As mulheres do Jacarezinho, por Lídice Leão

Mulheres do Jacarezinho aprenderam com a história a andarem juntas e serem fortes. Não deixarão que o massacre do Jacarezinho seja esquecido

“Eles apontaram a arma pra mim, um fuzil, falando que eu tinha que morrer, só porque eu fui perguntar onde o corpo do meu filho ‘tava’. Eles chegaram atirando”. O relato, desesperado, é de uma das muitas mulheres que aparecem nos vídeos que registraram o pânico na comunidade do Jacarezinho após o massacre promovido por policiais civis.

Outra imagem mostra uma mulher que entra em uma casa e aponta para o chão todo manchado de sangue. Ela caminha por um primeiro cômodo, sobe as escadas, também sujas de sangue, e chega ao andar de cima, onde almofadas, panos e piso expõem um assassinato em forma de nódoa rubra por todos os cantos do que, antes, parecia ser um lar.

As vozes dessas mulheres são agudas, doloridas. Os vídeos estão entre os muitos publicados nas redes sociais pelo advogado Joel Luiz Costa, nascido e criado no Jacarezinho, que postou seguidas imagens e declarações diretamente do local, logo depois da chacina.

Mas se há dor, há revolta. E se há revolta, há organização. Se há organização, há força. E quando se trata de mulheres, muita força. São mães, companheiras, irmãs, tias, sobrinhas, amigas dos mortos na ação do Estado, cujo governador Cláudio de Castro “coincidentemente” se reuniu com Jair Bolsonaro um dia antes de autorizar a operação. Essas mesmas mulheres – a maioria mulheres negras – aparecem na linha de frente no protesto de moradores e não moradores contra o massacre. Essas mesmas mulheres são as que cantam louvores e batem palmas, em um grande círculo, com uma faixa “Contra o genocídio, rebelar-se é justo” e palavras de fé – outro vídeo que correu o mundo.

E são as mesmas mulheres atacadas nas redes, xingadas de “marmitas de bandido”, “vagabundas”, “piranhas”, agressões que transbordam misoginia e machismo. Mas elas que não se abatem. Como bem lembrou Lélia Gonzalez, “no período que imediatamente se sucedeu à abolição, nos primeiros tempos de ‘cidadãos iguais perante a lei’, coube à mulher negra arcar com a posição de viga mestra de sua comunidade”. A mulher negra pós-abolição foi o “sustento moral e a subsistência dos demais membros da família”. A mulher negra foi, desde sempre, obrigada a ser forte, a proteger, a salvaguardar, a brigar pelos seus. Está na herança cultural e psíquica dessa mulher.

28 flores para 28 dores, por Francisco Daniel

No livro Por um Feminismo Afro-LatinoAamericano – Ensaios, Intervenções e Diálogos, organizado por Flavia Rios e Márcia Lima, com textos que Lélia Gonzalez escreveu entre 1975 e a primeira metade dos anos 90, a intelectual comunista negra lembra que um dos mecanismos mais cruéis da situação do negro brasileiro se concretiza na sistemática perseguição, opressão e violência policiais contra ele. Cenário que perdura ainda hoje. O nome disso é racismo. Lélia dizia que de acordo com a visão dos policiais brasileiros, “todo negro é marginal até prova em contrário”.

No livro Mulheres, Raça e Classe, outra intelectual comunista negra, a estadunidense Angela Davis destaca que “em um país onde mulheres são humilhadas e agredidas, e onde seus corpos expostos sangram sob o açoite, onde elas são vendidas em matadouros pelos ‘comerciantes de negros’ (…) é muito natural que as mulheres desejem saber por que isso acontece”. Davis transcreveu a declaração da abolicionista Angelina Grimké, escrita em 1837, época em que as mulheres já questionavam a escravidão e todo o sofrimento a que eram submetidas.

Sofrimento que permanece. Tão bem ilustrado pelas reflexões de Lélia Gonzalez: “qual a mulher negra que não passou pela experiência de ver o filho, o irmão, o companheiro, o namorado, o amigo etc. passarem pela humilhação da suspeição policial?” A precursora do feminismo negro no Brasil se referia às mulheres negras do período entre 1973 e início dos anos 90. Mas já antecipava o sofrimento e a luta das mulheres do Jacarezinho. “O feminismo negro possui sua diferença específica: a solidariedade, fundada numa experiência histórica comum”, definiu. As mulheres do Jacarezinho aprenderam com a história a andarem juntas e serem fortes. Não deixarão que o massacre do Jacarezinho seja esquecido.

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