STF encerra audiência pública sobre operações policiais no Rio

Corte ouviu entidades e representante da PM do Rio, que elogiou decisão de restringir operações policiais em favelas. Especialistas e entidades sociais questionam eficácia das operações.

Ministro Edson Fachin - Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou hoje (19) dois dias de audiência pública para debater a decisão da Corte que restringiu a realização de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante o período da pandemia de covid-19. 

No ano passado, o STF validou a decisão individual do ministro Edson Fachin que estabelece as balizas, com o objetivo de evitar mortes de moradores das comunidades durante confrontos entre policiais e criminosos.

Pela decisão, as operações poderão ser deflagradas somente em casos excepcionais. A polícia ainda deverá justificar as medidas por escrito e comunicá-las ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, órgão responsável pelo controle externo da atividade policial.

Na sexta-feira (16), a Corte ouviu diversas entidades que atuam em defesa dos moradores de comunidades e integrantes do movimento negro. Elas afirmaram que a medida do STF diminuiu as mortes de moradores. 

Hoje, além de outras entidades, o tribunal também ouviu o representante da Polícia Militar do Rio de Janeiro, major Ivan Souza Blaz. Segundo Blaz, a decisão do ministro Fachin restringindo as operações melhorou a comunicação da corporação com o Ministério Público. 

Ele também destacou a diferença entre operações policiais e policiamento atacado, que ocorre quando as viaturas são alvo de tiros durante o patrulhamento rotineiro. 

“Nunca antes tivemos sinergia com o Ministério Público. Hoje, as operações são imediatamente comunicadas ao Ministério Público, como prevê a decisão. O MP tem acesso ao aplicativo desenvolvido pela Polícia Militar, que acompanha on time a realização dessas operações. O MP recebe todo o extrato das operações, o que foi feito e o que foi realizado”, explicou.

Ao término da audiência, o ministro Edson Fachin disse que ficou clara a letalidade da polícia durante os confrontos. O ministro também afirmou que a “violência tem cor” ao se referir aos moradores das comunidades e policiais que foram mortos. 

“A audiência deixou nítida a gravidade da letalidade policial no estado de Rio de Janeiro. Crianças inocentes sendo vitimadas, número inaceitável de mortes como resultado do confronto com policiais e ineficiência da investigação dessas fatalidades”, afirmou. 

Crime organizado

O primeiro integrante das forças policiais a se manifestar na audiência foi o coordenador de Comunicação Social da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), major Ivan Blaz. Ele destacou que é preciso considerar e diferenciar que existem operações policiais e policiamento atacado, citando confronto ocorrido na manhã de hoje na comunidade de Manguinhos (RJ). “A grande quantidade de armas nas mãos de criminosos permite que essas ações sejam feitas. PMs são atacados por criminosos rotineiramente”, disse.

Segundo o major Blaz, armas de guerra entram com facilidade pelas fronteiras e chegam às comunidades, onde o crime assedia facilmente “uma juventude ociosa, em sua maioria composta por pessoas pretas e pardas”. Ele afirmou que o debate em torno da letalidade policial não pode ignorar a existência dessa realidade, para não desacreditar as forças de segurança diante da população, e que a PM deve ser um ente participativo na construção de uma nova forma de gerir a segurança pública.

Ao responder questão sobre o conceito de excepcionalidade usado para realizar incursões nas comunidades e por que houve um aumento dessas operações a partir de outubro de 2020, em período já abrangido pela liminar do STF que restringe essas operações, Ivan Blaz explicou que a PM atua em ações emergenciais e preventivas de combate ao crime.

As emergenciais exigem a entrada da polícia nas comunidades, como a busca por vítimas de crimes que são levadas para dentro das favelas; denúncias pelo 190 de casos de violência doméstica, que aumentaram em 70% durante a pandemia e que são atendidos pela Patrulha Maria da Penha; e denúncias de próprios moradores de casos de tortura e morte dentro das comunidades.

Sobre as ações preventivas, ele explicou que elas passam por um planejamento do setor de inteligência para coibir ações expansionistas de grupos criminosos.

Afirmou ainda que em 2020 foram 375 operações realizadas e em 2021 houve 160 incursões e que todas foram comunicadas ao Ministério Público no exato momento em que ocorreram. Quanto aos números, afirmou que há discrepância entre os dados apontados pelos pesquisadores e os do Instituto de Segurança Pública.

