A escuta atenta e solidária: leitura dos acordos de paz da Colômbia

Na Colômbia, a vitória tem sido dos setores que dizem não ao diálogo e à paz. Quem governa a Colômbia em convulsão de hoje é quem foi contra os acordos de paz com as Farcs.

A luta por uma Colômbia sem paramilitares e guerrilheiros envolve mães que perderam seus filhos para os conflitos.
Liza Acevedo Saenz – Foto: Arquivo pessoal

Porque não haverá paz, me disse Marleny em 16 de abril de 2016 enquanto conversávamos na casa dela. Marleny é a mãe de Henry, que desapareceu em Medellín, Colômbia, em 2 de junho de 2002. Naquele dia sabíamos das negociações entre o governo nacional e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (Farc-EP) e da criação de um Sistema de Verdade, Justiça, Reparação e Não Repetição (SVJRNR), que incluía uma série de entidades judiciais e extrajudiciais preocupadas com as necessidades das vítimas. Entretanto, naquela época, não sabíamos que os acordos teriam que ser aprovados por um plebiscito popular que explicitaria a posição de vários setores da sociedade. O presente texto é um primeiro desdobramento da minha tese de doutorado, que busca se aproximar das experiências cotidianas de mulheres parentes de pessoas desaparecidas por meio da criação de filmes etnográficos. Esses filmes possibilitam trocas sensíveis entre mulheres vítimas do conflito armado da Colômbia e setores da população que não são vítimas diretas, mas que vivem com seus impactos.

Em 2 de outubro de 2016, os colombianos tiveram que votar “sim” ou “não” à pergunta “Você apoia o acordo final para o fim do conflito e a construção de uma paz estável e duradoura?”. Naquele dia, eu tinha que ser mesária na votação do plebiscito. Compareci ao lugar correspondente das 7h às 18h e dividi mesa com professores de instituições públicas de ensino da cidade. Lembro que todos nós íamos votar “sim” e que esperávamos que a maioria dos colombianos também o fizesse. Às 16h a votação foi encerrada. Em nossa mesa, começamos a verificar o número de eleitores com o número de votos. Tudo coincidiu. Mais tarde, começamos a contar os votos para “sim” e “não”. Por protocolo, tínhamos que contar duas vezes no mínimo. Na primeira vez que contamos, o “não” ganhou e ouvimos dizer que as mesas vizinhas tiveram o mesmo resultado. Na segunda vez, confirmamos o resultado. Em nossa mesa e no local de votação o “não” ganhou. Todos nós começamos a olhar para nossos celulares esperando notícias de outras regiões do país, os boletins pareciam não mudar, o “não” estava vencendo.

Terminei de registrar os votos e fui a uma reunião preestabelecida com organizações de vítimas e defensores dos direitos humanos na cidade. Cheguei ao local para acompanhar a apuração de votos e os resultados finais que colocavam o “não” como vencedor: “sim” 49,78% – “não” 50,21%. Quer dizer, a maioria da população da Colômbia se manifestou contra o acordo final para o fim do conflito. O “não” ganhou nos principais centros urbanos, mas na periferia da Colômbia, onde vive a maioria das vítimas do confronto entre as Farc-EP e o governo nacional, a vitória do “sim” foi arrasadora. Em Bojayá, por exemplo, um município que foi vítima de um dos massacres mais dolorosos do país, que apagou a vida de aproximadamente 100 pessoas em 2 de maio de 2002, o “sim” ganhou com 98% dos votos.

Antes do plebiscito, o governo e as Farc-EP não tinham apresentado um plano de ação caso ganhasse o “não”. Havia especulações de que os confrontos poderiam voltar ou que teriam que se reunir novamente para renegociar o que havia sido acordado durante quatro anos de negociações. Às oito horas da noite do dia da votação, o então presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, e o delegado das Farc-EP, Timochenko, saíram para ratificar seu compromisso de pôr fim aos confrontos entre as duas partes, estabelecendo que renegociariam parágrafos específicos com os representantes do “não”. Em novembro de 2016, ambas as partes assinaram um documento com modificações que incluíam a redução das menções do enfoque de gênero no acordo (de 144 a 55), uma mudança nos parâmetros para atribuir uma verba ao partido político das Farc, a não inclusão dos acordos de paz na carta constitucional, entre outras. O novo acordo não foi novamente submetido a votação popular, agora o desafio era sua implementação nos anos seguintes. Em 2018, Ivan Duque assumiu a presidência da Colômbia: ele é membro do partido político que liderou a campanha do “não” durante o plebiscito. Além dos desafios burocráticos e práticos dos acordos, estava a pouca vontade política por parte do governo nacional para sua implementação.

