Como as mulheres triunfaram nas eleições do Chile

A eleição de mulheres como Iraci Hassler, Javiera Reyes e Barbara Sepúlveda no Chile marca um ponto de inflexão. Para além da militância, talvez o mais importante seja que ao leme de cada uma das campanhas estava uma equipe formada por mulheres

Crédito: Patricio Vera/Agencia Uno

A economista e recém-eleita prefeita de Santiago, Irací Hassler, no dia seguinte à sua vitória sobre Felipe Alessandri, estava na rua rodeada por dez mulheres que acenavam com a cabeça para as suas palavras enérgicas. A cena é representativa de sua campanha e da nova articulação de preferências para as candidatas mulheres que as eleições de 15 e 16 de Maio revelaram.

Na nova configuração, o Partido Comunista (PC) teve o seu próprio paraíso eleitoral. Dos 36 candidatos masculinos e femininos que levou para a Convenção Constitucional, 20 eram homens e apenas dois foram eleitos (um deles arrastado pela paridade). No caso das mulheres, havia 16 candidatas e quatro delas foram eleitas. Se uma lupa for colocada nas eleições para prefeitos, há outra novidade para o PC: das cinco candidatas na Região Metropolitana, duas foram eleitas em municípios onde o partido durante anos só apareceu em conselhos.

Claro que os resultados agradaram ao PC, embora dentro do partido reconheçam que por detrás da candidatura de cada mulher militante e das suas respectivas vitórias houve anos de debates, votações e discussões internas para dar visibilidade às candidatas mulheres, conversas que aumentaram nos últimos anos e deram frutos como a resolução do XXVI Congresso do Partido Comunista no qual o PC se definiu como um “partido feminista de classe, anti-patriarcal”.

Irací Hassler, eleita prefeita de Santiago

Apesar da mudança recente de definição, o trabalho das mulheres nas escolas internas de PC que visam reforçar a educação sobre questões de género tanto para homens como para mulheres, bem como a modernização permanente da Comissão Mulheres, Género e Diversidade que aconselha o partido e o Comité Central sobre estas questões, é algo que acontece há muitos anos. Embora a estrutura fechada do PC não permita a existência de um segmento feminista (ou de qualquer outro tipo), os movimentos sincronizados destas mulheres que triunfaram durante as últimas eleições, especialmente na Região Metropolitana, sugerem que existe uma coesão fora da sua militância política.

Onde convergem, então, as mulheres feministas do PC? Segundo os seus próprios relatos, não só no partido, mas também nas mobilizações sociais dos últimos anos, nas organizações feministas e sindicais, ou no trabalho de campo que muitas delas fizeram durante as suas respectivas campanhas. Da liderança estudantil surgiu Valentina Miranda (21), antiga porta-voz da Coordenadora Nacional dos Estudantes Secundários (Cones), a mais jovem constituinte eleita a nível nacional. As atuais prefeitas eleitas de Santiago e Lo Espejo, Irací Hassler (31) e Javiera Reyes (31), ambas licenciadas em Economia pela Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile (FEN), convergiram para o PC também após as suas respectivas lideranças estudantis e hoje partilham o marco de ter feito história de mãos dadas com o PC.

No rescaldo dos tempos de convulsões

O longo caminho que tem levado o PC a ter cada vez mais mulheres em posições representativas não é isento de controvérsia interna. Uma queixa de assédio em 2010 foi o primeiro alerta, não só por causa do próprio fato, mas também porque a queixa interna não chegou ao Comité Central do PC. Algum tempo depois veio a gravidez de Camila Vallejo, no meio da campanha, que, de acordo com os membros do partido, não tinha pré ou pós natal, apenas algumas semanas de recesso. Finalmente, o #MeToo e a onda de alegações de abuso e assédio sexual a nível nacional permearam inevitavelmente as esferas masculinas do Partido Comunista.

Alguns desses casos marcaram o ritmo da união tácita entre as militantes mais jovens – e não tão jovens – bem como as questões que lideram os programas políticos eleitos.