O coronel da PM Carlos Alberto de Araújo Gomes Júnior afirmou que é temerário abordar o tema apenas pelo ponto de vista do controle externo, que não faz justiça ao esforço dos policiais que se arriscam diariamente. Representando a Federação Nacional de Entidades de Oficiais Estaduais (Feneme), ele disse que privar o cidadão da atuação das forças polícia também fere direitos constitucionais e mina a confiança da população em suas forças de segurança.

O militar afirmou que armas, drogas e lavagem de dinheiro não são produzidas nas comunidades e que a competência para combatê-las é federal. Defendeu rigidez na apuração em ações relacionadas a desvios de conduta de policiais e o aumento da segurança daqueles que trabalham seguindo os protocolos, além do fortalecimento das corregedorias. “Acreditamos que uma única morte em operação policial deve ser estudada à exaustão, mas não há saída para esse problema sem a participação da polícia como protagonista”.

Além de uma política de segurança pública voltada ao respeito dos direitos fundamentais, representantes de corporações policiais também defenderam investimento em logística aplicada, com mapeamento dos índices de criminalidade, para a questão debatida na audiência.

Para Heder Martins de Oliveira, da Associação Nacional de Praças Policiais e Bombeiros Militares Estaduais, entender o lado policial também é importante para se chegar a uma solução, “mas enquanto não tivermos uma política de segurança pública não veremos luz no fim do túnel”.

Ainda segundo Heder Martins, quando o STF tem que agir para cuidar de uma questão que é de Estado, significa que este mesmo Estado falhou. “O que precisamos, de fato, é que tenhamos uma política de segurança pública com respeito da cidadania, respeito da dignidade e dos valores da pessoa humana”, afirmou.

Segundo Jayr Ribeiro Junior, da Associação de Praças da PM do Paraná, o aparato do Estado de forma rígida e opressora não é suficiente. “Precisamos da atuação efetiva por parte do Estado, ou seja, uma política social que possa proporcionar oportunidades para todos, com a garantia dos direitos fundamentais” disse. De acordo com ele, sem investimento e logística aplicada, com mapeamento dos índices de criminalidade, não é possível uma intervenção policial “porque as consequências serão terríveis”.

Elias Miler da Silva, representante da associação, fez questão de destacar a história de policiais que também são vítimas nas operações e afirmou que o principal problema do Brasil é a corrupção, “mãe de todos os outros crimes”. Ele destacou, ainda, os custos econômicos e sociais da criminalidade e afirmou que o Brasil é o primeiro país do mundo em mortes de policiais, com cerca de 500 por ano.

Eficácia de operações em favelas

No segundo e último dia da audiência pública sobre letalidade policial no Estado do Rio de Janeiro, professores, advogados, pesquisadores, antropólogos e representantes de movimentos sociais questionaram, na manhã desta segunda-feira (20), a eficácia das operações policiais nas favelas e fizeram sugestões para resolver o problema.

Os debates ocorrem no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635. Em agosto do ano passado, o Plenário referendou liminar para determinar que as operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro, enquanto durar a pandemia da Covid-19, devem ser restritas a casos excepcionais e informadas e acompanhadas pelo Ministério Público estadual (MP-RJ).

Primeiro a falar nesta segunda-feira, o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Daniel Hirata afirmou que as ações na área de segurança pública no Rio de Janeiro, baseadas em operações policiais, são parte do problema porque ocorrem ao revés das políticas públicas elaboradas com base em dados e evidências. Segundo ele, 99,2% dos inquéritos abertos contra policiais acusados de mortes são arquivados a pedido do Ministério Público.

Graduada em Ciências Sociais pela UFF, a professora Jacqueline Muniz ressaltou que as operações policiais acontecem sem coordenação e articulação, resultando em uma “polícia de ostentação”, no lugar da “polícia ostensiva”; em uma “polícia de espetáculo”, no lugar da “polícia rotineira”.

