“A Santa do Joaseiro”: Narrativas sobre a beata Maria de Araújo

A historiadora e professora da Universidade Regional do Cariri – URCA, Fátima Pinho é uma estudiosa da Beata Maria de Araújo.

Por Fátima Pinho*  

O título acima foi a manchete de uma notícia publicada no jornal O Libertador, de Fortaleza, em 19 de maio de 1890. Naquela data, os fatos extraordinários que vinham sucedendo em torno de uma jovem moça do povoado do Juazeiro, termo do Crato, já tinham tomado um considerável espaço na imprensa de todo o território brasileiro e em alguns jornais de Portugal, França, dentre outros países.

A trama, que teve como protagonistas Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, popularmente conhecida como “beata Maria de Araújo” e o padre Cícero e que, além dos dois, contou com muitos outros personagens, mudou a história e o contexto do sertão brasileiro, consistindo no encontro entre uma menina de família humilde e numerosa, de cor negra e um homem devotado à Igreja do seu tempo.

O primeiro encontro do padre Cícero com a então menina Maria Magdalena do Espírito Santo ocorreu no início de 1872, ano em que fixou residência no povoado do Juazeiro como sexto capelão.

Segundo o padre Cícero, em documento intitulado “Exposição dos fatos extraordinários ocorridos com a beata Maria de Araújo”, escrito do próprio punho a pedido do bispo Dom Joaquim, conheceu a menina Maria quando ela tinha entre 8 e 10 anos ao confessá-la em preparação para a primeira comunhão, percebendo, já naquele momento, que se diferenciava de outras crianças da mesma idade. Nesse tocante, afirma o sacerdote que nela encontrou “[…] as melhores disposições […] para a vida interior”, aconselhando-a, portanto, “[…] a se consagrar a Nosso Senhor; o que ela executou do modo o mais íntimo e perfeito, considerando-se desde aquela data como uma verdadeira esposa de Jesus Cristo.”

Ao confessar que reconheceu na menina “disposições para a vida interior”, aconselhando-a a consagrar-se à vida religiosa, incentivando-a a viver e portar-se moderadamente como “esposa de Cristo”, impõe-se, por assim dizer, como o responsável pela descoberta da vocação para a santidade daquela que será, anos depois, a protagonista dos fatos que mudarão completamente a vida do povoado, de seus habitantes e, sobretudo, do próprio sacerdote, estabelecendo entre os dois uma relação de cumplicidade que irá permear a convivência de ambos até a morte da beata em 1914, cabendo ao padre Cícero o papel de mentor e orientador espiritual.

Ainda nesse documento, padre Cícero relata outros momentos em que Maria de Araújo teria desenvolvido a habilidade de se conectar ao sobrenatural. Segundo ele, em 1880 se deu uma aparição da Virgem Santíssima e, a partir de então, encontros com Cristo. Em 1883/84, ao assistir uma missa, afirma que Maria recebeu um “[…] amplexo, ficando impressa no peito uma cruz a deitar sangue”, do qual ele mesmo foi testemunha.

Os fatos sobrenaturais que envolviam Maria de Araújo desde a sua infância – mas que eram mantidos em segredo -, passam a ser testemunhados pela população local a partir de 1885, quando começam a acontecer em atos públicos.

Em 1887, com a manchete UMA SANTA NO CEARÁ oriundos de dois jornais de Fortaleza – A Constituição e O Libertador – e replicados em periódicos de sete províncias do Brasil e um jornal de Portugal, circula uma matéria tratando do assunto: “[…] Todo o povo do Crato acha-se alarmado com a notícia de uma virgem piedosa residente no Juazeiro e confessada do padre Cícero. Diz o rumor público que ela é santa em carne viva e que tem como Anna Catharina de Emmerich, visíveis em seu corpo todos os estigmas da paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.”

Durante dois anos, após a publicação desta notícia os fatos relativos à santidade da beata ficaram restritos à oralidade, discutidos em rodas de conversa, nas residências, igrejas, etc., até por que o padre Cícero não concordava com a divulgação de tais acontecimentos antes de um posicionamento oficial da Igreja Católica.

Contudo, em 1° de março de 1889, na sexta-feira que antecede o Carnaval, após uma noite de vigília e penitência para que houvesse inverno, a jovem Maria de Araújo, ao receber a comunhão das mãos do padre Cícero percebeu que a hóstia consagrada havia se transformado em sangue. Era a primeira das mais de centenas de vezes que o fato viria a acontecer.

Entendido como uma manifestação divina e um milagre, o fato chegou à imprensa em 19 de julho de 1889. O jornal cearense Pedro II publica uma carta enviada do Crato com a pergunta: SERÁ MILAGRE?

