Pandemia: governantes desmoralizaram lockdown, diz pesquisador

Para Carlos Machado, da Fiocruz, “os ataques contínuos ao método levaram a medidas mais frouxas, bloqueios parciais que entregam pouco resultado e acabam se arrastando”

Se é verdade que especialistas concordam, cada vez mais, com a necessidade de um lockdown para conter a segunda onda da pandemia de Covid-19 no Brasil, também é fato que os governantes levaram essa medida extrema ao descrédito popular. Na opinião de Carlos Machado, pesquisador em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), os políticos – com o presidente Jair Bolsonaro à frente – promoveram uma “desmoralização intencional” do lockdown.

A seu ver, as restrições adotadas no começo da pandemia, em março e abril de 2020, tiveram resultados melhores, graças a uma adesão maior do conjunto da população. As medidas iniciais – diz ele – “foram mais precoces, rígidas e difundidas pelo País, ao contrário do que vemos agora”. Além das variantes mais infecciosas do novo coronavírus, houve, nesse intervalo de um ano, desgaste do método de isolamento junto à população e à classe política.

A Fiocruz é autarquia federal em interlocução ativa com o Ministério da Saúde devido à produção de vacinas. Por isso, Machado evita citar diretamente o nome de Bolsonaro, que usou a máquina do Planalto para difundir declarações e investidas legais contra o isolamento. Porém, os dois boletins semanais do grupo que o pesquisador lidera têm recomendado enfaticamente restrições mais duras à circulação de pessoas, apontado a falta de coerência e convergência entre os poderes.

“O lockdown foi intencionalmente desmoralizado. Os ataques contínuos ao método levaram a medidas mais frouxas, bloqueios parciais que entregam pouco resultado e acabam se arrastando”, analisa Machado. “A população fica cansada e deixa de acreditar que essa é medida viável. Não é o lockdown em si o que prejudica a economia – é esse comportamento, que agrava e prolonga a pandemia.”

Ele insiste na necessidade de uma abordagem técnica, orientada por protocolo padronizado e inspirado na experiência de outros países – função própria do governo federal. Em resumo, significa janelas de fechamento da economia de 14 dias, mas que podem chegar a 28 dias e devem começar sempre que a taxa de leitos de UTI para Covid-19 ultrapassar 75%.

Hoje, diz Machado, não há a mínima convergência entre os decretos estaduais e municipais de isolamento social. A única medida nesse sentido é uma cartilha do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), que, no entanto, não é seguida à risca pela extensa maioria dos mandatários.

Lockdown acaba se impondo em situações extremas ao sistema de saúde. Vamos ter de lidar com ele de forma intermitente pelo menos até o fim do ano. Algumas previsões falam em meados de 2022”, estima. Para ele, há boas chances de se imunizar 70% da população até dezembro. Então, seria alcançada imunidade de rebanho capaz de limitar de forma mais definitiva a circulação do vírus.

Apesar do arrefecimento nas médias móveis de mortes em sete dias – que chegou ao recorde de 3.119 óbitos em 1º de abril –, ele define a situação como “instável”. Há duas semanas, o pesquisador chegou a prever mais de 5 mil mortes diárias para o fim de abril, caso medidas de isolamento não fossem intensificadas em todo o Brasil. Mantida a condução atual, o especialista espera situação controlada no sistema de saúde das 27 unidades da federação em dois meses, no início de junho.

Hoje, 24 estados e o Distrito federal estão no limiar do colapso – 14 deles têm taxa de ocupação de leitos intensivos igual ou superior a 95%. Só Roraima e Amazonas têm situação mais confortável, com queda sustentada de todas as estatísticas há cinco semanas.

“As mortes caíram, mas o Brasil ainda não superou o pico da segunda onda. Abril será um mês crítico e ainda não dá para cravar se mais ou menos grave que março”, diz. Mesmo assim, ele diz que alguns estados já respondem bem ao lockdown. Como na primeira onda, os locais que aderiram às restrições mais cedo, com menos brechas e maior fiscalização, começam a controlar a doença e estão mais próximos de abrir suas economias.

Machado cita a Bahia, que impôs restrições no fim de fevereiro, com o diferencial de governo estadual e prefeituras da capital e região metropolitana convergirem. O governador Rui Costa (PT) e o ex-prefeito de Salvador ACM Neto (DEM) são adversários políticos, mas concordam na condução da crise. Hoje, o estado tem 85% dos leitos ocupados – mas os números caem mais rápido que em outras regiões.

No extremo oposto, está o Rio de Janeiro, que, ao lado de Espírito Santo, Distrito Federal e Ceará, é o que mais preocupa pesquisadores. No Rio, a taxa de ocupação de leitos, 91%, ainda é inferior ao de outras regiões, mas o número de casos escala.

Segundo Machado, o maior problema é justamente a falta de coordenação entre governo e prefeitura da capital. “O estado é mais permissivo. O grau de circulação de pessoas na região metropolitana, sobretudo Baixada Fluminense, permanece alto, comprometendo o esforço da capital. É um caso didático de falta de convergência.”

Com informações do Valor Econômico