Mentira sobre diverticulite de Tancredo completa 36 anos

Circo midiático que cercou a internação à véspera da posse, as seguidas operações e a morte do presidente eleito nunca foi desfeito

Tancredo Neves posa para o fotógrafo Gervásio Baptista ao lado dos médicos no dia 25 de março de 1985

Homero Gottardello, jornalista

No dia 15 de março de 1985, o país foi acordado com a notícia de que Tancredo Neves, eleito pelo Colégio Eleitoral apenas dois meses antes, não tomaria posse na Presidência da República. A tão sonhada abertura virava um pesadelo, ou melhor, um calvário que se estendeu até de 21 de abril daquele mesmo ano.

Mais que vítima de um diagnóstico completamente equivocado (de apendicite aguda), de uma promessa vil (de tomar posse 24 horas após a cirurgia) e de um verdadeiro circo midiático (a primeira nota oficial sobre sua internação, na noite do dia 14, fez com que um batalhão de bêbados deixasse as festas que antecediam a posse e acorresse para o Hospital de Base de Brasília), Tancredo foi sacrificado por uma mentira. Desde os primeiros minutos do pós-operatório, até o dia escolhido para sua morte, o que lhe restava da existência foi sendo carcomido, corroído, arruinado pelo capricho daqueles em que mais confiou.

“A imprensa não percebeu que a gravidade era muito maior daquilo que aparentava”, disse o então secretário de imprensa de Tancredo, Antônio Britto, em entrevista para o programa “Observatório da Imprensa”, da TVE, em 2010. “Tudo foi fruto da escolha de uma técnica errada, na primeira operação”, assegurou Luis Mir, autor do livro “O Paciente – O Caso Tancredo Neves”, em entrevista para o programa “SP Agora”, também em 2010. “É dito a ele que se tratava de uma cirurgia banal, rápida e que ele poderia tomar posse no dia seguinte. É, talvez, o mais grave. Uma mentira bem-intencionada para tranquilizar o paciente, mas fizeram um pré-operatório desastroso, uma cirurgia desnecessária e não avaliaram o que estava acontecendo”.

Para Mir e para os especialistas que ouviu, a vaidade foi o maior pecado de todos. Pior, o caso sustenta uma mentira há exatos 36 anos, a farsa de que Tancredo morreu de complicações advindas de uma diverticulite, quando, na verdade, ele jamais apresentou tal quadro. Na primeira cirurgia a que se submeteu às pressas, na véspera de sua posse como presidente da República, não foi extraído um divertículo (de Meckel) intestinal, mas um leiomioma, um tumor benigno – como atesta cópia do Laudo de Biópsia da Fundação Hospitalar do Distrito Federal, de 19 de abril, portanto, quatro dias após o procedimento, assinado pelo Dr. Holio Liniziara e pela Dra. Waldete C. Moraes.

Ao que tudo indica, a mentira foi gestada no decorrer da própria cirurgia, que começou à 1h10, sob o diagnóstico de apendicite aguda, e terminou às 2h45. A intervenção levou uma plateia de 25 pessoas para dentro da sala de operações, por onde passaram pelo menos 19 “convidados”, entre parentes, políticos e amigos. Com a mesa cirúrgica transformada em picadeiro, o circo teve momentos de comemoração, como aquele em que o cirurgião-chefe, Pinheiro da Rocha, anunciou que se tratava de um “divertículo de Meckel”, levando todos a se abraçarem em comemoração. Houve até mesmo um elemento de suspense, quando o cirurgião Gustavo Ribeiro, um dos convidados da “festa”, notou que o suposto divertículo extraído era, na verdade, um tumor intestinal, alertando Rocha.

Primeiro boletim médico, datado na madrugada do dia da posse: diagnóstico mentiroso

Espetáculo e troféu
Ao final do espetáculo, o material extraído de Tancredo, que seria confirmado como um leiomioma, foi exibido para os familiares, como um troféu. A “conquista”, aliás, fez com que Pinheiro da Rocha deixasse a sala de operações antes do fim do tempo regulamentar, porque a imprensa e os caciques políticos da época o aguardavam com a “taça” – ele nega ter deixado o recinto, mas a informação é confirmada pelos primeiro e segundo cirurgiões auxiliares, Aluísio Franca e Felipe Nery.

O que nem ele e nem ninguém poderia imaginar é que nos minutos que se seguiram à “volta olímpica” do cirurgião, quando Franca e Nery ainda fechavam a parede abdominal de Tancredo e lhe retiraram a ventilação mecânica, o presidente teria um edema pulmonar.