Já se passaram cinco anos desde o plebiscito e três anos da eleição de Ivan Duque como presidente da Colômbia. As palavras de Marleny, “porque não haverá paz”, ressoam hoje como uma premonição dos tempos presentes e dos futuros. Embora todas as entidades pertencentes à SVJRNR tenham sido criadas: a Comissão da Verdade, a Justiça Especial pela Paz (JEP) e a Unidade de Busca de Pessoas dadas por Desaparecidas (UBPD); seus tempos de funcionamento, recursos e apoio foram e continuam a ser limitados. Mais de 250 ex-combatentes das Farc que assinaram os acordos de paz foram assassinados. Vários ex-combatentes pegaram as armas outra vez, e aqueles que permanecem comprometidos com a paz estão constantemente chamando a atenção para a falta de garantias para sua reintegração social, política e econômica. Segundo o Instituto de Estudios para el Desarrollo y la Paz Indepaz, de novembro de 2016 até 30 de janeiro deste ano, 1.134 líderes sociais e ambientais foram assassinados e ainda não foi estabelecido um registro único de pessoas desaparecidas durante o conflito armado na Colômbia; presume-se que o número total seja 80 mil pessoas.

Quando Marleny disse para mim “não haverá paz”, ela estava se referindo aos acordos feitos por apenas dois atores de um conflito armado que teve uma duração de mais de cinquenta anos. Quando falamos no singular de “conflito armado” estamos nos referindo a uma pluralidade de problemas sociais, econômicos e políticos que levaram a um confronto armado de diferentes atores, tanto legais quanto ilegais, e tanto de direita quanto de esquerda. Em meio a esse confronto está a população como testemunha e/ou vítima de múltiplas ações violentas. De acordo com o relatório ¡Basta ya!, do Centro Nacional de Memória Histórica da Colômbia, para cada combatente morto, quatro civis morreram como resultado do conflito armado. Pensar em uma paz “estável e duradoura” requer a participação direta daqueles que foram e são afetados pelo conflito armado e, além disso, a escuta atenta e solidária daqueles que foram e são testemunhas das ações violentas. Em 2016, a escuta falhou. Hoje, cinco anos depois e diante de um cenário pouco animador devido aos contratempos sofridos pela implementação dos acordos, esta escuta é necessária, até mesmo vital.

Marleny é vítima do conflito armado, seu filho desaparecido faz parte das estatísticas difusas do desaparecimento forçado na Colômbia. Mesmo que diga que “não haverá paz”, ela continua lutando por um país que não tenha pessoas desaparecidas e pela memória de seu filho. Antes da pandemia, Marleny estava em todas as manifestações, em todos os encontros de vítimas, em todas as reuniões convocadas pelas entidades do SVJRNR. Atualmente, e pela sua idade que supera os setenta anos, Marleny não consegue participar das ações públicas convocadas pelas organizações de vítimas. Porém, continua em contato com outros parentes de pessoas desaparecidas e, em datas especiais, ela coloca a fotografia de seu filho na entrada de sua casa e a ilumina com velas, levando, dessa forma, a memória dele às vidas de seus vizinhos. Marleny pensa na paz além de um fim em si, é um caminho que exige de todos: dos atores armados, dos políticos, do setor privado, das vítimas, das testemunhas, de uma sociedade disposta a ouvir e aprender com aqueles que caminharam apesar dos “nãos” que tentaram evitá-los. A paz é uma utopia que serve para caminhar.

Liza Acevedo Saenz é doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Do Jornal da USP