Com a popularidade em queda, Bolsonaro reativa a máquina de mentiras

O presidente e aliados buscam impedir as plataformas de banir usuários por conta própria e apostam na desmoralização das urnas eletrônicas.

O menosprezo de Jair Bolsonaro pelos mais de 450 mil mortos, a inoperância administrativa, a falta de um plano econômico, a CPI da Pandemia e os escândalos no Ministério do Meio Ambiente cobram seu preço. O ex-capitão amarga sua menor popularidade desde o início do mandato. A esta altura, apenas um quarto dos eleitores considera seu governo ótimo ou bom, enquanto mais da metade o define como ruim ou péssimo. Diante de cenário desalentador como este, um governante sensato buscaria entender os motivos da impaciência popular e ajustaria os rumos. Mas a sensatez abandonou Brasília, de mala e cuia, no dia em que Bolsonaro recebeu a faixa presidencial. Temos então o inevitável: em vez de fazer autoanálise, o Palácio do Planalto iniciou nova caça às bruxas. O presidente e seus aliados abriram guerra legal contra as plataformas que passaram a retirar de circulação as fake news produzidas pelo “gabinete do ódio” e redobrou a aposta no radicalismo. Tudo para recuperar fôlego até as eleições do próximo ano.

Bolsonaro começou a arquitetar uma forma de limitar o poder das redes sociais após Twitter, Facebook e congêneres banirem Donald Trump das redes em consequência da invasão do Capitólio, que deixou um saldo de cinco mortos e 30 feridos. Para não sofrer o mesmo constrangimento, o governo brasileiro preparou um decreto, cuja minuta foi aprovada na Casa Civil, para retirar das empresas de tecnologia o poder de expulsar participantes de suas plataformas. A intenção seria repassar à Justiça essa decisão, uma forma de, no mínimo, atrasar os processos de remoção de conteúdos considerados mentirosos ou ofensivos. No Congresso, seis projetos semelhantes foram apresentados por deputados bolsonaristas. Não é para menos. O ex-capitão teve 11 textos excluídos ou cuja distribuição nas redes acabou limitada por promover “desinformação” e “causar danos reais” aos usuários. Além disso, 35 páginas ligadas a ele e aos filhos foram retiradas do ar por disseminação em massa de fake news. Trata-se de um vício e de uma estratégia. As mentiras impulsionaram a candidatura de Bolsonaro em 2018 e alimentam a massa de seguidores, o tal “rebanho” que segue bovinamente as instruções do presidente e nega as evidências de seus crimes e incompetência.

Caso o decreto não seja barrado pelo Congresso ou pelo Supremo Tribunal Federal, Facebook, YouTube, Instagram e Twitter ficariam impedidos de excluir publicações e páginas com base em suas regras próprias e rapidamente. As empresas ou quem se sentisse ofendido seriam obrigados a recorrer à Justiça para conseguir excluir conteúdos, com exceção daqueles crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. A fiscalização dos direitos autorais das mensagens ficaria a cargo da Secretaria de Cultura, comandada por Mário Frias, ator bissexto e bolsonarista ferrenho que leva arma para o trabalho e gosta de intimidar os servidores da pasta. Em resumo, um passe livre para a mentira, a injúria e a difamação. “Como o governo cria nova norma que trata de lei que já existe, a nº 12965, o decreto é inconstitucional. A atitude é repetitiva. Ele tem tentado legislar por meio de decretos, mas o Congresso está aí para impedir”, afirma Lídice da Mata, deputada do PSB da Bahia e relatora da CPMI das Fake News.

Quem elaborou a minuta foi o advogado Felipe Carmona Cantera, secretário nacional de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual. Disseminador de mentiras na internet, Carmona era assessor do deputado estadual de São Paulo Gil Diniz, vulgo “Carteiro Reaça”, que acabou expulso do PSL por ter virado alvo do inquérito das fake news em tramitação no STF. Nem Carmona nem a Secretaria de Cultura responderam aos pedidos de entrevista de CartaCapital. Na Câmara dos Deputados, os projetos de controle das redes são assinados pelos mais fiéis bolsonaristas: Bia Kicis, Carla Zambelli, Daniel Silveira (em prisão domiciliar por ameaçar ministros do Supremo), Luiz Phelipe de Orleans e Bragança e Filipe Barros. “Protocolamos um projeto que multa e suspende rede social que censurar usuário. Em ato conjunto com o deputado Daniel Silveira e outros, assinei PL que garante a liberdade de expressão e impede que Big Techs censurem brasileiros”, escreveu no Twitter Eduardo Bolsonaro, naquele estilo típico do clã de torturar a língua portuguesa e distorcer a realidade.