Sem ir mais longe, deu-se início à discussão sobre se era ou não viável ser um partido feminista – e com visível oposição de alguns homens – também teve a ver com o período decisivo que o país tem vivido nos últimos anos. “A primeira discussão sobre o assunto que tivemos dentro do partido”, recorda a Congressista Cariola, “foi sobre ter uma espécie de quota para que nenhum gênero tivesse mais de 60% de representação política. Essa discussão gerou um tumulto interno “porque deixou os colegas de fora, uma vez que a representação feminina foi sempre inferior a 40%. Finalmente a definição foi paridade; paridade no Comité Central, paridade na Comissão Política e mesmo a possibilidade de estabelecer paridade nas autoridades nacionais”, diz a deputada.

Javiera Reyes na reunião para festejar a vitória de mulheres de oposição | Foto: Agencia Uno.

Olhar para os fatos em retrospectiva tem sido importante neste processo. Revendo a história de Gladys Marín, a primeira mulher a ser candidata presidencial no Chile, também a primeira mulher a ser presidente de um partido político, que era o Partido Comunista, acabado de entrar na democracia, marcou as gerações que se seguiram à sua. “Temos Gladys Marín no nosso ADN comunista. Com ela veio uma necessidade imperativa de abrir certos espaços”, disse a deputada Cariola.

Destacam também a figura de Teresa Flores, “uma das mulheres invisibilizadas na história do Partido Comunista, porque foi a fundadora do PC juntamente com Luis Emilio Recabarren, mas só fala dele; então rever a sua história foi necessário”, diz a ex-ministra das mulheres e da igualdade de gênero, Claudia Pascual, que durante anos participa na articulação da Escola Nacional Teresa Flores onde o principal trabalho é a educação para erradicar a desigualdade de gênero.

Nesse sentido, a ex-ministra do PC acrescenta um marco histórico que marcou o olhar geracional e de género dentro do partido e também do país: o maio feminista de 2018, um movimento que começou em Abril com atos feministas nas universidades, associado a queixas de assédio ou abuso sexual, e explodiu em Maio desse ano, onde as exigências feministas se voltaram para a rua e marcharam cerca de 150 mil pessoas, na sua maioria mulheres.

A deputada constituinte Bárbara-Sepúlveda com sua equipe | Foto: Bárbara-Sepúlveda.

“Lembro-me que isto levou nós mulheres a coordenar de alguma forma, não como uma coordenação orgânica dentro do partido, mas para nos informarmos sobre a mesma coisa e fazermos algo em conjunto”, diz Susana González, uma militante de PC e gestora de campanha para a candidatura constituinte da advogada Bárbara Sepúlveda. Desde então, acrescenta a ex-ministra Pascual, a conversa sobre gênero tem sido articulada de alguma forma entre várias mulheres no PC. Pela mesma razão, ela acredita que “estes triunfos das mulheres têm também a ver com o contexto nacional, com um olhar e uma visão de ter de tomar decisões sobre a questão das desigualdades de género e como estas não têm apenas a ver com uma relação de questões pessoais, porque por vezes são também questões estruturais que englobam todos”. Finalmente, acrescenta que não só tem havido uma coesão das forças femininas, mas também existe a vontade de todos de realizar “uma procura muito activa de novos rostos”. Isto também tem a ver com a política ter uma perspectiva de gênero transformadora”.

Camila Vallejo e Karol Cariola a portas abertas

A campanha feita pela advogada Bárbara Sepúlveda para ser constituinte do 9º distrito teve surpresas. Quase no final da sua campanha, a sua equipe convidou sem aviso prévio a sua família e os seus colegas da Associação de Advogadas Feministas (Abofem) – uma associação fundada em Maio de 2018 e da qual Sepúlveda é agora diretora executiva – a distribuir panfletos informativos das 7h às 8h30 na comuna da Independência. A surpresa veio com a deputada Camila Vallejo incluída, que muito antes acompanhou Sepúlveda em várias ocasiões para fazer campanha em conjunto. O mesmo caso é o do deputado Karol Cariola que participou ativamente nas visitas porta a porta à população de La Pincoya, Recoleta, Independência ou Huechuraba que a candidata do 9º distrito fez.