O professor Desmond Arias, pesquisador na área de segurança e política na América Latina e Caribe, disse que o Rio de Janeiro detém um número de “importância global” de homicídios cometidos por policiais, parecido com países como Jamaica e El Salvador. Ele ressaltou que a existência de milícias contribui para agravar o problema e que há uma “estreita relação” entre esses grupos e a polícia.

Pablo Nunes, coordenador adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), no Rio de Janeiro, afirmou que as ações policiais no estado não são monitoradas pelo Instituto de Segurança Pública (ISP). Por isso, a seu ver, os resultados e efeitos dessas operações são difíceis de ser contabilizados e monitorados.

Yanilda Gonzales, da Harvard Kennedy School (Estados Unidos) ressaltou que a polícia do Rio de Janeiro se distingue como uma das mais letais do mundo, que assassina mais pessoas que as 18 mil forças policiais dos EUA. Segundo ela, a criação de um plano de monitoramento de redução da letalidade policial no estado, fiscalizado pelo STF, é fundamental.

O antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública, ressaltou que a brutalidade policial no Brasil tem raízes históricas. Para ele, especialmente no Rio de Janeiro, as ações das instituições da área de segurança pública são refratárias à Constituição e aos direitos humanos. Frisou que, no Rio, existe uma “geopolítica devastadora” imposta pelas milícias.

O pesquisador Felipe da Silva Freitas afirmou que o modelo de policiamento brasileiro está baseado no flagrante, prioriza o confronto, numa ótica de guerra, e não vem dando resultados efetivos. Segundo ele, muitas vezes os policiais são as únicas testemunhas ouvidas no processo. A seu ver, é preciso enfrentar o tema da seletividade racial em relação às abordagens policiais e à presunção de autoria.

Gabriel Feltran, da Associação Brasileira de Antropologia, defendeu o controle externo da atuação da polícia, destacando que hoje há 3,5 mil fuzis em posse das facções criminosas no Rio de Janeiro e que as milícias dominam 57,5% do território do estado. Também representando a entidade, Roberto Efrem Filho frisou a importância da publicização das práticas policiais, com o nome na farda e a documentação fotográfica da perícia e da necropsia.

O professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Michel Misse afirmou que as operações policiais no estado são realizadas para reprimir a atividade de venda de drogas a varejo, produzindo muitas mortes entre moradores, traficantes ou não, e entre policiais. Segundo ele, há uma “guerra particular” dessas forças sem comparação ao que ocorre em cidades brasileiras e do mundo.

Em sua apresentação, Siddharta Legale, da Clínica Interamericana de Direitos Humanos da UFRJ, solicitou que o Supremo cobre da Defensoria Pública o envio de mais casos de violência policial para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Já o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Daniel Sarmento frisou que a situação de descumprimento da decisão da ADPF 365 se agravou. Segundo ele, o decreto do governo fluminense que instituiu o plano de segurança pública, de dezembro de 2020, não aborda a letalidade policial.

Na avaliação da professora Juliana Farias, do Núcleo de Pesquisas Urbanas da UERJ, o governo do Rio de Janeiro dribla a determinação da CIDH para estabelecer metas da redução da letalidade policial com uma estrutura burocrática que impede a investigação de crimes cometidos por policiais. “Não haverá redução da letalidade policial se continuarem enxergando negros e moradores de favelas como inimigos”, ponderou.

Para o professor Maurício Stegemann Dieter, do Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), a qual prevê que o fato de se restringir a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação, deve ser declarada inconstitucional.

Na sequência, a presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Marina Coelho Araújo, sugeriu medidas para reduzir a violência policial, como a criação de um canal de denúncias que tenha credibilidade, o respeito à inviolabilidade do domicílio e a proibição de operações policiais próximas das escolas.

O deputado estadual Waldeck Carneiro (PT-RJ) afirmou que é preciso desenvolver propostas concretas e efetivas para a elaboração de um plano estadual de combate à violência. Na sua avaliação, é preciso considerar o grande potencial criativo e empreendedor dessas comunidades, que demonstraram durante a pandemia a existência de uma rede de solidariedade para suprir a ausência do poder público.

Para Gabriel de Carvalho Sampaio, da Conectas Direitos Humanos, existe uma desvalorização da vida e dos domicílios das pessoas negras, o que considera parte de um legado das elites escravocratas na formação da nação. Além disso, para ele, faltam respostas na apuração de crimes violentos, que “muitas vezes se dão por uma arquitetura normativa que precisa ser reavaliada, como a falta da perícia independente e do controle interno e externo”.