A notícia dizia que “[…] na povoação do Joazeiro, termo do Crato, existe uma mulher moça, de reconhecidas virtudes. Desde algum tempo, a datar de sexta-feira santa do corrente ano, que nas confissões que faz, por ocasião de commungar, a partícula sagrada desfaz-se em sangue, de modo que a toalha da mesa de comunhão está completamente manchada de sangue […]. O Rvd. Padre Cícero Romão Baptista, que é o coonfessor de Maria de Araújo (assim se chama a virtuosa moça) afirma o fato já descrito, que ainda ontem, antes da missa cantada e sermão, reproduziu-se, de modo que o sangue estava visivelmente novo.”

Os chamados “Milagres do Juazeiro” passaram a ser noticiados pela imprensa nacional e até por periódicos de outros países que publicavam cartas, artigos e testemunhos de pessoas que vinham ver in loco Jesus se manifestando na “santa beata do Juazeiro”.

Somente no ano de 1889, 16 jornais dentro e fora do Brasil reverberaram os “milagres do Juazeiro”. Até 1898, ano em que o padre Cícero vai a Roma em busca do reconhecimento da Igreja Católica de que os fatos eram manifestações divinas, centenas de notícias circulavam em periódicos, folhetos e cordéis instaurando o debate sobre a veracidade dos fatos e colocando o padre, a beata e o povoado no cerne da discussão, transformando-os, respectivamente, em santo e santa e o povoado, na “Nova Jerusalém”.

Ainda no final do século XIX, a Igreja Católica, ao não reconhecer os fatos do Juazeiro como milagre, condenando-os como “prodígios vãos e supersticiosos”, cassou as ordens sacerdotais do padre Cícero e proibiu os fiéis de falarem sobre a beata e os ditos acontecimentos sob pena de excomunhão.

Instaura-se aí a chamada “Questão religiosa do Juazeiro”, começando uma devoção popular que, à margem do consentimento eclesiástico que só crescia ao longo dos anos.

Na atualidade, o lugar foi transformado na “capital da fé nordestina”, recebendo, em tempos normais, mais de 2 milhões de romeiros por ano. Padre Cícero e Maria de Araújo, igualmente, ganharam visibilidade e projeção através da imprensa, de livros e de centenas de estudos realizados nas mais diversas áreas do conhecimento ao longo dos anos.

No entanto, tamanha visibilidade não ocorreu de forma igual para os protagonistas dos fatos do Juazeiro. Enquanto o padre Cícero foi transformado numa das personalidades mais conhecidas do Brasil, cuja biografia é descrita em centenas de livros, objeto de milhares de reportagens, julgado, defendido, analisado, polemizado, estudado, etc., coube à beata Maria de Araújo apenas o papel de coadjuvante.

A beata Maria Araújo, que antes da condenação da Igreja foi tratada na imprensa como a protagonista dos chamados “milagres”, descrita comumente com adjetivos elogiosos – virtuosa moça, devota de reconhecidas virtudes, santa, virgem, sendo em muitas matérias apresentada como a “A beata Maria do Crato”, “A beata Maria do Juazeiro”, “A beata Maria de Araújo e os fatos do Juazeiro”, “A santa do Juazeiro”, “pobre e humilde serva de Deus” – passou, sobretudo a partir de 1897, a ser descrita como “cavilosa”, “embusteira”, “celebre impostora”, “a grande embusteira do Juazeiro”, “ardilosa embusteira”, “histérica”.

Embora continuasse a ser amada e respeitada por milhares de sertanejos, no transcorrer do século XX Maria de Araújo caiu no ostracismo, no esquecimento, pouco se falando sobre ela e quando o faziam, despontava como coadjuvante do padre Cícero.

Felizmente, na década de 1980, no meio acadêmico, a memória de Maria de Araújo começa a emergir através da bela dissertação de mestrado – depois publicada em livro – de Maria do Carmo Pagan Forti, intitulada “Maria do Juazeiro: a beata do Milagre”. A partir daí as narrativas sobre Maria Magdalena do Espírito Santo, a “santa beata Maria de Araújo do Juazeiro”, ressurgem em livros, monografias, dissertações, teses, artigos científicos, reportagens, ritos, celebrações, devoções.

Hoje existe um grupo constituído por devotos, pesquisadores e religiosos chamado “Movimento pela reabilitação da memória da santa beata Maria de Araújo”, cujo intuito é realizar encontros acadêmicos e religiosos para discutir sua importância nas questões religiosas do Juazeiro e reivindicar dos poderes públicos o seu reconhecimento, como a lei que obriga a colocação do retrato da beata em repartições públicas.

Chegou a hora de falar e conhecer a “Santa do Juazeiro”,

*Professora Dra do Curso de História da Universidade Regional do Cariri – URCA.