Garimpo ilegal em terras indígenas mostra a desestruturação do Estado

O procurador da República, Gabriel Dalla Favera de Oliveira, diz que a mineração em terras indígenas é um problema antigo, mas ainda atual e crescente

Sobrevoo na região sudoeste do Pará em 17/09/2020, quinta-feira e detectou focos de fogo, desmatamento e garimpo em unidades de conservação. Nesta foto, garimpo ilegal na Terra Indígena Munduruku, município de Jacareacanga. (Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real/Watch/17/09/2020)

O procurador da República, Gabriel Dalla Favera de Oliveira, comentou os prejuízos nefastos que poderá causar o PL 191/2020 com a regulamentação do garimpo ilegal dentro de terras indígenas. A ideia é condicionar essa exploração sob o controle do estado, embora não haja diálogo com os principais atingidos, que são as comunidades indígenas.

O projeto de lei de autoria do Governo Bolsonaro regulamenta o primeiro parágrafo do artigo 176 e o terceiro parágrafo do artigo 231 da Constituição Federal, estabelecendo “as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas e institui a indenização pela restrição do usufruto de terras indígenas”. 

A Constituição de 1988, explica o procurador, “não admitiu a pesquisa e a lavra de minérios nas terras indígenas; ela condicionou essa possibilidade”. A regulamentação dessas atividades, avalia Oliveira, não é uma possibilidade real e o PL 191/2020 propõe “essa pretensão de regulamentar essa possibilidade condicional”. 

A mineração em terras indígenas é um problema antigo, que vem ganhando maior dimensão atualmente. Segundo o procurador, a questão está relacionada à valorização mundial do minério de ouro, devido a “uma economia mundial que experimentou uma crise e, como consequência, pautou-se na valorização do custo do minério de ouro, o que promoveu um maior interesse”. 

Contudo, aliada a essa valorização do ouro, Oliveira revela que o Ministério Público tem percebido também “uma absoluta desestruturação por parte do Estado brasileiro” para prevenir e reprimir a extração ilegal e incondicional de minério de ouro, “especialmente no interior das terras indígenas”. 

Ele ressalta que esse garimpo ilegal nada tem a ver com a imagem romântica do garimpeiro com uma bateia no rio. São grandes empresas e sociedades empresariais que se organizam para essa exploração violenta, criminosa e invasiva, com utilização tóxica para rios, fauna, terras e até áreas urbanas por mercúrio. Em vez da bateia, utilizam-se escavadoras gigantescas e milionárias para a extração do minério em larga escala.

“O Brasil deve uma consulta prévia e informada, principalmente à população indígena, que é obrigação prevista normativamente inclusive no âmbito internacional”.

O procurador salienta a importância de receber insumos de lideranças indígenas realmente legitimadas, já que existem indígenas favoráveis ao garimpo nos territórios protegidos, quando a maioria é contrária e resiste ao assédio das grandes empresas. A violência e tentativa de silenciar lideranças mundurukus, por exemplo, é uma das denúncias acompanhadas pelo MPF.

Ele defende que não se deve encarar a visão simplista de que, como a mineração é uma realidade crescente e organizada, precisamos aprovar qualquer projeto para regulamentá-la. “Definitivamente, não é este o caso”, enfatizou, observando que o MPF não atua como um obstáculo ao debate aberto e amplo sobre o assunto, mas para garantir um debate qualificado com todos os atores interessados no Congresso Nacional.

Para o procurador, enxergar a Amazônia como um “recurso a ser explorado até a última gota” é uma visão ultrapassada de desenvolvimentismo arraigada entre setores empresariais e políticos locais e nacionais. “E pretendem implementar esse programa pela via legal do PL e pela via ilegal do garimpo, que é, também, um crime contra a economia popular na medida que se apropria privadamente de recursos naturais pertencentes à União”, disse.

Embora a metade do território da Amazônia seja desconhecido em suas riquezas minerais, os grupos criminosos têm interesse em minerar justamente em territórios indígenas. O PL, por sua vez, propõe a criação de mecanismos jurídicos totalmente estranhos à organização indígena para garantir uma suposta remuneração. Algo como a criação de uma associação, com estatuto legal, diretoria e advogados para receber os recursos da mineração, como ocorreu com as catástrofes das barragens recentes.

Oliveira diz que os mundurukus, por exemplo, dizem que não querem nada além de seu território livre de invasores e poluição dos rios e peixes. “Nada mais que isso!” Ele diz isso destacando como esse povos são absolutamente conscientes de seus direitos garantidos por normativas constitucionais e internacionais. Portanto, esses mecanismos de remuneração não podem ser impostos de fora para dentro.

Outra preocupação do MPF está no desmonte de organismos como Ibama e ICMBio, por meio de direções não técnicas, alheias à área ambiental, que passam a ter poder decisório sem o conhecimento técnico adequado. Segundo o procurador, o principal problema é que o MPF precisa entrar com centenas de ações civis públicas para exigir o cumprimento de sua função fiscalizatória por esses organismos estatais. Isso gera um grande represamento de matérias que precisam ser resolvidas extrajudicialmente para não demorar.

O nível de desestruturação do estado chega ao ponto da Procuradoria Geral da República, no DF, ter ajuizado, há cerca de um ano, uma ação de improbidade administrativa em desfavor do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. “Aponta didaticamente quais as esferas e facetas da desorganização apontada como dolosa pelo estado brasileiro da tarefa constitucional de repressão dos ilícitos ambientais”.

Ele explica que a ação, inclusive, pede o afastamento cautelar do ministro, que não foi aceita nem em primeira, nem em segunda instância jurídica. Apesar das reações internacionais e de passados doze meses, de acordo com o procurador, não se notou qualquer mudança na política do governo, senão agravamento. Se em 2010 eram 72 agentes, em Santarém, para fiscalizar mais da metade do estado do Pará, agora são cinco.

Oliveira conclui apontando a necessidade de regulamentação da cadeia do ouro, que não existe. Hoje, não se emite nota, nem se monitora eletronicamente o comércio de ouro, tornando altamente rentável para os ilegais sua exploração. Cobram o mesmo preço de quem paga imposto e repõem com facilidade o maquinário explodido em operações de fiscalização, que dificilmente conseguem deter os responsáveis na floresta.

Edição de entrevista à Marcelo Correia (Filo/Ribeirão Preto) à Rádio USP

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