Representando o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Hugo Leonardo questionou algumas abordagens policiais, como as que se dão pelo alto, por helicópteros blindados, diante da complexidade de avaliar se são respeitados, por exemplo, os artigos 240 e 244 do Código do Processo Penal (CPP), que tratam de busca domiciliar e pessoal.

As representantes do Fórum de Manguinhos (RJ) Ariana Kelly dos Santos e Rachel Barros de Oliveira reforçaram que proteger a vida é função do Estado. Ariana apresentou dados da ONG Justiça Global, os quais apontam que, logo após a liminar da ADPF 635, houve redução de 70% no número de mortos e 50% no de feridos por tiroteio nas favelas do Rio.

Rachel denunciou que a determinação feita pela ADPF 635 é “cotidianamente desrespeitada” e pediu que, por não haver um trabalho de investigação das ações policiais, as falas dos moradores das favelas não sejam desqualificadas. Ela ainda afirmou que os dados da saúde são valiosos para mensurar os efeitos da violência e da letalidade policial.

Transparência e acesso a dados

Pesquisadores e especialistas em questões de segurança pública e seus impactos sobre a sociedade expuseram seus pontos de vista na audiência pública sobre letalidade policial realizada no Supremo Tribunal. Eles abordaram questões como a dificuldade de acesso a dados e sua importância para o gerenciamento e o aperfeiçoamento da atividade policial. Aspectos raciais e sociais também foram tratados nas exposições.

Para Isabel Pereira, do Iser, a letalidade policial é um problema complexo, cuja solução requer inúmeros esforços coletivos. Ela ressaltou que as operações policiais nas favelas geram um cenário de revitimização das famílias, que, por vezes, perdem mais de um membro.

Ela observou, ainda, que a violência gerada pela atuação policial também atinge a saúde das vítimas: muitas passam a relatar ansiedade, síndrome do pânico e até diabetes em razão do cenário de medo constante.

Deise Benedito, especialista em Relações Étnico Raciais e mestre em Direito e Criminologia, afirmou que os territórios são constituídos pela maioria da população negra, em que a única presença do Estado assegurada é a da polícia. Segundo ela, o impacto das mortes de crianças e jovens negros é um prejuízo imenso para a sociedade brasileira. Por isso, defende o controle externo da atividade policial e o aperfeiçoamento e o fortalecimento das polícias, como forma de garantir a dignidade dos trabalhadores da segurança pública.

A especialista também defendeu a necessidade de aprimoramento das ferramentas utilizadas para reconhecimento facial, uma vez que os direitos mais atingidos nesse método são da população negra, por haver uma discriminação algorítmica. Por fim, ela defendeu a permanência da audiência de custódia presencial, medida que considera um dos instrumentos mais eficazes para evitar tortura nas prisões.

Heloisa Fernandes Câmara, do Centro de Estudos da Constituição da Universidade Federal do Paraná, ressaltou que a segurança pública, sem respeito aos direitos, “é um arbítrio pago com dinheiro público”. Segundo ela, não é possível falar do controle do uso da força sem dados sobre as operações, sobre os resultados e sobre a letalidade que não são facilmente acessíveis.

Nesse contexto, ela defende a obrigação estatal de transparência com o status dos inquéritos policiais, principalmente diante do grande número de arquivamentos. Os dados, segundo ela, devem conter, obrigatoriamente, informações sobre gênero, raça, local e circunstâncias.

Adriana de Resende Barreto Vianna, do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento – Laced/MN/UFRJ, disse que, na periferia, a morte se mescla com a banalidade da vida cotidiana. Ela citou relatório segundo o qual os números cresceram 313%, passando progressivamente de 398, em 2013, para 1.643, em 2019.

Conforme afirmou, as operações definidas como excepcionais se tornaram rotineiras e ameaçam gravemente os moradores como “prática contínua de terror”. Ela defende que seja observada a obrigatoriedade de ambulâncias nas comunidades durante a realização de operações policiais.