As propostas foram anexadas ao Projeto de Lei 3395, que tem o mesmo intuito. “Foi preciso uma tentativa de golpe na democracia dos EUA para que as empresas se mexessem. No fim, quem acabou golpeado foi Trump, que ‘sai de praça pública’ ao ser banido das redes”, avalia Guilherme Felitti, fundador da NoveloData, que acompanha comunidades bolsonaristas nos últimos três anos. A tentativa de Bolsonaro de judicializar a moderação das Big Techs, diz Felitti, encontra adeptos em outros países, entre eles o governador da Flórida, Ron de Santis, que sancionou lei que proíbe o Facebook e o Twitter de excluir contas de políticos. Na Índia, a sede do Twitter foi invadida por policiais depois que a rede carimbou como “manipulada” uma mensagem do governo.

Enquanto seus aliados atuam para proteger suas contas nas redes sociais, Bolsonaro divide-se entre exibir duvidosos feitos do governo, deslegitimar as instituições, minimizar a pandemia e atacar inimigos, ora o STF, ora governadores e prefeitos. Para isso, as milícias digitais, orientadas pelo gabinete do ódio, seguem de vento em popa. Por causa da pressão da CPI, Carlos Bolsonaro, vereador carioca que passa mais tempo em Brasília do que no Rio de Janeiro, retomou as rédeas da comunicação depois de um breve interregno e orientou o presidente a radicalizar nas redes. A estratégia foi selada em reunião no Palácio do Planalto em 6 de maio. Um dia antes, em evento sobre a tecnologia 5G, Bolsonaro anunciou a volta de Carluxo: “O meu marqueteiro é um simples vereador, Carlos Bolsonaro, lá do Rio de Janeiro. É o Tercio Arnaud, aqui que trabalha comigo, é o Mateus… São pessoas, são perseguidas o tempo todo, como se fosse, tivesse inventado um gabinete do ódio. Não tem do que nos acusar. É o gabinete da liberdade, da seriedade”.

A intensidade do trabalho do tal “gabinete da liberdade” é mensurável. “Os principais conteúdos falsos que realmente interessam ao bolsonarismo partem diretamente de páginas próximas ao presidente, algumas vezes dele mesmo, de seus aliados, principalmente de seus filhos Eduardo e Carlos, que ativam os robôs e a linha auxiliar que alimenta o sistema de disseminação de fake news em massa”, afirma Leandro Tessler, físico e um dos coordenadores do Grupo de Estudos da Desinformação em Redes Sociais da Universidade Estadual de Campinas. Nessa constelação de disseminadores de mentiras destacam-se os de sempre: Zambelli, Kicis e Filipe Barros, além dos blogueiros Leandro Ruschel, Allan dos Santos e Bernardo Küster. A equipe do pesquisador reuniu mais de 30 mil denúncias e 9 mil contatos de WhatsApp. O grupo monitorou, entre outras, a disseminação da fake news a respeito do “vírus chinês” e concluiu que a onda começou na página de Eduardo Bolsonaro em 18 de março. Além de milhares de compartilhamentos, a publicação acionou a rede de robôs e alimentou uma segunda mentira, ainda mais insana: aquela da existência de um microchip inserido na vacina CoronaVac para controlar mentes. O resultado veio em pesquisa Ibope em setembro: um em cada quatro brasileiros afirmou que não iria se vacinar por desconfiar do imunizante.