Entre 3h30 e 5h15, Tancredo lutou contra dificuldades respiratórias, quadros de taquicardia e hipertensão graves. “Foram horas dramáticas”, enfatiza Mir em seu livro. O corre-corre para salvá-lo só terminou com o dia amanhecendo e, já certos de que a massa extraída do abdômen do paciente era um câncer, médicos e família optaram pela mentira. A farsa, que consistia em esconder o tumor e forjar um laudo de diverticulite, fica evidente no conflito entre o primeiro boletim pós-operatório (datado da madrugada do dia 15, às 4h02), que afirma que “o ato cirúrgico transcorreu sem anormalidades” e o relatório médico, o prontuário de Tancredo: “O paciente, após o término da cirurgia, não conseguiu respirar espontaneamente”.

A família, em especial a esposa do presidente eleito, Risoleta Neves, foi quem pediu para os médicos não mencionarem o tumor, enquanto o filho, Tancredo Augusto, deixou a escolha para os cirurgiões. O neto, Aécio Neves, então com 25 anos, dá tom oficial à pantomima e, na manhã subsequente à intervenção, fala à imprensa: “Diagnóstico: Divertículo de ‘Beckel’ – o correto seria diverticulite de Meckel. Sem o menor problema, o presidente passa bem, a cirurgia foi um êxito e o Brasil pode suspirar – provavelmente, Aécio queria dizer respirar – aliviado. O presidente Tancredo Neves deve tomar posse, amanhã, na Presidência do Brasil”.

Se Aécio já sabia que Tancredo não tomaria posse, só mesmo ele pode responder. Talvez ainda não tivesse o entendimento de que o avô nunca seria empossado, mas, naquele momento, aderiu à impostura, à fraude. Pior, o presidente eleito seria submetido a outras cirurgias, sem apresentar melhora. No capítulo mais degradante do embuste, escrito dez dias após a malfadada primeira intervenção e apenas cinco dias após a segunda, a vaidade cobrou um preço caríssimo – ou, se o leitor preferir, impagável. Menos de quatro horas após a veiculação de uma foto mentirosa, em que o paciente é clicado pelo falecido fotógrafo Gervásio Baptista ao lado de uma junta média e da esposa, sorridente que só ela, ele tem uma hemorragia irreversível.

Prova incontestável: Laudo de Biopsia revela “leiomioma, pediculado, de intestino delgado”

Situação gravíssima
Instantes antes de posar para aquela foto demoníaca, Tancredo passara por uma retossigmoidoscopia e a echarpe que usou, dando um tom parisiense à imagem, na verdade escondia um cateter. No mesmo instante em que a imagem ganhava as manchetes, prometendo sua posse para breve, ele apresentava um quadro de 40% de perda sanguínea.

Não bastasse a situação gravíssima em que o político se encontrava, a veiculação de mentiras seguia o tom maquiavélico: “Foram tiradas novas radiografias do pulmão e as notícias, segundo o professor-doutor Álvaro de Magalhães, diretor do departamento de radiologia do Hospital das Clínicas, são muito boas. No pulmão direito, a melhora foi tão acentuada que o professor chega a dizer que seu estado é normal. Com isso, o presidente passa, cada vez mais, a respirar por seus próprios recursos”, disse Britto, em boletim oficial transmitido em cadeia nacional de televisão, no dia 4 de abril.

A data marca uma espécie de meio do caminho entre a primeira cirurgia, na madrugada de 15 de março, e o óbito, em 21 de abril. Mais do que isso, ela marca as primeiras punções de abscessos intra-abdominais. Tancredo não está melhorando, mas, sim, morrendo – cinco dias depois, ele já era um paciente terminal. O final desta história, cujos capítulos macabros se sucederam por mais um mês, todos sabem, mas uma pergunta ainda não foi respondida: por que Aécio, Dona Risoleta e a família compactuaram com a desonra? Por que sacrificaram Tancredo por uma mentira?

Tancredo posou também ao lado de sua mulher, Risoleta, e da equipe médica – Foto de Gervásio Baptista

“Não merecia”
“Se eu tivesse conhecimento – conhecimento que a família tinha – das condições em que ele se encontrava, eu teria indagado a Dona Risoleta sobre a situação do presidente”, declarou Britto. “Era preciso avisar o país, por mais que o Brasil quisesse que tudo desse certo, mas eu não podia afrontar a família”, acrescentou. Uma nota oficial, divulgada pelo Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF), em 26 de fevereiro de 1986, confirmou que “os boletins médicos, ao mesmo tempo que não refletiam a realidade, geraram a desconfiança que estimulou o florescimento de informação paralela”.

Já as conclusões da Comissão de Sindicância do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP), veiculadas na mesma data, inocentam a família, trazendo que o “diagnóstico foi de ‘leiomioma pediculado do intestino delgado com microabscessos’, não tendo ocorrido solicitação, nem dos familiares, nem das autoridades, para fornecimento de laudo em contrário”.

Como se pode ver, é mais uma mentira sem agente, uma lorota sem autor, um engodo que se materializa no ar. E, parafraseando aquela que, no seu último instante de lucidez, teria sido a expressão derradeira de Tancredo, ele, realmente, “não merecia isso”.