“Karol é uma máquina no porta-a-porta. As pessoas a amam muito; aproximam-se dela, abraçam-na, ela é como uma estrela do rock. Com ela, as pessoas receberam-nos bem e ouviram-nos, para que pudéssemos explicar o processo que se segue”, diz a gestora de campanha de Bárbara Sepúlveda, Susana González. Sepúlveda, pela sua parte, agradece o apoio: “Camila e Karol abriram muitas portas a outras companheiras”.

Reunião para festejar o triunfo de mulheres de oposição nas eleições | foto: Agencia Uno

As deputadas foram ativas em candidaturas de mulheres. Cariola foi vista em todos os momentos com Hassler antes, durante e depois da vitória em Santiago. “Acontece que não fizemos nada escondido ou no escuro, temos sido muito abertos e transparentes na expressão das nossas intenções políticas desde que éramos líderes”, explica a Congressista Cariola, que também teve uma liderança histórica sendo a segunda Secretária-Geral da Juventude Comunista na história da Juventude. “A primeira foi Gladys, a segunda fui eu”, acrescenta ela.

A história política de Karol Cariola, Camila Vallejo, Irací Hassler e Javiera Reyes, entre outras, começa precisamente com a Revolução dos Pinguins e a liderança estudantil da época. Cariola e Vallejo também fizeram história juntos: Carol foi a primeira mulher presidente da Federação Estudantil da Universidade de Concepción (Fec) e Camila foi a segunda mulher presidente da Federação Estudantil da Universidade do Chile (Fech). Tal como Hassler e Reyes, ambas começaram com conquistas relevantes também para o seu partido. “Não vou tirar qualquer crédito da gente”, diz a deputada Cariola: “desde muito cedo, quando começámos a assumir estas tarefas de liderança pública, temos sido para muitas mulheres do PC um caminho para abrir espaços de representação política e para desempenhar papéis não só na esfera pública, mas também na esfera interna. E não só nós, é que talvez tenhamos sido as mais visíveis nos últimos anos”.

Dentro do partido, uma das lutas da liderança juvenil da época era ter em conta a palavra daqueles que vinham do movimento estudantil como ela e Camila Vallejo, mas não só eles. Nessa geração também estiveram presentes os militantes Camilo Ballesteros, Camila Donato, Gustavo Arias e precisamente Javiera Reyes e Irací Hassler. Todos eles fazem parte da geração de mobilizações estudantis que ocuparam posteriormente posições de representação a nível interno e a nível nacional.

Do mesmo modo, a representação das mulheres tem sido uma questão histórica que nos últimos anos tem vindo a concretizar-se. “A inclusão das mulheres também não tem sido fácil, porque os partidos políticos não esquecem o que os países e as sociedades estão a viver culturalmente”, reconhece a congressista Cariola, que acrescenta que há um trabalho de mulheres dentro do partido que tem a ver com a abertura de portas a outras gerações. “Claudia Pascual é uma delas. Na orgânica estão, por exemplo, Vesna Madariaga, Danae Prado, Javiera Meneses, que recentemente serviu como chefe da campanha de Irací Hassler para se tornar prefeita de Santiago”, diz a deputada.

A ex-ministra Claudia Pascual, que já foi a militante comunista que combateu a exclusão do PC dos governos da Concertación, e que também chefiou pela primeira vez o Ministério da Mulher e Igualdade de Género inaugurado em 2016, diz que a mudança geracional desempenhou um papel importante nas últimas eleições: “Foi uma enorme contribuição das novas gerações, e com isso não me refiro apenas à idade, mas também à nova militância, mesmo que sejam mais velhas. Hoje não nos dirigimos apenas à escola de formação para mulheres, mas também estamos a discutir novas masculinidades, estamos a falar dos direitos da população LGBTIQ+, e estamos a fazê-lo no terreno, acompanhando-nos mutuamente, e penso que isso também tem sido importante. Estes não são os caminhos das mulheres solitárias, porque estamos todas juntas.”