Outra mentira amplamente divulgada é a da eficácia do “Kit Covid”, forma de justificar a falta de investimentos na compra de vacinas e a opção por produzir cloroquina. Tudo começou em uma dobradinha de Bolsonaro e Trump, ainda em março do ano passado. O ex-presidente dos EUA, que detém ações do laboratório francês Sanofi, um dos maiores fabricantes do remédio, fez a defesa do medicamento, repercutida por Bolsonaro 48 horas depois. Em suas publicações nas redes, o ex-capitão confirmou a orientação e a distribuição da cloroquina como política de governo. Em mensagem de 29 de julho, listou 439 mil comprimidos enviados ao Pará. Em outra mensagem, de março passado, comemorou a expansão do uso do placebo: “Distribuição inicial de 3,4 mi de unidades de cloroquina e hidroxicloroquina para uso em pacientes seguindo as orientações médicas”. Das quase 500 mil menções sobre cloroquina nos últimos 30 dias, Bolsonaro lidera o ranking, segundo pesquisa feita por CartaCapital por meio da ferramenta BuzzMonitor. Um texto de 7 de maio “respondendo aos inquisidores” teve mais de meio milhão de curtidas e comentários.

Com a reeleição ameaçada, Bolsonaro voltou também a defender o voto impresso e a colocar em dúvida a lisura das urnas eletrônicas. Os dados coletados provam que partiu do próprio presidente a ordem para reavivar o assunto nas redes sociais. Em 6 de maio, o ex-capitão disparou em sua live semanal: “Sem voto impresso não vai ter eleições”. Minutos depois, Facebook, Instagram e Twitter registraram o início do que seria um pico de 54 mil menções em defesa do “voto auditável”. A transmissão foi compartilhada quase 30 mil vezes. Outra live, em que ele repete a defesa do voto impresso, em 29 de abril, registrou 450 mil interações. Além da política oficial, há um submundo de notícias falsas com produção e financiamento internacionais frequentado pelos bolsonaristas. “O que nos chama atenção é como a rede internacional tem muita presença aqui. Conseguimos chegar à fonte de uma fake news na Bósnia. E encontramos um padrão: erros de português da tradução do Google são usados como forma de driblar os filtros nas redes, assim como anagramas”, explica Leda Gitahy, da equipe de pesquisadores da Unicamp. Na era das mídias sociais, a mentira trocou as pernas curtas pela cauda longa. E é nela que Bolsonaro aposta para obter mais quatro anos de mandato. Terreno fértil existe, pois, no Brasil, em se plantando tudo dá.

O gado e o pasto

Essenciais na “guerra cultural”, os sites bolsonaristas têm experimentado um aumento de alcance nos últimos tempos. Os três maiores serviços supostamente noticiosos a serviço do clã, Jornal da Cidade on Line, Pleno News e BR7, tiveram suas publicações compartilhadas 112 milhões de vezes. Ao todo, os três “veículos” publicaram 11,6 mil textos em que defendem as teses governistas e atacam os adversários do Palácio do Planalto no período de 25 de janeiro a 25 de maio. Os termos mais usados reforçam a retórica do governo. “Ao analisarmos as palavras recorrentes nesses sites, temos Bolsonaro, STF, Lula e Doria bem acima de termos como vacina, por exemplo. Há um foco na política, provavelmente usando os sites para investir contra os adversários, sendo o principal o STF, Lula, devido à recuperação dos direitos políticos, e Doria, pela oposição na condução da pandemia”, descreve o pesquisador Pedro Barciela, responsável pela análise.

Enquanto o Jornal da Cidade on Line alcançou em um ano 198 milhões de compartilhamentos, o site Terça Livre, de Allan dos Santos, produziu 7,9 mil artigos acessados 7,2 milhões de vezes no último período, ficando em quarto lugar no ranking. No YouTube, o canal da página reúne 1,3 milhão de inscritos. Santos, criador das páginas, virou alvo de duas operações da Polícia Federal em um intervalo de 21 dias e chegou a fugir para os Estados Unidos, sob o pretexto de cobrir as eleições presidenciais. Ele tornou-se réu no inquérito das fake news em tramitação no Supremo Tribunal Federal. Na operação policial, foram encontradas mensagens que colocaram a presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, Bia Kicis, na mira da investigação e no centro da organização de atos em favor da intervenção militar. A investigação apura ainda a formação de uma rede com empresas sediadas no exterior suspeitas de tráfico de influência, lavagem de dinheiro e até de prática de “rachadinhas”. Ex-missionário da Igreja Católica, Santos começou a praticar jornalismo nos Estados Unidos, quando desistiu da “missão” e retornou ao Brasil com a ideia de abrir um site “olavista”. Chegou a flertar com os tucanos e com Aécio Neves, defendeu o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, mas encontrou sua vocação na defesa apaixonada do clã Bolsonaro e do Messias.

Fonte: Carta Capital