Sandro Cabral, do Insper, disse que é preciso convencer as autoridades de segurança pública que registrar dados também serve para aprimorar a gestão, e não, necessariamente, para ter controle das ações. “Uma vez que sejam bem registrados, os dados podem ser bem utilizados por pesquisadores, e a própria polícia poderá fazer gerenciamento com base em evidências”, defendeu.

Em sua opinião, quanto maior a transparência, maior será o resultado para a população, tanto que casos que são cobertos pela imprensa tendem a ter menor impunidade.

Pedro Hartung, representante do Instituto Alana, afirmou que os direitos de crianças e adolescentes, principais vítimas do uso inadequado da força em operações policiais, devem ser prioridade absoluta na segurança pública. Segundo ele, de 2017 a 2019, 2215 deles perderam a vida em decorrência dessas intervenções, e o Estado do Rio de Janeiro responde por 40% dos casos.

Ele lembrou, também, o impacto, na educação e na evolução cognitiva, da perda de dias letivos em razão da interrupção de aulas nos dias de operações na comunidade. Hartung considera necessário adotar medidas como o mapeamento georreferenciado de áreas com alta concentração de crianças, diminuição do uso ostensivo de armas em áreas sensíveis, adoção de protocolos de segurança para escolas e alunos e uso de tecnologia como câmeras e GPS para efetuar um policiamento mais seguro.

Sandra Elias de Carvalho, coordenadora-geral do Instituto Justiça Global, afirmou que a guerra às drogas é o argumento central para a adoção de uma política de segurança pública altamente militarizada e com uso de equipamentos de guerra. Segundo ela, o discurso das autoridades públicas sobre o tema tem sido uma estratégia para legitimar uma política de enfrentamento e confronto que tem resultado em um número alarmante de mortes. Para ela, a proposta de segurança pública do RJ “evidenciou a ocorrência de ações de extermínio por parte do Estado, sem a devida apuração”.

Representando a mesma instituição, Monique Cruz disse que o governo do RJ, alegando que a situação é excepcional, está descumprindo a liminar do STF na ADPF 635. Afirmou, ainda, que o Ministério Público estadual desmontou um bem sucedido grupo de controle da atividade externa das polícias para fazer o controle difuso, por meio do promotor de cada caso. Segundo ela, sem um órgão específico para essa finalidade, não haverá avanço.

O advogado criminalista Elizeu Lopes, chefe da Ouvidoria da Polícia Militar do Estado de São Paulo, propôs o controle da atividade policial por meio de diversas medidas, entre elas o videomonitoramento. Segundo ele, a medida protege cidadãos e policiais e, nos países onde foi implementado o uso de câmeras corporais, houve redução das reclamações contra policiais.

Além do uso de tecnologias, ele considera necessária a capacitação dos policiais em direitos humanos, com enfoque em questões étnico-raciais e de diversidade, para que esses profissionais possam compreender a natureza da formação do Estado brasileiro. Propôs, ainda, a realização de cursos de atualização em abordagens policiais, o incremento de ações de inteligência e planejamento e a utilização de equipamentos alternativos às armas de fogo.

Controle social sobre polícias

O primeiro bloco de expositores da tarde desta segunda-feira, na audiência pública sobre letalidade policial, reuniu representantes de organizações não governamentais e instituições voltadas para a defesa dos Direitos Humanos. Um dos pontos em comum nas exposições foi a necessidade de investigação das ações policiais que resultam em morte e violência e o papel do Estado, sobretudo do Ministério Público, para essa finalidade.

A diretora de programas da Anistia Internacional Brasil, Alexandra Montgomery, afirmou que, com base nos depoimentos e nas apresentações realizadas na audiência pública, ações policiais violentas são responsáveis por um processo histórico de desumanização da juventude negra, pobres e moradores de favelas. Ela lembra que essa parte da população convive cotidianamente com violações de direitos humanos praticadas por quem deveria protegê-la, com uso excessivo da força, execuções extrajudiciais, torturas e violência sexual.

Segundo Alexandra, é fundamental que a autoridade responsável pela investigação desses crimes seja diferente da força pública envolvida nos fatos, para que “a polícia não investigue seus pares”. Segundo ela, apenas 2% das investigações sobre essas violações viram inquéritos.

