Novo ataque à Terra Indígena Yanomami expõe omissão do Estado

Novo conflito em Roraima (RR) revela descontrole do garimpo ilegal e consequências como doenças e violência

Lideranças dos povos yanomami (Foto: Victor Moriyama / Instituto Socioambiental)

O conflito desta segunda-feira (10) na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, reforçou a ausência de comando para coibir a ação ilegal de garimpeiros e garantir direitos aos povos indígenas. A denúncia do confronto feita pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) confirmou a falta de segurança em Terras Indígenas (TI) e repercutiu as consequências da presença de garimpeiros.

Conforme os relatos, grupos de garimpeiros armados chegaram em sete embarcações até a aldeia Palimiu, na região do Uraricoera, e começaram a atirar com armas de fogo contra os indígenas. Um vídeo da ação foi obtido pelas associações yanomamis.

O ataque ocorreu após os indígenas apreenderem materiais que seriam destinados ao garimpo. O confronto também foi comentado por garimpeiros em áudios de WhatsApp. Eles disseram que o ataque aos yanomamis foi feito pela “facção”. A facção criminosa mais atuante em Roraima é dominada pelo PCC (Primeiro Comando da Capital). A Polícia Federal investiga o caso.

Durante o confronto, três garimpeiros morreram e quatro ficaram feridos, de acordo com presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuanna (Condisi-Y), Junior Hekurari Yanomami. Um indígena também ficou ferido com um tiro na cabeça, mas sobreviveu.

Momento do ataque ao povo Yanomami |Fotos: Reprodução

Ainda na tarde de segunda, o presidente do Condisi-Y foi até a comunidade para acompanhar a situação de perto.

“Primeiro, um grupo de garimpeiros chegou. Eles [os indígenas] barraram para que não passassem. Aí, depois de dez minutos, chegou outro grupo de garimpeiros. Atiraram de todos os lados e invadiram as comunidades. Os Yanomami também responderam com flecha contra os garimpeiros, com espingarda”, disse Junior. “Eles [os indígenas] estão muito assustados. Nunca viram [algo] como aconteceu hoje.”

Um relatório da visita do Condisi-Y foi enviado ao Ministério Público Federal (MPF), à Fundação Nacional do Índio (Funai) e à Polícia Federal (PF). No documento, Hekurari pede uma ação por parte dos órgãos, após a situação entre indígenas e garimpeiros se agravar “diante da inércia da União, de seus órgãos e autarquias”.

“Diante de todos esses danos potenciais e previsíveis, que acabaram por se confirmar com o passar do tempo, e diante da inércia da União, de seus órgãos e autarquias, solicitamos que seja ajuizada alguma ação, uma vez que a situação se agravou de tal forma que o caos social se instalara e a atividade criminosa caminha para sair do controle das forças de segurança”, diz trecho do relatório.

Em outro ofício, a Hutukara Associação Yanomami (HAY) pediu apoio da Polícia Federal, MPF, Exército e Funai nesta segunda-feira para “impedir a continuidade da espiral de violência no local e garantir a segurança para a comunidade Yanomami de Palimiu”.

“As lideranças estão indignadas com a continuidade da invasão garimpeira em suas terras e com a violência e ameaça praticada pelos invasores. Temendo que novas retaliações por parte dos garimpeiros resultem em mais conflitos violentos e mortes, os indígenas exigem uma resposta dos órgãos públicos para garantir a segurança das comunidades”, cita trecho do ofício da Hutukara.

Agentes da Polícia Federal e militares do Exército seguiram nesta terça-feira para a comunidade de Palimiú e trocaram tiros com garimpeiros na Terra Indígena Yanomami durante uma diligência para apurar o confronto.

Bolsonaro e o garimpo ilegal

A maior autoridade do país, o presidente da República Jair Bolsonaro, já demonstrou apoio à atividade ilegal em terras indígenas. Em sua live semanal no dia de 29 de abril, ele anunciou que quer visitar pelotões de fronteira do Exército na região Norte do Brasil e ir a um garimpo nas próximas semanas. “Não vamos prender ninguém”, afirmou.

Para Bolsonaro, a ação do governo deve ser para regularizar a ação predatória. “Logicamente tem que legalizar a extração, o garimpo de ouro, tem que legalizar.”

A Hutukara Associação Yanomami repudiou as falas do presidente em nota e rechaçou a visita presidencial. “Não queremos que Jair Bolsonaro venha conversar dentro do território, nem venha visitar o garimpo. Nós, lideranças tradicionais, não estamos interessados em discutir sobre garimpo ilegal, não queremos negociação de legalização de garimpo”, informou a nota.