Mulheres atrás de mulheres

Quando a ex-ministra Claudia Pascual assegura que as candidatas já não tecem caminhos solitários, provavelmente tem a ver com o fato de as redes de mulheres terem se manifestado de todos os pontos de vista no processo eleitoral, dos eleitores, das equipas que acompanharam os candidatos e também dos laços que existem entre cada uma delas.

No município de Santiago, quando se confirmou a vitória da antiga vereadora Irací Hassler (38,81%) sobre Felipe Alessandri (35,32%), a já eleita presidente da câmara de Lo Espejo, Javiera Reyes, chamou a sua amiga de longa data para a felicitar. Atrás dos seus respectivos celulares, ambas ficaram entusiasmadas. Hassler e Reyes são amigas desde antes mesmo de estar nas forças armadas, desde 2011. “Temos andado a trilhar este caminho juntas. Havia de tudo, bons tempos, mas também dúvidas e também precisávamos de nos acompanhar uns aos outros e fizemos isso falando sempre que podíamos”, reconheceu Reyes.

As deputadas Camila Vallejo e Karol Cariola tem sido apoio chave para a nova geração de dirigentes do PC | Foto: Agencia Uno

Antes mesmo de terem uma projeção sobre os resultados nos respectivos municípios para os quais concorriam, os que as rodeavam chamavam-lhes, em tom jocoso, “as amigas da Câmara”. Em 16 de Maio, elas fizeram história: Reyes será a primeira mulher e prefeita comunista na história de Lo Espejo; e Irací será o primeira comunista a ocupar a sede municipal em Santiago.

O fator comum entre as duas não é só a sua relação de longa data, mas também a proposta com um enfoque no gênero que as levou a vitória nas eleições – assegura Reyes – como ambas tiveram gestoras de campanha mulheres – Aymara Salamanca e Javiera Meneses, ambas militantes de PC – e sobretudo equipes femininas. A este respeito, Reyes assegura que também foi apoiada por “uma equipa de vizinhos que são principalmente mulheres”. Não todos, mas a maioria deles. Os mais velhos pararam-nos nas feiras para nos dizerem que as suas sobrinhas, filhas, netas lhes já tinham decidido por nós para a prefeitura. As jovens mulheres foram as grandes protagonistas, e não digo isto por mim, mas pelos meus vizinhos que foram decisivos no resultado”.

A campanha da advogada Barbara Sepúlveda foi liderada por Susana González e uma equipa composta, segundo Sepúlveda, por 90% de mulheres. Relativamente à forma como esta decisão poderia ter influenciado a eleição dos municípios de Lo Espejo ou Santiago, Sepúlveda diz que “no caso de Irací Hassler penso que devemos também reconhecer que Javiera Meneses – a sua chefe de campanha – teve também um papel muito forte no partido de Santiago Centro em questões de gênero e território, e é uma liderança que eu reconheço muito, porque normalmente aqueles que estão na segunda linha desenvolvem conteúdos, acompanham os candidatos e elaboram as agendas políticas, ou seja, há um super, super grande trabalho de coordenação como aconteceu também na minha equipe”.

Por outro lado, Javiera Meneses, que é também líder da Associação Chilena de Trabalhadores Sociais, explica que “o trabalho com as mulheres na comuna foi muito relevante. Não só com as ativistas, mas também com a comunidade e os habitantes”.

“Construímos esta campanha de baixo para cima e compreendendo que não basta nos declararmos um partido feminista anti-patriarcal, o que foi uma enorme alegria para todos nós, porque é um avanço em relação ao que temos proposto há muitos anos, mas também tem de ter expressões concretas nas relações de poder que são estabelecidas entre homens e mulheres, tanto dentro como fora do partido. Penso que compreender isto e pô-lo em prática foi uma das chaves para estas candidaturas”, diz ela.

Algo que Bárbara Sepúlveda acredita que deve ser replicado é a rede de mulheres que acompanha outras mulheres: “Há camaradas que trabalham constantemente para os outros, porque compreendem que existe um projeto coletivo e porque compreendem que as novas lideranças também não são lideranças personalistas. Isso também é agradável de ver e penso que é isso que deve começar a ser replicado.”

Fonte: The Clinic
Tradução: Rodrigo Abdalla

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