Para o pesquisador sênior da Human Rights Watch, César Muñoz, o Ministério Público deve cumprir seu papel institucional, e a criação de um grupo de promotores para exercer o controle externo da polícia no RJ é uma demanda antiga do órgão internacional. Os membros dessa unidade poderiam adquirir experiência em casos de letalidade policial, analisar padrões de abuso, identificar e investigar batalhões e agentes responsáveis por grande número de homicídios e conduzir oitivas de parentes das vítimas e testemunhas.

Muñoz recordou que, em 2015, foi criado o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp) do MP fluminense, com contribuições importantes para o enfrentamento da violência policial, apesar de recursos muito limitados. No entanto, mesmo sendo responsável por mais de 700 investigações de abusos, o órgão foi extinto pelo recém-empossado procurador-geral de Justiça do Estado.

Após reuniões com a sociedade civil e membros das forças de segurança pública, o conselheiro do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Everaldo Bezerra Patriota, citou que foram elaboradas diversas recomendações ao governo do Rio de Janeiro e ao Ministério Público visando diminuir os altos índices de letalidade policial. Entre elas, destacou o retorno do incentivo para a redução de homicídios decorrentes de intervenções policiais e a garantia de que a Polícia Militar atue com protocolos transparentes e alinhados a parâmetros internacionais.

A respeito desses critérios para uso da força policial, a diretora executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, apontou que o Brasil não tem políticas claras para níveis iniciais de intervenção, como presença uniformizada nas ruas, procedimentos de abordagem, verbalização, negociação e mediação de conflitos. Sem essas definições, “privilegia-se o uso da força letal”.

A ativista ressaltou que a polícia recebe outorga da sociedade para uso da força, mas essa autorização “não pode ser vista como um cheque em branco”. Para ela, a política de segurança social e a própria polícia devem ser controladas e construídas com a participação da comunidade.

Já Maria Cecília de Oliveira Rosa, jornalista e diretora da Instituição Fogo Cruzado, apresentou números para demonstrar como a decisão do STF de restringir operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia afetou positivamente a vida dos moradores. Segundo ela, durante os 10 meses de vigência da determinação, os tiroteios caíram 22%, o número de mortos caiu 33% e as chacinas – onde geralmente há presença de policiais – diminuíram em 30%.

Ela lembra também que a preocupação dos que se opunham à decisão de que os crimes aumentariam era injustificada, de acordo com estudo da Universidade de Harvard. Porém, infelizmente, desde outubro de 2020, os números voltaram a subir, em paralelo ao retorno de operações policiais, marcando o desrespeito à determinação da Corte.

Para Maria Beatriz Galli Bevilacqua, representante do centro, o Brasil tem obrigações internacionais sobre o uso da força policial e o dever de observar a legalidade, a necessidade e a proporcionalidade das medidas. Ao destacar o uso excessivo e desproporcional da força por agentes de Estado, ela afirmou que o poder estatal não é ilimitado e que o emprego da força policial requer padrões internacionais.

Segundo Maria Beatriz, toda operação que envolva o uso da força policial precisa estar subordinada a requisitos em todas as suas etapas. Para isso, as forças de segurança do Estado devem conhecer princípios e normas de proteção aos Direitos Humanos, além de limites e condições em cada situação.

Representando o Gaets, Anelyse Freitas falou que um dos maiores casos de legalidade policial do Brasil, o massacre de Eldorado do Carajás, no Pará, teve impacto direto nas estruturas locais de poder e resultou na reformulação de todo o sistema de justiça e segurança pública paraense.

Conforme Anelyse, há um grande número de pessoas atingidas pela violência das forças policiais, a maioria de pobres, pretos, de baixa escolaridade e periféricos. “Essas pessoas passam de vítimas a réus e acabam respondendo a processos criminais decorrentes da própria violência que sofrem”, ressaltou.

O procurador federal Thales Arcoverde Treiger, que falou pela DPU, disse que a política de extermínio no Rio de Janeiro traz ônus não só para a sociedade, mas também para a União e para os Estados. “Queremos demonstrar que uma lógica de confronto leva a resultados drásticos”, destacou.

Segundo ele, a DPU mapeou episódios de letalidade policial em que houve a participação de integrantes das Forças Armadas e cujas práticas violam princípios básicos de direitos humanitários.

Do STF

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