Vista aérea do tatuzão do Mutum, em dezembro de 2020, considerado o maior garimpo da Terra Indígena Yanomami | Foto: ISA/HAY

Além da violência

O garimpo avançou 30% na Terra Indígena Yanomami em 2020, cerca de 500 hectares foram devastados pelo garimpo ilegal na região. Além da violência, o garimpo criminoso contamina os rios com mercúrio e propaga doenças como malária e covid-19.

A foto de uma menina Yanomami debilitada numa rede na comunidade Maimasi, região de difícil acesso na floresta amazônica, em Roraima, ganhou destaque após a publicação no jornal “Folha de S. Paulo” desta segunda-feira (10). O missionário Carlo Zacquini, que recebeu a imagem, afirma que a foto representa o abandono das aldeias. Segundo a Fiocruz, 80% das crianças da etnia sofrem de desnutrição crônica.

“Essas aldeias estão abandonadas. Todas elas sem assistência. Não há equipes. A equipe é desfalcada de pessoas. Tem postos de saúde que estão fechados há meses na Terra Yanomami”, afirmou Zacquini.

O registro foi feito no dia 17 de abril e enviado a Zacquini. Segundo o missionário, a menina tem entre 7 e 8 anos e havia sido diagnosticada com malária, pneumonia, verminose e desnutrição. Ela foi removida para a capital Boa Vista no dia 23 de abril e está internada no Hospital da Criança Santo Antônio.

Além da pandemia de covid-19, os Yanomami enfrentam um surto de malária. Em 2014, foram quase três mil casos de malária entre os yanomami. Cinco anos depois, foram perto de 17 mil casos. O missionário católico Carlos Zacquini, que trabalha há quatro décadas com os yanomamis, aponta que falta medicamento para o tratamento de malária.

“Cloroquina, o remédio para malária, estava contada, o recomentado é que o uso fosse muito restrito, em caso de necessidade. Não havia abundância. Parece que para outras coisas tem, mas para isso não”, disse o missionário.

Dario Kopenawa, uma liderança yanomami e vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY), diz que o caso da menina não é isolado:

“O combate à malária está prejudicado por falta de profissionais de saúde. Essa foto da nossa ‘parente’ [Yanomami] que está circulando mostra nossa venerabilidade. O governo federal não está preocupado com os problemas que enfrentamos hoje em dia”, afirmou Dario.

Procurado pelo do G1, o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y), responsável pela assistência de saúde, negou que haja falta de medicamentos

Dário Kopenawa Yanomami alertou que a presença do garimpo ilegal impacta a segurança dos povos indígenas em diferentes níveis.

“Na Terra Yanomami temos vetores que têm afetado a vida do Yanomami: os garimpeiros, que transmitem a malária, pois causam os danos ambientais, deixam os rastros em que o mosquito da malária, a carapanã, se reproduz e há a transmissão, causando o surto na Terra Yanomami. Eles também levam o coronavírus. Poluem nossos rios com mercúrio e nosso povo adoece”, resumiu.

Repercussão

O Conselho Indigenista Missionário – Cimi manifestou repúdio por mais um ataque violento de garimpeiros contra uma comunidade indígena dentro da Terra Indígena Yanomami.

“O Cimi repudia este novo ataque violento contra os povos Yanomami e Ye’kuana e denuncia a negligência e omissão do Estado brasileiro na proteção da vida e do território Yanomami e no atendimento à saúde. Exigimos o cumprimento por parte do Poder Executivo de suas obrigações constitucionais e das decisões proferidas pela Justiça Federal para garantir a retirada definitiva dos garimpeiros de dentro da terra indígena e a apuração e punição de responsabilidades de todos os envolvidos no esquema de exploração ilegal e enriquecimento ilícito.”

A Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas (FPMDDPI) também se manifestou e enviou oficiou ao Ministério Público Federal (MPF) e aos demais órgãos competentes requerendo informações sobre o ataque.

Violência recorrente

O conflito desta segunda na região do Palimiú, entre garimpeiros e indígenas, foi o terceiro em menos de 15 dias.

Em 1.º de março, a HAY denunciou que uma lancha com um grupo de aproximadamente oito garimpeiros atracou em 25 de fevereiro na comunidade de Helepi, às margens do Rio Uraricoera, e um de seus integrantes atirou contra um indígena.

Em 30 de abril, a HAY já havia enviado um ofício para os órgãos sobre a ocorrência de tiroteios entre indígenas e garimpeiros no Palimiu.

Maior reserva indígena do Brasil, a Terra Yanomami tem quase 10 milhões de hectares entre os estados de Roraima e Amazonas. Cerca de 27 mil indígenas vivem na região em 360 aldeias. Segundo a associação, há hoje cerca de 20 mil garimpeiros ilegais dentro da Terra Indígena Yanomami.

Com informações de Folha de S.Paulo, Amazônia Real, Cimi e G1