só nos livraríamos do racionamento da crise energética por causa da crise sanitária.”

Segundo Sauer, “há recursos disponíveis para evitar que se chegue ao racionamento, a exemplo da mobilização, por meio de incentivos, da capacidade instalada contratada e não contratada ainda, dos geradores de condomínios, edifícios, hospitais. Mas isso não acontecerá se o governo continuar com a cabeça enterrada na areia porque não quer assumir a gravidade da situação”.

A crise do setor elétrico não deveria nos surpreender, sublinha Sauer, pois ela é muito menos resultado do comportamento do clima do que da política. Desde que se começou a reformar o setor elétrico nos anos 1990, sob as asas do governo FHC, prometeram aos consumidores tarifas menores, melhor qualidade da energia e garantia do suprimento. Nenhuma das três promessas foi cumprida.

A tarifa brasileira é hoje uma das mais caras do mundo, tendo crescido mais de 100% acima da inflação desde as privatizações. O racionamento de 2001, os vários apagões nacionais e, recentemente, a crise do Amapá ilustram o cenário. Segundo Sauer, cerca de mil empresas que consomem em torno de 25% da eletricidade brasileira, mas “pagam tarifas abaixo do custo de produção mediante tramoias e arranjos regulatórios”. Nenhum governo mexeu nessa lógica.

Para Ikaro Chaves, presidente da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras, a elevação da tarifa é inevitável devido ao acionamento das térmicas. Pior: a privatização da empresa envolve a descotização, que retirará 7.451 megawatts de garantia física de usinas cotizadas (que vendem energia, em média, a R$ 61 o megawatt-hora) para repassar ao mercado livre, onde o preço é três vezes maior.

“Prevemos em estudos da associação dos engenheiros que o preço-base da energia vai variar de R$ 294 a R$ 300 com a descotização, o que resultará em aumento na conta de luz de ao menos 14%. São quase R$ 20 bilhões por ano, um total de R$ 600 bilhões que serão retirados dos bolsos dos consumidores residenciais, das pequenas indústrias e dos agricultores em 30 anos de concessão”, calcula o sindicalista.

“Um total de R$ 25,5 bilhões da receita apurada com a desestatização vai para a Conta de Desenvolvimento Energético. O governo diz que isso vai reduzir a conta de luz, o que é fake news”, diz Chaves. “A CDE representa menos de 10% da conta residencial média brasileira e essa redução mal paga o orçamento deste ano, que é de R$ 24 bilhões, além de que ela vai ser feita ao longo de 30 anos. A redução da conta de luz por conta da privatização da Eletrobras será, portanto, de 0,35%, ao passo que haverá 14% de aumento.”

Com informações da CartaCapital